sábado, 31 de agosto de 2013
Máquina de moer versos II
Era glacial
![]() |
Trabalho do pintor espanhol Dino Valls |
A fila da sorveteria
abrigava geleira
quando a blusa azul
(o vento nas mangas
bordava um buraco negro
no qual desaparecia
a metade à sua frente
e todos atrás de você
se dissolviam no ar)
sacava pedras de gelo
de olhos verdes
virados para a ardósia
do muro,
cartazes antigos na gordura.
Arremessá-las
enlaçadas em fitas e risos
nervosos
contra o velho lobo ladino
exercício inútil.
Seu gelo,
Seu gelo,
meu osso.
Carona para o inalcançável
![]() |
Trabalho de Dino Valls, pintor espanhol |
você abria o vidro
com a mão direita
apesar do cigarro
e do rádio
aberto no peito
espalhando
as pérolas negras
de luiz melodia ao vento
não eu não podia ler
placas
destinos
quilometragens
suas gargalhadas
atravessavam a estrada
quando minhas mãos
invadiam desvios
então você lançava fumaça na minha cara
e puxava meus óculos
a mais de cem por hora
o tempo
espalha os que se amam
estrada afora
mas há caronas
que vão muito além
de qualquer viagem
como se nos dissessem
que na vida
só vale o que se extravia
com a mão direita
apesar do cigarro
e do rádio
aberto no peito
espalhando
as pérolas negras
de luiz melodia ao vento
não eu não podia ler
placas
destinos
quilometragens
suas gargalhadas
atravessavam a estrada
quando minhas mãos
invadiam desvios
então você lançava fumaça na minha cara
e puxava meus óculos
a mais de cem por hora
o tempo
espalha os que se amam
estrada afora
mas há caronas
que vão muito além
de qualquer viagem
como se nos dissessem
que na vida
só vale o que se extravia
quinta-feira, 29 de agosto de 2013
quarta-feira, 28 de agosto de 2013
terça-feira, 27 de agosto de 2013
Ítaca em risco
![]() |
Instalação de Ernesto Neto |
Mínimo
mover-se
de exímia
Penélope
ainda viva
em exumação
sonha
a volta da nave
do falso Ulisses
antípodas
a nímios
desejos
mãos
esguias e esquivas
em exercício
insalubre
cerzem
solidão
em modo
de segurança
até um nervo
estilhaçar
toda espera
ao pulverizar
enxofre e gesso
nas veias azuis
da memória marinha
vaza de cada cicatriz
o vinho do não retorno
Hai cai fora de padrão
segunda-feira, 26 de agosto de 2013
Mallarmargens - 1 ano
Na edição XV (agosto, ano III) do jornal RelevO uma edição impressa comemorativa de 1 ano de Mallarmargens.
Meu poema "Helena Destróier" está na página 7.
Meu poema "Helena Destróier" está na página 7.
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sexta-feira, 23 de agosto de 2013
Texto em Mallarmargens
A última parte do meu texto "Abysmus Express" foi publicada em Mallarmargens -
http://www.mallarmargens.com/2013/08/serie-abysmus-express-de-jose-antonio_23.html
quinta-feira, 22 de agosto de 2013
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Perdido
Estou perdido em praia inóspita,
estou perdido em noite oceânica,
estou perdido em minha memória.
De nada adianta a manhã postada
atrás de poste como mais uma cilada.
Nem um fio de cobre no horizonte
falso anúncio de aurora e ponte
poderia.
Estou perdido na franja das ondas,
estou perdido na algaravia dos ventos,
estou perdido à luz de estrelas opacas.
Nenhuma nave espacial no céu sulfúreo
acenderá a sombra de fuga em manadas.
Nenhum fio de luz em giz inventará
flor carnívora, narcótica, exótica;
regurgitação alucinada.
Que eu nunca me encontre
em mim,
fora de mim.
Livrai-me, Senhor, de qualquer salvação.
Perder-me,
perdição completa,
espalhar nomes e numes em luas desertas.
segunda-feira, 19 de agosto de 2013
Abysmus Express
Primeira estação
Veio a névoa, densa neblina obliterando
formas. Teu rosto ainda não existia no retrato, tua voz dormia cantatas em dias
de chuva, e o desejo sequer latejava remotíssimo sabor futuro. Minha pele
encerada por cerdas ásperas de nostalgia, pergaminho em caminho de rugas, solo
intocado dos passos que um dia curvos. Tempo esvurmando minutos, grinaldando de
grisalho pelos, cabelos, memórias. As palavras vieram depois, filtradas por
máquinas de sucção de impurezas e excessos sintáticos. Os filtros eram falhos
como as letras do manual de instruções. Uma vegetação luxuriosa saltava do
coração da noite âmbar e ambivalente. Incenso de vigília e tempestade
exalava-se em espera. Corria um rio invisível entre os móveis ofertados aos
cupins na sala, ouvia-se o ritmo das corredeiras e quedas d'água saltando do
pulso. Tudo um fluxo, tudo um continuum, mas nada apontava a possibilidade
do legível. Nada de
limpidez, toda geometria desmanchava-se em sombras no horizonte a anos-luz de
distância. Tudo se tingia de pardo-obnubilante. Linhas voláteis desenhavam um
chão de nuvens. Fugidios e movediços, os objetos afirmavam-se como um
não-é-para-mim, algo latente num sempre-além, fora das circunstâncias, da vida
e suas adjacências entrevistas como relâmpagos apenas em pesadelos. Aéreas fotomontagens
as pessoas, nenhuma ascese, nenhum princípio de transcendência ou aproximação,
redomas metafísicas. Longe, sempre longe o campo do real objetivo, a latência
de formas vivas, a irrupção de sujeitos. Assim, caminhar e tateio operavam
sinonímia, entendimento erigia-se em obscuridade, existir era um território de
avessos. O trajeto vertical descendente radicalizava perdas e recusas. Mas algo
atravessou a névoa, uma instalação desviou o sangue das entranhas para uma baía
de águas vivas. Teu corpo, teu corpo, teu corpo, por isso todas as heresias em
cântico, todas as blasfêmias abertas em chagas na carne viva. A tua voz do
outro lado do impossível explodia o universo.
Segunda estação
O
amor talvez fugisse ao se abrir um guarda-chuva enquanto a cabeça, virada à
esquerda, pensava em travessias. O amor
faria bater artérias, portas e janelas, lançando-as do batente ao deserto?
Faria cessar a névoa do existir às cegas, entronizando no vácuo uma claridade
talvez insuportável, brilho paralisante em frestas pelas quais o vento invade a
câmara mortuária onde os sonhos? Se falhos e incompletos, se lacunosos e
obsoletos, como a tentativa de domínio sobre natureza diversa da nossa ou sobre
aqueles que brotam de nossa urgência e abandono? Onde a possibilidade de
circular entre vultos que nos escapam a tardes ensolaradas, lábios que recuam
ao primeiro sinal de tangência? O arrepio, no entanto, levantava suspeitas
sobre o incontrolável movimento da pele: sístole e diástole, narinas dilatadas,
a pressão sanguínea em alfa. Impossível saber o que habita o outro lado, apenas
o mergulho kamikaze, impulso.
Terceira estação
Entra-se
por qualquer porta escancarada, penumbra fora de perímetro. Às vezes se volta
de mãos vazias e com a alma morta. Sempre se alcança, no entanto, ao se erguer
os pés além da entrada, mais que porta, nimbo fora de qualquer teologia, bunker de tijolos aveludados isolado no
tempo. Por que maciez, champagne e seda? Por que tantos
espelhos e excesso de vermelho nas cortinas? E esse olhar falsificando atração,
memória e gula? E essa indumentária incomum sobre a qual repousam aparelhos
mecânicos e pílulas para performances guinnessianas? E a boca, sim, a boca, a
boca esplêndida e viciosa, a boca, atelier da carne, centro de efeitos efêmeros
que escapam ao provisório, aos prazeres-zumbis que se recusam à morte mesmo
confinados a poucos segundos. A boca que já não diz por que inventa, a boca
esponjosa cuja cegueira arremessa urgência nas paredes.
Quarta
estação
Sou
Judas e vim cravar punhal babilônio nos olhos da harpia tatuada em tuas costas,
serviçal de Lilith, para que não vejas o tremor germinando no solo fértil da
solidão dos que traem. Pertenço à legião daqueles de que nada sai sem o
sacrifício de sangue e inocência. Sou da tribo dos possessos do espírito e
devassos da carne que cruzam o deserto dos prédios para espalhar perversões em
salas de cinema. Vim para devastar teu esfíncter banhado em azeite e lágrimas.
Vim para calcinar o pântano maldito do teu clitóris, falso espelho de meu
gládio, logo abaixo do terceiro círculo do inferno. Vim para enfiar em tua
vulva uma carga de mágoas e rosas, pulsante navio transportando adubos, moedas,
deuses, sucatas e sonhos. Para ti, serva libertina, o pau vibra qual um cometa
ao tocar um ponto qualquer no universo após um século em órbita. Para ti, voz
melosa ao telefone em falsas promessas, esta matilha de crimes implorando
socorro.
Quinta estação
O
que salta dos olhos não são imagens de pêndulos sobrevoando a orquestra de
notas falhas, quando descemos dois tons ou quando o si bemol atravessa as
paredes para auscultar corpos despojados de sonhos no madeirame tomado por
cupins no cômodo ao lado. Também irrompem sobre as pequenas hortênsias
desenhadas em lençóis noites de interferências e assimetrias entre tesão e
batalha, noites em que saltamos tigres, atravessamos o vácuo e caímos de
costas, sem garras, vendo o olhar de escárnio da presa que nos escapa. Tanta
espera e urgência inscritas em coxas morenas anatematizam a lança que não
alcançou o alvo. Uma cidadela de portas abertas na cama expele seu pavor mais
fundo, os lábios grandes e pequenos da vulva secretam, em impura resina e
rancor, todo o léxico uterino do inferno
e, inflados de sintaxe homicida, sopram insultos ao falo. Os deuses e os homens
brocham com a cara na lama no inverno.
Sexta estação
Desnudados
num piscar de olhos, não reparamos a invasão de outros perfumes pretéritos
aquém dos espelhos que nos arremessavam ao teto. Mentiras e gozos alheios
permaneciam entre as paredes, fantasmas alongando excessos ao tempo de
permanência. Meu rosto na toalha macia filtrava a respiração da rua em ablução
ou batismo com o qual a pressa convertia-se em outro ritmo, sístole e diástole,
fôlego erótico para atravessar túnel noturno. Bordadas na toalha com perfeição
de fotografia as mãos de Verônica secavam mágoas e acariciavam a barba tão rala
(no desenho eu negava três vezes a navalha sobre a bancada de aço inoxidável da
pia). Um quarto sempre será estreito para o amor quando se rompe o lacre das
aparências, quando desaba a blindagem de timidez e previsibilidade. Trouxemos
de fora a tempestade, a saliva em temperatura de lava, a oleosidade
incontrolável na zona erógena do corpo, a intumescência vergonhosa do pau
saltando vexame na calça xadrez, o
movimento de nos tocar como se acendêssemos febre no corpo inteiro. Então,
arrancamos nacos de carne com as pontas dos dedos lambuzadas de felicidade,
fabricamos solda de suor e seivas, inventamos moluscos bivalves, fístulas,
dutos de perversão e santidade; abraçados em extremos tão voláteis, vibrando em
jorro em nossos dentros, levitamos nossos nomes, desmanchando-os letra a letra
lentamente sobre a cama incandescente que trouxemos da rua em nossos pulsos.
Sétima estação
Não
cair pela segunda vez, mesmo que íngreme demônio o caminho à tua pele estendida
no alto de tantos desencontros. O desejo e seus antigos afluentes latejam nas
têmporas correntezas sanguíneas, pressão máxima, tonta navegação armilar nos
polos cranianos. Todos os líquidos corporais operam prodígios no campo
magnético dos olhos, injetando-lhes uma luz alaranjada que alimenta cães
selvagens na penumbra de seios à espera de ossos e areia. O sopro oriundo de
cofres internos devasta espera e amplia ao infinito o som da abertura do zíper,
enquanto o mover-se inquieto das mãos, impuro balé tateando maciez e manhã em
peles rasuradas de hiatos e perdas, em teus pelos úmidos, em teus ocos, acende
luzes de emergência entre as coxas. O tempo líquido, um mar anterior ao mundo,
faz a armada ora levitar, ora ir ao fundo, mas todas as naus resistem completas
à intensa travessia. As marés da carne, o enroscar-se de caramujos, a hibridez
de rocha e esponja, tudo respira instante e eternidade. Alargar e contrair luas
e pêndulos cravados na loucura mútua. Na ausência de centro, apenas
alternância, ritmo, dança erótica; movimentos centrifugo e centrípeto. Corpos
cerzidos, emendas afetivas, rascunhos amorosos, males da alma, tudo se evapora.
Despidos de nós, o que somos vige exatamente agora quando gozamos estrelas de
igual grandeza.
Oitava estação
Vieram
as mulheres de Jerusalém para enxertar na minha pele devastada toda uma fome de
bestas sem apocalipse, sem memória. Toalhas de linho sobre o criado-mudo e
potes de barro ao pé da cama, as loucas de véu azul revezavam-se em fogo e
fúria, excitadas com nacos de músculos e nervos entre os dentes de ouro. Com
mãos gordurosas limpavam o excesso, depois usavam as próprias túnicas para
extrair pequenos pedaços de vísceras entre os dedos viciados na solidão do sexo
nas colinas. Aos risos, entoando palavras desconhecidas, jogavam em cestos de
vime grandes flocos de algodão doce de sangue. Em meio à sofreguidão dos
monossílabos do gozo, um nome soou acima dos lençóis rasgados pela luxúria, e
era o teu nome flutuando em sílabas enlaçadas à memória da tua carne em noites
de frio. Ao ouvi-lo as mulheres murcharam arroxeadas, as pedras de anéis presos
à avidez das mãos perderam o brilho, todos os véus caíram ao chão como deusas
de barro, contaminando de melancolia vestes lavadas em lágrimas, esperma e
sangue. A mais louca paralisou interminável felatio
para cuspir maldições pelas dezenas de cáries da boca, os olhos fuzilando
crimes. Saíram em bando, as almas insaciáveis sumiram como farrapos ambulantes
muito além das cortinas do sonho. Sim, possuo apenas um nome para o amor, e é
teu ainda mais quando te ausentas.
Nona estação
A
terceira queda no furor do corpo, três vezes o galo sobreposto à mudez, três
cruzes no calvário acima do tórax, três vezes a água batendo no queixo.
Levanta-te, Lázaro – e era como se um deus desconhecido rasgasse os estreitos
limites do desejo, irrigando com o verbo canais secretos; talvez soprasse com
desânimo uma das trombetas oxidadas após a queda das muralhas de Jericó. Sim,
também os deuses aprenderam as margens noturnas dos homens, saem de pesadelos
em bando para invadir a topografia afetiva fora do plano divino, sabem agora
que todas as cidades são Sodoma e Gomorra. A desconhecida ria em sua nudez
esplêndida, risos de puta, risos de quem abre as pernas às varizes e à exaustão
das horas. Pela janela, infiltração da lua de cobalto. E, frenética loucura
amorosa, gozava e ria a intervalos bem largos, na mesma frequência dos espasmos
com os quais cobríamos nossos corpos gangrenados de carências. Os olhos, às
gargalhadas, urravam: “Canalha! Filho da puta! Eu tô chapada, seu babaca!” A carne ulcerada já não sentia o prazer em
excesso, muito além do preço combinado. A cidadela indefesa, a trompa de
Falópio sitiada, uma legião microscópica condenada pela insânia de um
comandante tarado. “Seu merda, lúcida eu não gozava”.
Décima estação
A
voz estridulante chegou cinquenta passos à frente da sombra, estranho chamado
ao interior de antro gorduroso, coalhado de objetos inúteis, móveis quebrados,
velas e oferendas. Era Deus e seus dez desregramentos do outro lado da parede
mofada. Mãos de dedos rugosos estenderam-se como punhal dentado numa exigência
imperiosa de nomes, roupas e pertences. Antes que os olhos piscassem, abrupto
puxão nas costas; o linho rasgado de cima a baixo, as calças dilaceradas por
dentes em fúria, cães arrancando sapatos, nacos de carne e tatuagens. Pequenos
dados viciados, bilhetes amassados, moedas e retratos perdidos na recepção dos
leões-de-chácara encapuzados. Despojado da película de ataraxia, o corpo
esplendia viço e virilidade. A voz soou mais intensa, suplicando chagas,
úlceras, doenças, arrependimentos, choro convulso, mas o corpo rijo e
resistente lançou-lhe insultos no céu de álcool e feromônios: respiração
ofegante, pressão alterada, circulação acelerada, brilho nos olhos, narinas
dilatadas, o pau - lança rubra erguida por demônios. No chão as vestes impuras
e as íris dilatadas de Bastet, testemunhas dos nomes que escorriam sílabas e
cadáveres de boca em metástase.
Décima-primeira
estação
Na sala de comando do
abrigo subterrâneo, câmeras registram um corpo sendo despojado de passado
púrpura e império, as vestes no chão, tragadas por ratos. É preciso
entrar nu em palavras gravadas para exaustão e tédio; é preciso enganar leitores
de digitais, íris e quimeras; é preciso camuflar identidade, alma e vingança;
guardar fôlego para atravessar o corredor polonês onde vozes eletrônicas distribuem
instruções para performances de alto nível e questionários de riscos. Chega-se,
por exaustão e aos pedaços, ao ponto extremo do movimento, após o qual tudo é
indiscernibilidade e regurgitação. A face teriomórfica altera o perfil da
sombra nos ladrilhos; cornos bipartidos são projetados no azul e branco,
orelhas cônicas escondem líquido esverdeado na penumbra, não se veem as fendas
da cabeça intumescida de protuberâncias, as bactérias pulsando no centro.
Vamos, sim, exatamente aonde nos querem domesticados, strippers infláveis,
vamos, no entanto, para danificar todos os circuitos, borrar todas as imagens, queimar
todos os fios, desmontar todas as palavras de fibra de vidro e silício. Vamos,
sim, morrer com a lança erguida, reluzente, humano hissope cravado em abertura
carnívora. Sim, pai, eles sabem muito bem o que fazem; ensinaste muito bem a
crueldade.
Décima-segunda estação
Na banheira, por asfixia, na cama, por
infarto, em terreno baldio, por uniformes oficiais, ou em cruz de plástico, por
cineastas amadores, a morte e seu séquito de banalidades: choro, hagiografia,
totens, revelações escabrosas, faxina biográfica. Falsa proposição enunciar a causa mortis. A morte não.
Desmoronar, parte da construção; afogamento, o próprio mar; sucumbir, outra
manifestação do vigor; abandonar o porto, levá-lo nos dentes para ilhas
distantes. A morte, não, a morte, porque nada nadinha reconfortante o abandono
das horas em que juntos, porque extraímos fungos e diamantes de horas mortas,
porque caminhamos às tontas para nunca escapar ao deserto, porque é necessário
palavras cumprirem destino de areia. Só mentiras alimentam a alma, as grandes e
as infames. O amor selado em tonéis e desfaçatez, o último orgasmo a acender-se
em fumaça na lama sagrada do corpo. A morte não. A alma infante não cabe no
corpo mofado. Como a ineludível lavará as falsas promessas de amor urdidas
mutuamente em noites úmidas de felicidade? A morte não. Salamandras venenosas
ensaiam carícia no corpo morto, nunca a morte, porém, encontrará a sonoridade
das palavras que perdemos. A morte que nos leva não sabe o que deixa. Alguns
afirmam ver, do outro lado dos orifícios nas duas mãos, a sombra do paraíso (um
pastor de cobras foi pregado em poste para multiplicação de fé e descrença). A
morte não. O que vi foi aqui mesmo quando pisava em falso.
Não
há, depois da fermentação dos órgãos, da sutura dos tecidos, ponto de
restauração de ossos e certezas. Nenhum fio materno virá redimir, ao amparar o
corpo extinto, anos de barbárie no pântano. Vê: há certa beleza geométrica na
floração de máculas espalhadas como semáforos por uma superfície já inavegável.
E os olhos? Observe as cenas submersas pulsando atrás das pálpebras inchadas: mãe
abandonada em plantões hospitalares, pano, balde e rodo em sanitários
infestados de pestilência; mãe de noites estendidas em pânico quando o
filho conduzia uma gangue de hirsutos em farrapos pelas ruas do bairro apóstata;
mãe em apneia escrita em livro de ocorrências paranormais: peixes multiplicados
por asfixia na cortina d’água, x9 ressuscitado para clandestina execução
sumária, putas inscritas em liturgia pornoangelical, cegos que se amplificaram
em câncer e surdez. Janelas fechadas à passagem de anódino cortejo, portas
trancadas a pavor pleno, crianças nos cômodos mais fundos. Vê: eis o morto em
ângulo sólido. Não, não é o dedo médio que lavra insultos a sacerdotes-eunucos.
Algo se monumentaliza por causa da
pressão hidrostática causada por ingurgitamento venoso, o pau insurgente de
Prometeu. A curvatura do corpo cavernoso atira mitos, nódulos e coágulos contra
a eternidade.
Príapo de volta aos braços maternos.
Última estação
pula-pula
a marafona sobre o abdômen do morto, o peso desproporcional afunda pouco a
pouco a dissoluta carne arqueada, voluta ulcerada de volta ao útero, cornija
para escoar lágrimas fingidas. pisa-pisa a face teriomórfica entre touro e
carneiro, vértebras partidas, a flácida barriga de estrias azuladas aberta aos
domingos para expiação pública e taxonomia, quase dobrado agora folha rasurada,
bolas de pelo como amuletos macabros rolam ladeira abaixo pela goela do falso
messias que proclamava proezas sexuais - pura fantasia para viúvas de homens
mortos de tédio. agora o fêmur quase atravessando a garganta. outras carnes
mofadas prensaram as letras com as quais esquiara esperança e sordidez, também
atiraram insultos e serpentes em seu peito, dos pulmões sem pneuma vazavam
vigílias alucinógenas e lamparinas para os dias de letras turvas. os poemas em
bacias entulhadas de sal e olhos-vigias perdiam a caligrafia de infâmias. forjaram
suas amantes uma cruz para a morte, mas todos sabem que o rei apócrifo enforcou-se
de palavras, as frases enroscaram-se arame farpado no pescoço roído por prazeres
de aluguel, sílabas de pernas abertas esfregavam esponjas e xanas em sua face
esquerda enquanto a direita era todo o cenário do deserto. para sempre lançado do lado de lá das palavras.
ainda que não existam deuses e não tenha alcançado o inferno, o morto não pode
ser enterrado. quem um dia o calvário de um nome, nunca desnomeado.
domingo, 18 de agosto de 2013
quarta-feira, 14 de agosto de 2013
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