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Obra de Adriana Varejão |
Patria migrante
José Antônio Cavalcanti
Nación de nómadas apátridas
fugitivos
exiliados
en vuelos clandestinos
balsas
túneles bajo lo destino.
Mapa de las minas
donde el oro sangra la América
- Eldorado Eldolores Eldólares -
la money-Canaán del siglo XXI.
Cholos, criollos, chicanos
en lo desierto o en aguas norteamericanas,
entre perros, coyotes y tiburones,
animales o humanos,
bajo las luces de una noche sin nombre
expuestos a patrullas de fronteras
o a la siniestra persecución de la Guardia Costera.
Riesgo de cárcel a los indeseables,
riesgo de muerte y su hermana,
la invisibilidad,
riesgo de crucifixón en un muro,
espejo de lo cinismo
que nos dibuja como bandas latinas.
Quedó atrás lo país de la infancia,
la morada ancestral
y las palabras de asombro y alegría.
Si civilizarmos la América,
si le enseñarmos la risa, la danza, el amor,
cómo ella tendrá fuerzas para invadir otras tierras
y inundar el mundo de codicia, bombas y rencores?
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Auto Portrait, Antônio Bandeira |
POR QUE TE AMO?
José Antônio Cavalcanti
Não há respostas.
Meu amor é um míssil.
Secreta ogiva segreda
inaudíveis palavras de amor.
Infelizmente
você não aciona o controle remoto.
Disparo meu último foguete.
Aciono o pavio,
porém você não detona.
Então, amor, afundo
e não volto à tona.
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O que vi pela tv canal 98, de Siron Franco |
REALITY SHOW POETRY
José Antônio Cavalcanti
Vc
tb
naum
me
(escolha a opção certa):
( ) kiss
( ) quis
( ) quiz
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Rony Bellinho |
O cão da noite
José Antônio Cavalcanti
Quando a noite cai
eu a aparo no peito
e tiro de letra
todos os pecados do mundo.
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Di Cavalcanti |
As filhas da noite
José Antônio Cavalcanti
Passeiam pelas calçadas
atrevidas
atravessadas pela vida.
Suas pernas são foices
que cortam o gozo
e se abrem vazias
como um cofre
à espera de moedas.
atrevidas
atravessadas pela vida.
Suas pernas são foices
que cortam o gozo
e se abrem vazias
como um cofre
à espera de moedas.
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Damien Hirst |
Luz de emergência
José Antônio Cavalcanti
O sangue exsuda das sílabas
do teu nome
e escorre,
resina inútil e rancorosa,
na manhã trêmula e volátil.
Pulsação intensa
insemina nas minhas veias o denso licor
do deserto,
oásis de poços envenenados
os teus olhos
atravessam o meu coração em resíduos
com séculos de fúria represada.
Meu corpo todo flutua.
Inflada, a alma se despovoa.
A nódoa do medo me contamina.
Quem em mim ficou no meu lugar?
Sala de espera
José Antônio Cavalcanti
o impasse
do próximo passo
pendentes
paixão e poemas de Kaváfis
em prateleiras mortas
limo
a linha opalina do destino
da anônima iluminada
na praça de alimentação de um shopping
onde canibais domingam
furo
a rede de pretéritos que não vi passar
apesar das rugas e agora grisalho
(toda biografia é caos e infâmia)
indecisão
a lâmpada sem o fio
do gesto
é dezembro
e também inferno
os carros
flechas no asfalto
pretas azuis cinzas vermelhas
escorpiões cavando cicatrizes nas curvas
a cabeça nas mãos
de deuses dementes
espero
entre um sofá rasgado e um celular emudecido
a senha secreta da felicidade
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Paralelo, Gil Vicente |
Estratigrafismo
José Antônio Cavalcanti
Os sítios onde acampávamos
agora campos arqueológicos.
Lá ainda se abrem embalagens
dos biscoitos que comíamos,
os calçados ainda caminham
vazios de donos e destino,
as mochilas ainda guardam
os sonhos que nos moviam.
(Na areia de uma praia deserta,
o ritmo de um relógio perdido.)
Tudo acumulado em antigas fotografias.
Em camadas paleozoicas
vivem o vigor e a euforia da juventude.
De costas para o inevitável abismo,
praticam uma escrita impenetrável.
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Marc Chagall |
APRENDIZ
José Antônio Cavalcanti
Usei todos os erros
de que dispus;
posso dizer que fui feliz.
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Manabu Mabe |
INTRANSFERÍVEL
José Antônio Cavalcanti
Repare e apure
o passado, essa rasura.
Mancha na camisa
aquela sombra azul
no osso,
furos na escama, na pele,
memória incompleta.
Se puder, separe
as páginas valiosas
em que a felicidade
era um falso espelho,
vértice inverso da vida.
Não demore, antes
que o cigarro acabe
examine as sílabas.
Evite mastigá-las.
Não morra de saliva
nem de sintaxe.
Pense apenas
os, as,
isso,
aquilo,
escave uma gramática
intransferível
às palavras.
Escreva cem vezes:
seja sombra, seja luz
o que sou não me traduz.
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Nathan Sawaya, trabalho com peças de lego |
UMÂNIMO, ANÔNIME, HUMÔNIMO
José Antônio Cavalcanti
Sem efeito
pedras e palavras
lançadas a esmo
no reino de mensagens incompletas
voltam-se contra mim,
sujando de sonhos meus sapatos de camurça
um dia azuis.
Tento despistar o espanto
com um riso partido em pedaços
enquanto ajeito os óculos
e aceito um café mal feito
que eu mesmo faço.
Desteço as tramas e intrigas do destino
na fábrica de urtigas do meu peito,
esse jardim de abismos e desconcerto.
Não tenho como efetuar o acerto
com o cerco de coléricos cobradores
infernos e exfernos:
fantasmas vermelhos,
mulheres sem braços e sem cabelos,
páginas de uma enciclopédia de erros,
versos piratas, pesados e imperfeitos
espalhados
em décadas e corpos.
empilhados, à noite, como pesadelos,
sacodem-se nas grades do meu pijama de quedas.
Velhas contas suspeitas
anseiam anistia e olvido,
mas é um tempo de escamas metálicas,
de êxito, triunfo, impiedade.
Para que poetas em tempos de hu(nani)manidade
(nano)
(nula)
- algum dia, a humanidade?
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IRREPARÁVEL
José Antônio Cavalcanti
Tudo é assim
e o ser-assim de tudo
pulsa em mínimo estado
dentro e fora de mim.
Círculo entre o início e o fim
a carta do caos e do cosmos
é assim:
escrita da indiferença derrama
ausência de refúgio ou de rumo;
as coisas todas serão
as sílabas já silenciadas
e a nascente das palavras.
Partículas perdidas
entre o poder não ser
e o não poder não ser,
as coisas, os seres, o mundo
(teus beijos e teu perfume)
são exatamente assim:
primitivos e modernos,
provisoriamente eternos.
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FALSA BEATRIZ
SÓ, PENSO EM VOCÊ
SÓ PENSO EM VOCÊ
SÓ PENSO
EM VOCÊ
VOCÊ – SOL, EU – SUN
SÓ PENSO
SUSPENSO EM VOCÊ
NÓS DOIS - UM
PRESO PESO EM VOCÊ
C
A
I
O
O
PLUF! CRAFT! SBRUM!
MINHAS MÍNIMAS E MÚLTIPLAS PARTÍCULAS
ESPALHAM EM TERRENO INTERDITO
“SÓ PENSO EM VOCÊ”
AO INFINITO
ENQUANTO ANOITEÇO
ENQUANTO D . S . P . R . Ç .
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Atire se puder, 2001, Nelson Leirner |
José Antônio Cavalcanti
INCISÃO
poema punhal
apanha
a sobra o lixo
o punho
destrói o grito
poema punhal
opõe
o sopro da vida
livre
ao visto do livro
permitido
poema punhal
pena fatal
traço no papel
o sangue
fuzila o revólver
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MAR INSANO
José Antônio Cavalcanti
o mar
é armadilha
que liquida sonhos
em suas líquidas trilhas
o mar
é martírio
que agoniza ilhas
em distâncias de milhas
o mar
é mortalha
que malha no sal
ânsias de maravilhas
o mar
é metralha
que crava na pele
as espumas de suas balas
o mar
é armadura
que cospe na cara
as águas da loucura===================================================================
ONÇÁRIO
Para Maíra, minha filha
ANTEONÇA
a paixão do pai
apascentou os sonhos
com lança-chamas
riscando a noite
qual giz
o dorso encurvado
da avó
teceu redes de rezas
espantando os maus espíritos
mãe
animal de luzes
fêmea feracíssima
renovou o barro
do corpo
cobrindo as pernas
com pétalas de carne viva.
RUMOR DE ONÇA
sussurro de suçuarana
balbucio
a fera ruge
a febre estala
a baba do sentido
o susto da fala
– linguagem.
A PRESENÇA DA ONÇA
• a pelagem esmaltada da onça
anteparo ao agreste
à comida sem tempero
do azedo ácido vazio
• uma onça carrega
em sua bagagem:
bonecas de pano
batom & miragens
• uma onça aço-carícia
furta-se aos caraíbas
desprovidos de fala
– o nexo ou laço
entre ideia e ato
• uma onça líquida
não evita as pedras
mas não elege o seco
como território de caça
• uma onça nunca boneca
enfeite de risos
mero adorno
(ah! onça,
este amor de cheias
não reclama retorno).
NOMEAÇÃO DA ONÇA
• necessário outro zodíaco
que te traduza inteira.
Portanto, doravante,
serás onça, água & emoção:
estas as tuas cidades,
este o teu brasão
• ficarás nomeada onça
para andares em selvas,
cerrados, países, mares,
e escapares impune.
E também pela beleza
das cores de tuas asas
à semelhança de onças nenhumas.
• água será teu elemento
– espaço de regeneração
onde o mal não germina
e as feridas se fecham
: o mar – amigo & guardião
• no salto, no mergulho ou no voo
o sentimento é impulso
por trás de qualquer mecanismo
o coração pul(s)ando no meio
de qualquer teoria
a emoção: caminho & guia.
MANHÃ DE ONÇA
• onda inesperada
a luz
luxo dos teus olhos
águias
pulsando nas pupilas
marés
cobrindo retinas de águas
espumas
beijando um corpo de rochas
o de onça
e a mobilidade pictórica
movimento
de aquarela e balé
• onça
lança do imprevisto
vertendo
fúria em serenidade
traçando
os trajes da manhã
pendurada nos pulsos
do poeta
• onça: este galho não se alcança.
MAÍRA
onça
força viva
onda
dança leve
o coração
o olfato
o paladar
o tato
a audição
a visão
in/tentem rumos
sob as sobras da razão
outra
onça
um nascer
do mais
aumento
dos plenos
pulmões
ar
fôlego
gole
legado
de águas
ventos
fogos
terras,
onça.
MIMORANDO
DE: Jaguar PARA: Onça
– luas de fogo impressas no couro
da onça noturna;
– galáxias do paraíso no riso
da onça noturna;
– o mundo: um brinquedo nas presas
da onça noturna;
– tatuada de estrelas a nudez
da onça noturna;
– espelho de delícias nos olhos
da onça noturna;
– luzes sobre sombras: o reinado
da onça noturna.
O APRENDIZADO DA ONÇA
• a implumagem da onça
(ser líquido e transparente)
clave na pauta vital:
o fino das garras
o reluzente dos pelos
o vigor da investida
• olhos fosforescentes
em prontidão & promessa:
caraíbas com carabinas
não provam a papa fina;
bandeirantes da morte
não bandalham nessas trilhas
(necessário um animal acuado
meio homem – meio jaguar
enjaulado fora do tempo
para captar o corpo incapturável)
• as pegadas da onça
lâminas luminosas
: astúcia & armadilha.
ONÇA, UM MOMENTO
onça,
avesso de ranço
mateira
vermelho no verde
dos campos
brejeira
nos brejos do tempo
ONÇA/VITRAL
• a loca onde se enfurna
uma urna onde se guarda
a casa onde se larga
quando em descanso
a onça
remanso de lembranças
pleno de utensílios
um castelo em desalinho
com guardas embriagados.
• a onça quando pisa
converte sala em selva
na desordem feroz
dos gritos
o faiscar das garras
o balbucio da fala
o desabrochar do bote
toma o mundo por presa
brinquedo domínio ou dote
• onça: a quentura do colo.
ALMOÇO DE ONÇA: O MOÇO
• antropofagia
não é exato
o dizer
(de fato)
feraminilidade
o deus macho
agora fêmea
num sexo felino
sem trégua
a onça bebe
a onça come
uma fome primária
comida de caça
(de onça que se preze)
será sempre outra caça
(nunca se sabe ao certo
a onça que alimenta
ou a onça que devora)
• jantar de onça é a noite
e a sombra de suas lanternas.

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![]() |
Fukuda |
POESIA INGÊNUA E DEMENCIAL
José Antônio Cavalcanti
Balas
perdidas – as balas ou as vidas?
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![]() |
Rony Bellinho |
PULSÃO
José Antônio Cavalcanti
"Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo
Porque os corpos se entendem, mas as almas não."
Manuel Bandeira
Atrás de textos
(noite de mil páginas);
à frente de fantasmas fugidios
emergindo da tela
(nela, exílio de fantasia ,
o branco causa pânico).
Ob
servo
um cometa
- luz carimbando pálpebras
murchas
(pétalas despojadas do perfume
do dia).
Vem,
em passos de susto,
um surto de sombras e desarmonia
ao cair do corpo
em chão de trangressão e plumas.
É no pós,
no além de,
no para lá do possível
que quero lançar a flecha
e escrever o interdito
com a face encharcada de luz e lama.
Atrás de textos
(noite de mil páginas)
acendo beijos como velas
capazes de redimir os corpos
e arruinar as almas.
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CARACOL
José Antônio Cavalcanti
Uma lesma
ao léu e a esmo
carrega a carga
de gosma
com a qual escreve
em sua bagagem
de rosas e losnas
uma viagem de
charcos, mágoas e
cacos de beijos.
Caracaos
carrega a alma
em espessa couraça
o coração é um bongô
batucando tristeza
em densa blindagem.
O vento grava
na aura das palavras
mensagens de perdas
e dramas.
Caracol
caracaos
caracosmos
os olhos das górgonas
não congelam os gestos
nem selvagem Cérbero
rosna maldições à lesma
que em si mesma
guarda a casa
que carrega
como quem rega
as pedras de uma estrada.
Do lado de fora
um hipopótamo azul rumina
— entre ilusão e fascínio:
como combina o seu corpanzil
com a casa mínima,
como se equilibra a sua massa
com a leveza bailarina,
como sua cantiga se afina
com a criatura peregrina.
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![]() |
M.C. Escher |
VIDE VERSO
José Antônio Cavalcanti
De onde os fios de luz
filtros
filamentos
trazem música e imagens
e, em cor, em forma, em volume e em movimento,
desenham desejos densos?
De ressaca ou secos,
fechados ou abertos,
práticos ou sonhadores,
ternos ou temerosos,
esses filtros de sombras e sonhos
armam ardis e armadilhas
a quem ouse mirá-los.
Diálogo luminoso entre corpos
— palavras obscenam a paixão —:
ver e ser visto,
o tato,
o olfato.
Um outro olhar,
de olhos fechados,
dentro e por dentro
da alma e do gozo.
Pequenos cofres redondos
guardam o precário
nos papéis da eternidade.
Ver,
sorver,
absorver.
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![]() |
Gustav Klimt |
RASURA
José Antônio Cavalcanti
O beijo na mínima fenda
entre gesto e fetiche;
uma curva
– vírgula
em texto turvo –
na pele lupina.
A voz e o chamado
em hiato;
o corpo ausente
do corpo
de destino ou passagem.
Habitar a margem
do outro lado
do beijo.
Uma escrita de sinais
trocados;
as águas deste rio
tocam
lábios apartados.
Cicatriz,
esse peso e espaço
entre
peles ausentes.
Beijo travado
não salva nem alivia
a ausência de um lado.
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Acho que esse poema é da década de noventa, não me lembro do ano em que o fiz. Não consegui publicá-lo no antigo Poemargem. Felizmente ele pode ser exibido na internet, ainda que com a perda de sua exata referencialidade espacial (o que é uma pena). Espero que gostem.
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MULHER-ABISMO
José Antônio Cavalcanti
Esgrima no olhar,
farpas nos dentes.
Mulher de máscaras
entre rendas reclusas
armazenando mágoas e maldições.
Um andar só balé
em trilhas de noites egípcias;
dual mover-se de ser
a que caminha em duas direções.
Ágil animal de luz e leveza,
reserva de astúcia e mordacidade,
avalia a presa com precisão cirurgiã.
Instáveis as paredes do império
: posso sentir a fragrância de fendas,
a gangrena, o bolor, a queda
dos frascos de veneno sobre a cama,
os lençóis de gestos desabitados.
Fábula sonora a voz,
um sopro de pássaro e paraíso
: música para se perder o juízo.
Corpo de escusas e escamas escapa
da cama
por atalhos, desertos, falésias.
Carne encoberta de letras secretas
à espera de quem a invente
e ouse saber o secreto sabor
: lírio-do-vale, lavanda, limão.
Aço-carícia de cânticos
imantizados
ao nada, ao além:
o depois do nunca,
o antes do não-sei,
arcanos de indizível desejo.
Viver é exercício de queda
e dissolução em seus dentros.
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FRESTA
José Antônio Cavalcanti
Uma vírgula suspensa
pensa
– entre o nada e o antes –
o adiante.
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PAZ PALESTINA
José Antônio Cavalcanti
Que flores desabrocharão
após o bombardeio?
Depois das bombas,
que canções saltarão de caixas quebradas
sob as ruínas do sol de Gaza?
Que brincadeiras infantis
desenharão no chão a sombra de gerações extintas?
A poesia incinerada por gente insana.
Então é assim,
onde não há água a sede é de sangue?
Onde não há vinhedos e olivais
a fome é de cadáveres?
Meu coração palestino
habita uma pátria de nuvens e impossíveis.
Bombas por todos os lados,
de vários pesos, tipos, finalidades,
repaginam o céu como um inferno.
A poesia incinerada por gente insana.
Que em um acampamento qualquer
uma lâmpada tenha permanecido acesa,
um aceno,
um gesto,
um sorriso,
uma vontade de converter facas em afetos,
bombas em abraços,
inimigos em irmãos.
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![]() |
Lasar Segall |
LUA FENÍCIA
José Antônio Cavalcanti
Morena,
salpicam napalm
em tuas mãos.
Gerações dizimadas,
pilhas
nas calçadas.
Pilhagem.
Impiedade.
Ventos nos olivais.
Ira nos rebanhos.
Crianças muçulmanas
sitiadas.
salpicam napalm
em tuas mãos.
Gerações dizimadas,
pilhas
nas calçadas.
Pilhagem.
Impiedade.
Ventos nos olivais.
Ira nos rebanhos.
Crianças muçulmanas
sitiadas.
(Década de 80 - após um bombardeio sobre Beirute e a leitura de uma antologia de poesia palestina)
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![]() |
Parangolé Tenda, 1964, Hélio Oiticica |
ERROACERTERRACERTORTO
José Antônio Cavalcanti
Errei a mão
A vida na contramão
Todas palavras perdidas
Invento inutilidades
Abjeto exercício de óbvio
E balão a gás.
Resultado:
Um corpo exposto a matilhas,
Amor em campo minado.
Errei a mão
A vida na contramão
Todas palavras perdidas
Invento inutilidades
Abjeto exercício de óbvio
E balão a gás.
Resultado:
Um corpo exposto a matilhas,
Amor em campo minado.
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![]() |
Rony Bellinho |
FRATERNIDADE DOS SUICIDAS
José Antônio Cavalcanti
Irmanados na rebeldia
Ambos sujos e bêbados
Traçaram um balé estranho
Abrindo com canções
A caixa da noite eterna.
José Antônio Cavalcanti
Irmanados na rebeldia
Ambos sujos e bêbados
Traçaram um balé estranho
Abrindo com canções
A caixa da noite eterna.
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![]() |
Arcimboldo |
DEGUSTAÇÃO
José Antônio Cavalcanti
Há conversas sem anverso.
Nelas, uma voz ressoa facas
em prato vazio.
As palavras - pólvora impura -
tateiam púrpuras na pele
enrugada em chumbo noturno.
Invisíveis os sulcos
nos quais a paixão irrigou
a colheita nunca recolhida.
Como iluminar um semblante
em luz insonora?
Qual o sabor das horas
que passam em branco?
Qual a distância entre
agora e antes?
Pensar em respostas é não responder.
Que não haja pane e perfídia
entre palavra e vida.
Que todos os gestos
festejem as promessas.
Que a dor não imobilize os membros,
não mais do que nesse minuto de purga
entre pergunta e sobremesa
em que se degusta palavra amarescente.
Restará, como licor amargo, um gosto degradado
na partitura de um dia perdido.
Em outros momentos navegantes,
refeitas do sabor de nomes incompletos,
nossas sílabas serão entrelaçadas
na carne e no som.
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![]() |
Rony Bellinho |
FAUNOSFERA
José Antônio Cavalcanti
1. Fauno em várzea noturna
fortuna infausta
o amor: funda afasia
corpos em urnas
carnes, licores, bruma.
2. Faunos e ninfetas,
galeria de infâmias
nos lupercais lupanares da Lapa.
3. Sombras demoníacas nos muros,
vítimas nas esquinas,
tapetes afegãos na varanda.
4. Dinofaunos furtam a ninfetas
fragrâncias clandestinas
sob a lua míope e devassa.

5. Um fauno verte absinto pelos cornos
como a lua absorve em secreta órbita,
no cobre de crateras macedônias,
o rubro licor de virgens tessálicas.
6. Noturna sereia,
no cabaré da Lapa,
não cabe
a indecisa nudez.
7. Peças
saltam ao chão
e desenham um pecado de cada vez.
8. Neste recinto oracular
em vermelho soalho mofado
blusas batas burkas
bêbadas
profanadas.

9. Manual de instalação de desatinos,
regras de abuso, senhas de violação:
vírus no código da carne feita maldição.
10. Ruínas urbanas as avenidas vênus
plenas de ícones egípcios, bíblicos, suburbandos.
Mover-se na parte rasurada dos mapas:
uma odisséia de perversão e sant(C)idade.
11. Eromágicos movimentos:
bacantes, ninfas e hetairas,
um balé de pólen e vento.
12. Entrar e sair de becos, bocas, grutas.
Invadir a cena, a festa, a fescenina
cerimônia da câmara íntima feminina.
13. Pã aposentou navalha e avena;
exilado dos cenários bucólicos das colinas cariocas
(e fugitivo de penitenciária espartana)
inferniza damas em (in)cômodos Tiradentes.

14. Cosmonáufrago, demônio da garrafa,
incendeia de cachaça e carícias os corpos
caravelas de amantes anônimas e insensatas.
15. A plenos pulmões, fauno de camisa amarela,
no soviete dionisíarcos da Lapa, recita
a cento e cinqüenta milhões de ninfálicas
a desgrama amorosa para o milênio do caos.
16. Paixão de fauno é selo no ventre;
impregna os monossílabos do gozo
com o fogo da fúria e da intensidade
e crava o agora no sempre.

17. O amor, lâmina incandescente,
rasura, risco, rabisco traiçoeiro,
jaula e algema nas quais a alma
do fauno jaz sob danoso domínio.
18. Dos negros montes pubianos
o fálico ser aceso vê
a grande rota das caravanas.
19. O tempo inclemente colheu o calor.
O fauno, no meio da malandragem,
sem flauta e sem cavaquinho, decanta
a fraude amorosa, a erofágica libação.

20. Torcer, retorcer, distorcer,
conjugar o corpo crepuscopular
no grau grisalho da queda.
21. Ninfetas-manequins sem afeto
em sépias lilases e magentas
mãos hábeis na flor e no furto
simulam caos, orgasmo e adeus.
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TRÍPTICO
José Antônio Cavalcanti
![]() |
Manabu Mabe |
I
Feminua
na concha da lua cheia.
Noturna sereia,
no cabaré da Lapa
não cabe
a indecisa nudez.
Peças
saltam ao chão
e desenham um pecado de cada vez
Sombras de prímulas trêmulas
ao som de paredes perfuradas
por tristes tangos redondos
- sonoras crateras lunares
em que ávidos sorvemos
a vida com sabor de vinho e contrabando.
Nosso clã
nosso destino
nossa idade
Clandestina claridade,
árvore onde inventamos
o verde
a levitar e inverter
a verdade:
essa versão falsificada de felicidade.
Feminua
é quando o salto se inaugura.
![]() |
Manabu Mabe |
II
Ser a chuva sobre,
a água jogada aos pés
ou o vento invasor, talvez.
Mínimo movimento
em direção à perda de rumo.
Diria, em outra pauta,
rumo à diccção
ou à falência das palavras.
Ir ao encontro do
beijo mais aceso,
esse, semelhante a selo
com o qual se lacra
a intensidade que escapa.
A chuva,
sobre a sombrinha,
soberana.
Quem determina
a cadência com que se afirma
a proteção redonda
dentro da qual caminha
elegância bailarina?
Qual proteção?! Que nada!
A sombrinha é que socorre a chuva
do sol que a segura e nasce a cada passo.
A sombrinha,
inversão completa:
passarela suspensa e portátil:
alumínio, nylon e poesia.
![]() |
Manabu Mabe |
III
A cidade era uma rede de ruas
onde o progresso apagava a paisagem,
acumulava crimes e cicatrizes
e traçava em seco mapa suas margens.
Na verdade, já não existem cidades.
À falta de asas, de olhos e de encanto
avenidas são feridas urbanas,
enviam dor a todos os recantos.
Nenhum projeto urbano
rima com felicidade.
A cidade, então, é você,
toda,
inteira.
Praia, praça e ponte
onde circula a claridade
que carregamos como pássaro
às salas secretas
movidas por luzes invisíveis.
Uma cidade deitada
derruba todos os muros,
incomensurável
entre paredes.
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Hélio Oiticica |
HABITAR
José Antônio Cavalcanti
Onde o sol guarda o fogo
e gargalha, amarelo-amargo.
Onde o mundo rumina ameaças
e ruínas; funda mina de vilanias
finas; dissemina insânias.
Onde a casa indizível
(agora cofre e casamata)
desaba, cínica e porosa,
percurso, discurso e demência.
Onde a nudez da escrita
gesta aguda e grave escuta;
música urbana confusa,
ópera de acordes absurdos
Onde a palavra é muralha,
cartucho, faca ou navalha;
o ponto em que se encerra
conversa, festa, encontro.
Onde te vejo colada à parede
do outro lado da calçada,
pálida, a cabeça inclinada
como uma lua devastada.
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Basquiat |
A TAÇA
José Antônio Cavalcanti
Acaso haverá
ou destino
nessa taça com a qual brindamos
todas as formas de desatino?
O que nela se esvazia
somos nós vazando
matéria e energia?
Ou tudo é passagem secreta
a dimensões inéditas
onde nos dispersamos?
É grave ação da gravidade,
submersa gramática de pecados
ou música incandescente,
o som das sílabas
espalhadas em cacos pelo chão?
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Fukuda |
IMPUREZAS
José Antônio Cavalcanti
Pelo mimeógrafo passa o meu sangue
negra tinta a imprimir a pele
e a esculpir o corpo da linguagem.
Pelo mimeógrafo roda a minha memória.
No giro do tempo perdido e preciso
as folhas alvas passam a negras,
amontoadas como pecados numa bandeja.
(1976)
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Idéia Invisível, Waldemar Cordeiro |
POETA
José Antônio Cavalcanti
Amanhã da linguagem,
guarda em sua bagagem
gás e miragem.
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Lygia Clark |
SOB VIGILÂNCIA
José Antônio Cavalcanti
À espreita,
nuvem maliciosa
desaba
o corpo na lona
azul cobalto.
Incorpora-se, então,
a dor nos póros entorpecidos
por falsas películas de felicidade.
Surge uma leitura
só osso e nervo;
a descoberta do prazer
como excesso de cordas na orquestra.
Os olhos gritam
décadas de convívio deletadas
em fina ferocidade.
A cidade expande suas fronteiras
com as pedras de palavras em demolição.
Inseguros, sentimos sensores
rastreando a pronúncia de novos movimentos
como se uma presença antiga
convertesse afeto em penitência.
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TERRA PONTO
José Antônio Cavalcanti
Não se reduz
a curva
- jogo de côncavos
de tuas conchas -
no horizonte;
qualquer que seja a paisagem
ou palimpsesto do tempo
nossa pele,
plissagem de abismos e margens.
Satélites espetam antenas
em tuas fendas de fêmea ancestral,
de tuas minas extraem estranhos postais,
formas de clonagem e vigilância,
próteses de mundos extintos.
Sempre foi do alto que os homens te olharam:
eles mesmos demônios de barro, silício e insensatez,
apesar da soberba e do mau tempo.
Posse, domínio e controle completo,
formas de extermínio e exaustão,
desatam incêndios incessantes,
desenham a dança de desertos florescentes.
No adubo bioperverso do necronegócio
cicatrizes costuradas a pavor pleno
proliferam como inscrições cuneiformes
de um DNA poético demencial, virótico.
É, então, lúcido e louco,
que saio com uma terrina cheia de líquidos e ternura
disposto a alimentar os animais noturnos
que pastam na última fronteira do mundo.
Ou o momento em que fertilizo,
com um chorinho com solo de clarinete,
as plantas aladas trazidas pelo sol.
Meu corpo roça o chão, se espoja, se cobre de lama
e folhagens.
Descubro a pele como simples maquiagem.
Meu rosto verdadeiro é um composto
de água, seiva, pólen, sangue, esperma, vento...
Posso decifrar o código:
carícia, luz e leveza compõem o segredo.
Felizmente, tenho minhocas na cabeça,
pássaros no dedo,
tigres nas veias.
Por isso meus oceanos e abismos conversam com os teus.
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INCRIADO
José Antônio Cavalcanti
Antes houvesse fundado
uma tribo de bárbaros.
Assim saberia o sabor
de incontáveis calamidades,
ouviria ossos assobiando agonias
entre tendas destruídas
e cupins de inútil mobília.
Insensato,
habitou entre demônios e ratos.
Vasculhou fendas invisíveis
no vasto e vulnerável horizonte.
Não navegou margens mallarmaicas
nem em homéricos mares naufragou
suas palavras malsãs e lunares.
Uma vulgaridade absurda gotejava
de seus poemas,
contaminava,
no chão poças de Vallejo, Khlébnikov,
Drummond, Montale
e um imóvel Brodsky,
a água impura dos poemas.
De tanto inventar-se, um outro
tomou-o por inteiro.
Nada sobrou
em pele ou cofre noturnos,
a não ser metáforas anacrônicas
em um caos digitalizado.