Luciana Viégas |
Luciana
Viégas é professora de língua portuguesa do Colégio Pedro II e doutoranda em
Literatura Brasileira na UFRJ. Além da atividade docente, vem trabalhando há
algum tempo na divulgação de obras de grande relevância para a literatura.
Traduziu O leitor comum, de Virgínia
Woolf (2007) e O tempero da vida e outros
ensaios, de G. K. Chesterton (2010), além de ter organizado os volumes A leitora e seus personagens e Escritos da maturidade (2005, 2ª. ed.),
ambos reunindo textos de Lúcia Miguel Pereira. Todos os seus livros foram lançados
pela Editora Graphia, que acaba de publicar o seu romance de estreia: A oficina.
Cruzamento
e dispersão de duas famílias - uma de Recife e outra de origem alemã, a narrativa faz de uma oficina em Laranjeiras, montada
pelos alemães, o núcleo memorialístico com o qual a trama tem início e
se fecha no capítulo 43. Entre motores a vida passa com suas idas e vindas, sem
qualquer espetacularização, sem excessos. O narrador parece nos dizer que uma
estrutura tão complexa como a existência
não precisa de grandes gestos ou de acontecimentos extraordinários. O
que ocorre em todos os trajetos já é suficiente para instalar espanto e
precariedade.
Há
um ritmo dotado de certa agilidade nos capítulos curtos, nos quais se misturam
planos diversos: Recife e oficina, presente e passado. A narrativa só
progressivamente desfaz a opacidade inicial, limpando os perfis indefinidos dos
personagens à medida que se avança na leitura. Não há uma disposição linear dos
fatos, deparamo-nos com uma rica teia que busca captar um tempo acelerado com
instrumentos que se sabe fadados ao não cumprimento de fixações e à consequente
armação de qualquer estabilidade. O tempo é o verdadeiro protagonista do
romance.
As
referências a inúmeros autores e faits
divers (veja-se o capítulo 40) balizam de historicidade os acontecimentos sem
historiografá-los, não são testemunhas da vida que passou, mas a experiência
que se presentifica na pele temporal das personagens O narrador consegue em
alguns momentos acender uma linguagem de leveza poética capaz de formar um
contraste com o tom irônico que incide sobre diversas passagens.
Carlos
Pena Filho, João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardoso, Jovem Guarda, Diretas
Já, Copa do Mundo, Gôngora, citações bíblicas, Anna Magnani (referência à atriz italiana Anna Magnani, do
filme "Roma, Cidade Aberta", comparada por Pedro à Tícia, filha do alemão dono da oficina), crônicas de Antônio
Maria, as de Rubem Braga nas páginas de O Cruzeiro, corridas de automóveis
pioneiras no Rio de Janeiro, os textos de Sérgio Porto no Última Hora, Nat King
Cole, Sinatra, Getúlio Vargas, Recife e Laranjeiras, há um intenso perpassar de
lembranças, processo construído talvez com excesso descritivo, como se houvesse
uma urgência em se livrar de tanta coisa presa na memória.
A
autora, em alguns momentos, tira bom efeito de recursos metalinguísticos.
Veja-se, por exemplo, o início do capítulo 25: “O correio eletrônico,
diariamente, posta brindes do Aulete. São verbetes descontextualizados, que
aparecem na linha ao lado do remetente. O primeiro impulso, nas primeiras
correspondências, é de apagá-los. Aos poucos, no entanto, conforme se vai
percebendo que podem ser termos regionais tornados engraçados diante do falar
hegemônico do sudeste, ou palavras retiradas do jargão universitário que usadas
em ambiente novo se esvaziam de certa sisudez, a curiosidade obriga a dar uma
parada e, se não se consegue ler a definição no momento, deixa-se a mensagem
esquecida por um tempo até que o verbete seja enfim lido e mandado para a lixeira.
Ontem me chegou o seguinte: alamoa: s. f., personagem lendária, Alamoa, galega,
lourota, branca azeda, nariz torto”. Essa definição serve para a inserir uma estrutura paródica sobre a
narrativa mítica em que o lendário configura-se como elemento prosaico,
esvaziado de dimensões extraordinárias. Termina a passagem com uma quebra
radical do recorte mítico, abrindo-se para o cenário de um comercial.
Ainda
vale a pena observar também o expressivo efeito obtido pela engenhosa narrativa
epistolar que constitui o capítulo 23. Os textos lacônicos dos bilhetes e das
cartas, associados às informações parentéticas, primam por expor a tensão
oculta nas palavras.
Um
técnica quase fractal exibe a realidade caleidoscópica da memória. Quase porque
nunca repete a mesma estrutura. Cada capítulo modifica o universo, apostando no
antilinear e na memória como o processo de formação do mapa de ilhas vividas em
ambientes e épocas distintas. A imagem reiterada do “piso de lajotas de
cerâmica vermelha com bordas arredondadas” parece nos remeter ao texto
construído como remontagem, um discurso em luta contra a força centrífuga do
tempo que só na escrita, essa ação de rejuntamento, consegue o mínimo de
coesão.
Freud
apontou para o fato de a memória implicar tanto a ausência quanto a presença,
ambas representadas no mesmo gesto: a presença de uma ausência. Embora
constituída num determinado percurso, a memória nunca é a repetição do mesmo,
sempre flutua, reconfigura-se, condenada a reinvenção constante de seu corpo
discursivo. Assim, o passado, se volta através da falta, isto é, através da
impossibilidade do seu resgate, permanece como lacuna. A memória é a invenção
do passado como legibilidade, por isso a falta é matriz da ficcionalidade, do
relato para inventar a memória, esse tempo sem passado.
Após
a leitura de A oficina esbarramos em
velhas questões. Que filtros atuam na depuração da memória a ponto de
transformá-la em ficção? Lugares, pessoas, objetos, situações existenciais,
anotações do precário ou inscrições que buscam ir além do horizonte do
provisório - o que busca na realidade o narrador: lembrar ou esquecer? Provavelmente
não haja nenhuma resposta. O narrador é aquele que fala de fora de qualquer
experiência, por isso tudo o que diz é ficção e toda ficção é impura, ou seja,
um terreno discursivo ilimitado. Isso é mais ou menos o que escreveu, com maior
propriedade, Beatriz Sarlo (sobre outro contexto, o das narrativas provocadas
por ditaduras):
“A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados, nem
pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência,
como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.”
Luciana Viégas, em sua primeira narrativa, já se revela possuída de
febre ficcional. Isso é garantia de novas páginas de alta temperatura no
horizonte.
Título: A oficina.
Autora: Luciana Viégas.
Editora: Graphia.
Páginas: 154.
Ano: 2012
Preço: R$ 40,00
Preço:
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