domingo, 22 de julho de 2012

A Oficina, de Luciana Viégas




Luciana Viégas


Luciana Viégas é professora de língua portuguesa do Colégio Pedro II e doutoranda em Literatura Brasileira na UFRJ. Além da atividade docente, vem trabalhando há algum tempo na divulgação de obras de grande relevância para a literatura. Traduziu O leitor comum, de Virgínia Woolf (2007) e O tempero da vida e outros ensaios, de G. K. Chesterton (2010), além de ter organizado os volumes A leitora e seus personagens e Escritos da maturidade (2005, 2ª. ed.), ambos reunindo textos de Lúcia Miguel Pereira. Todos os seus livros foram lançados pela Editora Graphia, que acaba de publicar o seu romance de estreia: A oficina.
Cruzamento e dispersão de duas famílias - uma de Recife e outra de origem alemã, a narrativa faz de uma oficina em Laranjeiras, montada pelos alemães, o núcleo memorialístico com o qual a trama tem início e se fecha no capítulo 43. Entre motores a vida passa com suas idas e vindas, sem qualquer espetacularização, sem excessos. O narrador parece nos dizer que uma estrutura tão complexa como a existência  não precisa de grandes gestos ou de acontecimentos extraordinários. O que ocorre em todos os trajetos já é suficiente para instalar espanto e precariedade.
Há um ritmo dotado de certa agilidade nos capítulos curtos, nos quais se misturam planos diversos: Recife e oficina, presente e passado. A narrativa só progressivamente desfaz a opacidade inicial, limpando os perfis indefinidos dos personagens à medida que se avança na leitura. Não há uma disposição linear dos fatos, deparamo-nos com uma rica teia que busca captar um tempo acelerado com instrumentos que se sabe fadados ao não cumprimento de fixações e à consequente armação de qualquer estabilidade. O tempo é o verdadeiro protagonista do romance.
As referências a inúmeros autores e faits divers (veja-se o capítulo 40) balizam de historicidade os acontecimentos sem historiografá-los, não são testemunhas da vida que passou, mas a experiência que se presentifica na pele temporal das personagens O narrador consegue em alguns momentos acender uma linguagem de leveza poética capaz de formar um contraste com o tom irônico que incide sobre diversas passagens.
Carlos Pena Filho, João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardoso, Jovem Guarda, Diretas Já, Copa do Mundo, Gôngora, citações bíblicas, Anna Magnani (referência à atriz italiana Anna Magnani, do filme "Roma, Cidade Aberta", comparada por Pedro à Tícia, filha do alemão dono da oficina), crônicas de Antônio Maria, as de Rubem Braga nas páginas de O Cruzeiro, corridas de automóveis pioneiras no Rio de Janeiro, os textos de Sérgio Porto no Última Hora, Nat King Cole, Sinatra, Getúlio Vargas, Recife e Laranjeiras, há um intenso perpassar de lembranças, processo construído talvez com excesso descritivo, como se houvesse uma urgência em se livrar de tanta coisa presa na memória.
A autora, em alguns momentos, tira bom efeito de recursos metalinguísticos. Veja-se, por exemplo, o início do capítulo 25: “O correio eletrônico, diariamente, posta brindes do Aulete. São verbetes descontextualizados, que aparecem na linha ao lado do remetente. O primeiro impulso, nas primeiras correspondências, é de apagá-los. Aos poucos, no entanto, conforme se vai percebendo que podem ser termos regionais tornados engraçados diante do falar hegemônico do sudeste, ou palavras retiradas do jargão universitário que usadas em ambiente novo se esvaziam de certa sisudez, a curiosidade obriga a dar uma parada e, se não se consegue ler a definição no momento, deixa-se a mensagem esquecida por um tempo até que o verbete seja enfim lido e mandado para a lixeira. Ontem me chegou o seguinte: alamoa: s. f., personagem lendária, Alamoa, galega, lourota, branca azeda, nariz torto”. Essa definição serve para a  inserir uma estrutura paródica sobre a narrativa mítica em que o lendário configura-se como elemento prosaico, esvaziado de dimensões extraordinárias. Termina a passagem com uma quebra radical do recorte mítico, abrindo-se para o cenário de um comercial.
Ainda vale a pena observar também o expressivo efeito obtido pela engenhosa narrativa epistolar que constitui o capítulo 23. Os textos lacônicos dos bilhetes e das cartas, associados às informações parentéticas, primam por expor a tensão oculta nas palavras.    
Um técnica quase fractal exibe a realidade caleidoscópica da memória. Quase porque nunca repete a mesma estrutura. Cada capítulo modifica o universo, apostando no antilinear e na memória como o processo de formação do mapa de ilhas vividas em ambientes e épocas distintas. A imagem reiterada do “piso de lajotas de cerâmica vermelha com bordas arredondadas” parece nos remeter ao texto construído como remontagem, um discurso em luta contra a força centrífuga do tempo que só na escrita, essa ação de rejuntamento, consegue o mínimo de coesão.
Freud apontou para o fato de a memória implicar tanto a ausência quanto a presença, ambas representadas no mesmo gesto: a presença de uma ausência. Embora constituída num determinado percurso, a memória nunca é a repetição do mesmo, sempre flutua, reconfigura-se, condenada a reinvenção constante de seu corpo discursivo. Assim, o passado, se volta através da falta, isto é, através da impossibilidade do seu resgate, permanece como lacuna. A memória é a invenção do passado como legibilidade, por isso a falta é matriz da ficcionalidade, do relato para inventar a memória, esse tempo sem passado.
Após a leitura de A oficina esbarramos em velhas questões. Que filtros atuam na depuração da memória a ponto de transformá-la em ficção? Lugares, pessoas, objetos, situações existenciais, anotações do precário ou inscrições que buscam ir além do horizonte do provisório - o que busca na realidade o narrador: lembrar ou esquecer? Provavelmente não haja nenhuma resposta. O narrador é aquele que fala de fora de qualquer experiência, por isso tudo o que diz é ficção e toda ficção é impura, ou seja, um terreno discursivo ilimitado. Isso é mais ou menos o que escreveu, com maior propriedade, Beatriz Sarlo (sobre outro contexto, o das narrativas provocadas por ditaduras):
“A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados, nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.”
Luciana Viégas, em sua primeira narrativa, já se revela possuída de febre ficcional. Isso é garantia de novas páginas de alta temperatura no horizonte.


Título: A oficina.
Autora: Luciana Viégas.
Editora: Graphia.
Páginas: 154. 
Ano: 2012
Preço:  R$ 40,00
Preço: 

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