A arte infraleve de Enrique Vila-Matas
Depois da densa narrativa de Dublinesca (2011), o público brasileiro tem acesso ao último romance de Enrique Vila-Matas, Ar de Dylan, que vem se juntar a outros já publicados no Brasil, como A viagem vertical (2004), Bartebly e Companhia (2004). Mal de Montano (2005), Suicídios exemplares (2009), Dr. Pasavento (2010), História Abreviada da Literatura Portátil (2011).
A história começa com um convite formulado pela universidade suíça de St. Gallen ao narrador para participar de um congresso internacional sobre o fracasso. Lá encontra o jovem Vilnius Lancastre, publicitário fracassado, diretor de um único curta-metragem de nome bizarro, Radio Babaouo, e às voltas com a construção de um inacreditável Arquivo Geral do Fracasso. A característica, no entanto, que chama a atenção de todos é a extrema semelhança física do jovem com Bob Dylan. Após cair e sofrer uma pancada na cabeça, Vilnius passa a ter a mente invadida pela memória do pai, Juan Lancastre, escritor cuja fama fora construída pela estranha capacidade de ser um especialista na arte da interrupção, fazendo do inacabado o próprio horizonte da escrita.
Vila Matas explora novamente a ideia de inação, tão central à narrativa de Bartebly. Vilnius vive sob o signo de Oblómov, “personagem radicalmente vadio de um romance russo, paradigma do não fazer nada”, e próximo ao princípio da renúncia walseriana, numa sátira à produtividade literária. As ideias de esforço, trabalho, continuidade e transcendência atribuídas à arte dissolvem-se numa teatralidade de tom kafkiano em que a cultura transforma-se em espelho paródico. Num filtro mais apurado, percebe-se a obsessão dos narradores construídos pelo ficcionista em apontar para o topos do criador como um terreno marginal e à deriva, cuja consistência aérea, um fazer nada altamente concentrado e produtivo, propicia a gênese da arte.
Organizado em nove capítulos, o romance divide-se em quatro partes: Teatro verdade, Teatro da ratoeira, “Under the Mango Tree” e Teatro da memória, funcionando o capítulo inicial como uma espécie de prólogo em que o narrador, semelhante a um diretor teatral, expõe a concepção que sustenta a peça narrativa: a íntima ligação entre o fracasso e a literatura.
O gesto teatral da esposa do inominado narrador ao entregar-lhe o convite, a encenação de justificativas para encarnar o papel de expectador privilegiado do evento, a organização do texto como se as partes correspondessem a atos, as longas digressões performáticas de Vilnius Lancastre, protagonista da história (posição por vezes ocupada pelo pai), somadas à irrupção cênica de sua amante e cúmplice, Débora, a experiência do narrador como personagem-expectador do relato do “little Dylan”, transformado posteriormente, de modo rocambolesco, em autor da autobiografia apócrifa de Juan Lancastre, tudo aponta para a literatura como uma escrita encenada na qual realidade e invenção entram de maneira indistinguível. O título “Ar de Dylan” parece, assim, mais uma manobra diversionista, pois não é a música o centro de referência. No caso, as aparências enganam, e esse é o jogo da ficção.
Desde o início vemos que Vila-Matas aproveita da história policial o método de construção de falsas pistas, num exercício deliberado de desorientação da leitura.
Mesmo a reiterada alusão ao universo teatral, não supera as numerosas menções a filmes e a intervenção do cinema na busca, talvez fosse melhor pensar na deriva, do jovem Vilnius, pois uma frase do roteiro adquire uma importância extrema no desenvolvimento do romance. Trata-se de uma passagem banal, metáfora rala com sabor de autoajuda: “Quando escurece, precisamos sempre de alguém”. A frase, retirada do filme Três Camaradas, dirigido por Frank Borzage, é atribuída por Vilnius a F. Scott Fitzgerald. Logo a seguir essa versão é posta em dúvida, pois o roteiro do filme passou por oito mãos, fato que não desanima o cineasta fracassado que segue aleatoriamente em busca da identificação do verdadeiro autor. Investigação detetivesca, fio de Sherazade e roteiro cinematrográfico jogam com as ideias de autoria, apropriação e originalidade, valendo-se da inesgotável busca de sentidos originários em texto em constante mutação.
A referência a Hamlet é uma forma de ligar Vilnius, o pai, transformado em fantasma, a mãe, representada como uma Gertrude caricata até na morte, e o amante desta, um crítico cinematográfico, denominado Cláudio, como o sucessor do rei Hamlet na obra de Shakespeare. A esse núcleo se acrescenta a figura de Débora, amante do pai herdada pelo filho.
Não me parece muito apropriada a crítica feita ao escritor catalão por alguns espíritos mais arredios ao seu processo criativo. Para estes, Vila-Matas é um criador de marionetes pós-modernas sem consistência, um escritor com fraco poder narrativo que, incapaz de engendrar uma boa história, acaba inchando as narrativas de citações e referências, ganhando peso e brilho com letras alheias, incorrendo numa metaliteratura meramente exibicionista, sem alma e profundidade. Aqui acredito existirem ainda as linhas de resistências nostálgicas dos grandes relatos, a sombra do realismo oitocentista.
O próprio Vila-Matas situou a nova narrativa naquilo que denominou uma linha "shandy" que se inicia com História Abreviada da Literatura, atravessa Bartleby e Companhia e alcança Ar de Dylan, numa espécie de atualização do universo ficcional de Tristram Shandy, de Laurence Sterne. O privilégio concedido à literatura como jogo e encenação talvez pese na armação do romance. O narrador apresenta-se como um “escritor arrependido de ter sido tão prolífico que tentava deixar de escrever”, completamente esgotado prepara-se para a aposentadoria, porém, envolvido pelo relato de Vilnius, termina por reocupar o espaço habitual ao aceitar o papel de falsificador da história, prisioneiro do labirinto da criação. Como um narrador-Bartleby, narra, mas preferiria não fazê-lo. Note-se que há uma proposital semelhança entre o narrador descrito e a figura do própro Vila-Matas.
A passagem a seguir parece sustentar tal aproximação: “Eu tinha resolvido secretamente, antes de conhecer vocês, eu disse a Débora, não escrever mais nenhum livro, pois estava muito arrependido, quase dolorido, por todos os que havia publicado ao longo de minha vida, mas finalmente decidira prorrogar por uns meses o momento de me aposentar, pois sentia que precisava contar a surpreendente história que, com eles como protagonistas, vinha me encontrando nos últimos tempos na vida real: a história de como um luto pode ir engendrando uma nova família para um morto; a história, além disso, de uns jovens poéticos e doentios, Oblómovs consumados, perdidos no vazio cultural de sua terra e com tendência a ser, até limites insuspeitados, preguiçosos e avessos ao esforço; uma história de luto e abismo que, quando fosse publicada, seguramente revelaria muito mais sobre Lancastre do que suas próprias memórias abreviadas e com o tempo seria lido como uma verdadeira autobiografia, porque se veria que a alma moderna, o ar de Dylan, a essência de nossa época, não podia estar mais bem retratada nela”.
Alcir Pécora, numa crítica ácida ao romance, vê no processo criativo de Vila-Matas um movimento circular por ele denominado “pitoresco literário” – a sobreposição do anedótico como rarefação da ficcionalidade. No entanto, Vilnius elabora uma crítica à obra de Juan Lancastre que parece, na verdade, endereçada ao universo vila-matiano: o jovem discorda do insuportável autoritarismo do artista, das constantes mudanças modernas de pele e de personalidade, dos jogos literários e das persistentes ficções apresentadas com frequência como fatos reais, do orgulho manifesto na diminuição das barreiras entre gêneros, do uso insistente de citações, do humor juvenil e da fuga ao classicismo. Estabilidade e experimentalismo separam, na narrativa, pai e filho.
O autor catalão valoriza “a arte infraleve”, leveza manifestada sob a forma do aleatório, instável e proteico. O fermento de Marcel Duchamp alimenta a base da sociedade chamada Ar de Dylan, homenagem ao esquivo e múltiplo Bob Dylan.
A criação vinga sob a sombra do deus Hermes: “polítropo, ou seja, homem de engenho multiforme, como Odisseu, e possuidor dos mais astutos pensamentos. Sua ciência, ouvi Vilnius dizer, era a politropia, dote que só se recebia ao nascer. A mente de Hermes tinha muitas formas, dobras e aspectos distintos. Era muito flexível. Transformava-se incessantemente. Se a realidade era múltipla e casual, ele a tornava ainda mais multiforme e casual. Tinha, além disso, uma mente de muitas gamas diferentes e a estranha propriedade de exibir todas as idades e todas as etapas pelas quais haviam passado todos os Hamlet, todos os Dylan”.
Há muitos níveis de leituras na narrativa de Vila-Matas: os limites entre a realidade e a ficção, a utilidade da literatura, a autenticidade e a impostura nas artes, a legibilidade e o ilegível, o direito ao fracasso, a ficção como aproximação da verdade, a exposição de modelos narrativos, o conflito de gerações, a banalização da cultura, a busca identitária, e tantos níveis quanto os leitores, cúmplices do jogo, forem capazes de descobrir. E isso não é pouco.
Autor: Enrique Vila-Matas
Tradutor: José Rubens Siqueira
Editora: Cosac
Naify
Ano: 2012
Páginas: 320
Preço: R$ 59,00
Olá, José Antonio!
ResponderExcluirConfesso, nnca li nenhum livro do autor apresentado, por isso não me sinto capaz de comentar, ou caíria na superficialidade, como muitos fazem, do tipo "belo texto", e esse não é meu jeito de ser.
Obrigada pelo convite, sinta-se à vontade para enviar outros.
Muito bacana o seu Blog e muito interessante seu post:apesar de não ter lido o autor,provoca uma certa curiosidade em ler o livro!Visite o meu Blog,quando quiser! Atlântida:http://dalvaamaral.blogspot.com
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