Afinidades conflitivas
de duas velhas senhoras
I
Houve, quando ambas ainda existiam plenamente
no vigor de um tempo ainda não transformado em moeda, uma rusga entre poesia e
filosofia. A tradição lançou sobre Platão a responsabilidade por acirrar a
desavença entre filósofos e poetas. Todos devem se lembrar de que em A República, no Livro X, o discípulo de
Sócrates lançou um anátema sobre os poetas, expulsando-os da pólis ideal, com exceção dos autores de
“hinos aos deuses e encômios aos varões honestos e nada mais”.
A benevolência com o laudatório comprova
que o receio de Platão não se voltava contra toda forma poética, mas
especialmente contra aquela poesia por ele considerada “mimética”, forma
destruidora da inteligência, responsável por fazer com que o prazer e a dor
assumissem o controle da cidade em detrimento da lei e do princípio tido como o
melhor para comunidade.
O filósofo ateniense afirmou que a poesia
mimética “imita homens entregues a ações forçadas ou voluntárias, e que, em
consequência de as terem praticado, pensam ser felizes ou infelizes,
afligindo-se ou regozijando-se em todas essas circunstâncias”. O poeta, assim,
instauraria na alma dos cidadãos um mau governo, inflamando paixões, despertando
a parte irracional, alimentando fantasias e gerando descontrole e turbulência. Era
o mundo sensível atropelando o mundo inteligível, a ilusão impedindo a nôesis, sem a qual o Bem é inalcançável
e a humanidade permanecerá retida ad infinitum na zona de sombras onde se
atolou.
Com isso não se esgota a visão platônica,
de extraordinária complexidade. Basta observar que no diálogo Fedro, uma análise do Belo, o autor, ao
formular a lei de Adastreia, reguladora do retorno ao mundo das almas que não
conseguiram fugir à doxa, devolve aquelas mais próximas da libertação a “um
homem destinado a ser amigo da sabedoria e da beleza ou cultor das Musas e do
amor”, ambos no mesmo plano, portanto, acima de reis, guerreiros, políticos,
comerciantes etc. Tanto o filósofo quanto o poeta possuem, então, almas com
maior capacidade de captar o reflexo das ideias que contemplaram em existências
anteriores.
Importa
também observar que o anátema sobre a poesia foi lançado por um autor que
recorreu ao longo de seus textos à tradição poética grega da qual se revela
profundo conhecedor. Além disso, a construção da dialética platônica
aproxima-se em muitos momentos da linguagem poética. Isso jogo mais lenha na
fogueira e nos faz evitar visões ligeiras e pre/conceituosas sobre as ideias
platônicas.
Maior deve ser o cuidado quando se sabe também
que Platão não concedia grande importância à escrita, apesar dos numerosos
diálogos e cartas que chegaram até nós. Isso pode ser observado na passagem de Fedro em que Sócrates critica a invenção
da escrita, obra de um demônio egípcio, Teute, que a teria apresentado ao rei Tamuz como um remédio para o
esquecimento e a ignorância: “Confiante na escrita, será por meios externos,
com a ajuda de caracteres estranhos, não no seu próprio íntimo e graças a eles mesmos,
que passarão a despertar suas reminiscências. Não descobriste o remédio para a
memória, mas apenas para a lembrança. O que ofereces aos que estudam é simples
aparência do saber, não a própria realidade”.
A poesia,
a arte em geral na formulação platônica, capta a ausência, o nada e constrói-se sob o vazio; dele faz sua
morada e dele, somente dele, do não lugar da arte, pode pro-duzir, no sentido
atribuído ao termo por Platão em O
banquete e recuperado por Heidegger: “Todo deixar-viger o que passa e
procede do não vigente para a vigência é ποίησις, é pro-dução”.
A criação é o hiato entre o nada e o criado, entre o não existir e o
vir-ao-mundo. Aquilo que é gerado já não está no momento da própria geração,
apesar de carregá-lo para sempre sob a forma do esquecimento. Na fenda criadora
vige a inapreensibilidade da existência, fluxo contínuo e simultâneo de vida e
morte.
Agamben opera uma suspensão do tensionamento matricial da obra em
Heidegger, instância entre ser e não ser que aparece pronta, acabada,
fixada na finitude que a informa como um mundo fechado. A posição sustentada
por uma longa tradição filosófica, aos olhos do filósofo italiano, reduz a obra
apenas à sua superfície visível, perdendo o que escapa à apreensão imediata, ou
seja, a própria arte. O que evita o esgotamento da obra é a percepção de que:
O ato de
criação não é, na realidade, segundo a instigante concepção corrente, um
processo que caminha da potência
para o ato para nele se esgotar, mas contém no
seu centro
um ato de descriação [grifo do
autor], no qual o que foi e o que não
foi
acabam restituídos à sua unidade originária na mente de Deus, e
o que podia
não ser e foi se dissipa no
que podia ser e não foi.
Alberto Pucheu, em ensaio sobre Estâncias,
expôs com bastante propriedade o desvio agambeniano em relação ao produzir da
obra de arte.
Se (...) a tradição
fazia com que a
criação fosse compreendida
enquanto a
passagem
do não-ser ao ser, do informe à forma, da potência ao ato, do velado ao
desvelado,
considerando a obra
como pronta, acabada,
esgotada, o filósofo
afirmaria que a obra
de arte oferece
no ser a afluência do não ser, na forma a
afluência
do informe, no ato a afluência da
potência, no desvelado a afluência do
velado,
fazendo com que, no retorno constante
ao de onde veio privilegiado, ela
seja
sempre, inconclusiva, inacabável, inesgotável...
Para Heidegger a pro-dução e o pro-duzir devem ser percebidos mediante a
recuperação de sua significação para os gregos. Desse modo, não nomeia apenas
os processos relativos ao artesanato e às formas poéticas e artísticas, mas,
principalmente, a ϕύσιϛ [physis], sua forma
máxima, pois independe de algo exterior a ela, já que porta em si mesma o
eclodir da pro-dução. A matriz originária não estabelece, portanto, distinções
entre o que foi criado.
Ao questionar o significado da técnica e ao evocar a essência grega da
causalidade, o autor de Ser e tempo
aclara o conceito de pro-dução:
O deixar-viger concerne
à vigência daquilo que, na
pro-dução e no pro-duzir,
chega
a aparecer e
apresentar-se. A pro-dução conduz
do encobrimento para
o desencobrimento. Só se dá no sentido próprio de uma
pro-dução, enquanto e
na medida
em que alguma
coisa encoberta chega
ao des-encobrir-se. Este
chegar repousa e
oscila no processo
que chamamos de
desencobrimento.
Para tal, os
gregos possuíam a
palavra ὰλήθεια [aletheia]. Os romanos
a
traduziram por veritas.
Nós dizemos “verdade”
e a entendemos
geralmente
como o correto de uma
representação.
Após
o filósofo constatar que a essência da técnica não é um simples meio, um outro
olhar a lança, então, no âmbito do des-encobrimento, ou seja, da aletheia. Assim, a palavra grega Τεχνικόν
refere-se ao que pertence a τέχνη de dupla maneira: tanto ao
fazer da habilidade artesanal quanto ao fazer da grande arte e das belas-artes.
A τέχνη
pertence à ποίησιϛ. Até a época de Platão, τέχνη e έπιστήμη
[episteme] eram palavras
utilizadas para designar o conhecimento em seu sentido mais amplo.
As
ideias heideggerianas apontam para a rica possibilidade aberta pela ruptura das
fronteiras demarcatórias do conhecimento, das linhas limítrofes entre técnica,
arte e pensamento. Na busca da essência da técnica, vislumbra-se o originário
da arte, concebida como o desencobrimento que leva a verdade ao fulgor de sua
plena vigência.
A palavra técnica, usada para referência à
técnica e à criação artística, reunia num único des-encobrir uma infinidade de
desdobramentos. Por isso, Heidegger diz que as artes não surgiram de um campo
determinado da criação, não se originavam do artístico.
Mas, então, como era a
arte? Talvez somente por poucos anos, embora
anos
sublimes? Por que a arte tinha o nome simples e singelo de τέχνη? Porque era
um des-encobrir pro-dutor
e pertencia à ποίησιϛ.
O último des-velo,
que
atravessa toda arte do belo, era ποίησιϛ,
era poesia.
Quase ao final do ensaio “A questão da técnica”, o autor aponta para o
vigor do poético no desvelamento da verdade:
É o poético que leva a verdade
ao esplendor superlativo
que, no Fedro, Platão
chama de τό έκϕανέστατον, “o que sai a brilhar da forma superlativa”. O
poético
atravessa, com seu vigor, toda
arte, todo desencobrimento do que vige na beleza.
O
ensaio de Heidegger retoma e sintetiza reflexões apresentadas em A origem da obra de arte, em que o autor já afirmava que a essência da arte
guarda o originário. Após analisar a relação entre arte, artista e obra,
constata que a arte só pode ser apreendida da obra, apreensão que se dá como
virtualidade, pois o que é a arte permanece constante opacidade. O caráter de
coisa das obras não facilita a aproximação porque a arte é o que escapa às
coisas e à própria obra, esta última é, na verdade, forma simbólica na qual a
arte anuncia a sua presença e fuga simultâneas. A partir da análise da reprodução
pictórica de um par de sapatos de camponês por Van Gogh, o autor afirma que “a
essência da arte seria então o pôr-se-em-obra da verdade
do ente”, ou seja, escapa à coisalidade que a
constitui para abrir-se como um mundo
para nós.
Concebida a criação como um produzir, torna-se impossível distinguir
entre produção artística e não artística, ambas abrigadas no termo τέχνη,
já que os gregos referiam-se indistintamente ao artesão e ao artista como τέχνιτηϛ. As duas formas compartilham de idêntica
natureza determinada pela essência da criação e por nela permanecerem retidas.
Heidegger afirma que “o tornar-se-obra da obra é um modo do passar-a-ser
e de acontecer da verdade”. A verdade guarda a duplicidade de ser passagem: “A
verdade é não verdade, na medida em que lhe pertence o domínio de proveniência
do ainda-não-(des)-ocultado, no sentido da ocultação”. Na verdade pulsa a tensão entre o negativo e
o positivo: “A verdade é o combate original no qual, de cada vez a seu modo, é
conquistado o aberto, no qual tudo assoma e a partir do qual se retrai tudo o
que se mostra e se erige como ente”. Entendido o nada como a negação do ente e
vendo-se neste aquilo que está disponível e aparece no estar-aí da obra,
pode-se admitir que a verdade advém do
nada.
A exemplo
do ensaio “A questão da técnica”, Heidegger concede grande relevância à poesia
no processo de desocultação da verdade, entendida como um acontecimento que se
dá mediante um processo radicado na poeticidade, caminho que o leva a declarar
que “Toda a arte [grifo do autor] , enquanto deixar-acontecer da adveniência da
verdade do ente como tal, é na sua essência Poesia [grifo do autor]”).
Para
justificar o primado do poético no terreno das artes, o filósofo formula uma
concepção de linguagem.
A linguagem não é apenas – e não
é em primeiro lugar – uma expressão oral
e
escrita do que importa comunicar. Não transporta apenas em palavras
e frases o
patente e o latente visado como tal, mas
a linguagem é o que primeiro
traz ao
aberto o ente enquanto ente.
Na
reflexão heideggeriana de linguagem, a poesia ocupa um lugar especial:
A própria linguagem é Poesia em sentido essencial. Mas, porque a
linguagem é o
acontecimento em que, para
o homem, o ente
como ente se
abre, a poesia, a
Poesia em sentido
estrito, é a Poesia mais original, no
sentido do essencial. A
linguagem não é, por isso, Poesia, por ser a poesia
primordial (Urpoesie), mas a
poesia acontece na linguagem,
porque esta guarda a essência original da Poesia.
O
vigor do poético imantiza a prosa a partir do século XIX e causa a indistinção
das fronteiras clássicas, ultrapassando as marcas de empréstimos mútuos para
inscrever a criação no interior da junção e fratura da linguagem. A poeticidade
constitui-se no centro do processo irradiador. A prosa passou a ser
compreendida como uma forma que perdera a eficácia. O laço estreito entre prosa
e representação, ao ser rompido, colocou a nu a insuficiência de seus recursos.
A prosa era um discurso-simulacro-do-real. Buscou, então, no poético não apenas
a sonoridade, mas a liberdade, a poiesis,
a invenção, o instrumental necessário à produção de um discurso
desreferencializado em relação ao real ao qual caberia a ela somente
transcrever, recodificando-o em literatura. A poesia permitiu a prosa
instituir-se verdadeiramente como prosa, efetivamente ficcionalizar-se. Foi
necessário a vida morrer na prosa para que a prosa pudesse renascer.
Se
os modos de assumir o poema são revolvidos pelo surgimento do verso livre, do
poema em prosa e da constelação gráfica, a prosa também organiza novos modos na
contramão do representacional, reinventando-se como forma poética. Portanto,
constrói-se um caminho de mão dupla para configurar na criação literária a
vigência do indiscernível. Não se trata de auferir ao texto literário a
propriedade conceitual em que o texto filosófico guarda as fronteiras de seu
domínio, mas de avançar rumo ao que surge da vizinhança, do voltar-se da prosa
poética para a prosa teórica e vice-versa. Trata-se de desguarnecer fronteiras,
deixar o texto exposto ao precário de sua natureza, exposto como linguagem, que
é fratura e salto simultâneos.
Heidegger aponta exatamente para uma zona de confluência entre poesia e
pensamento, sob a sombra da linguagem, embora vá apenas a determinado ponto, o
limite do próprio de cada esfera:
Tanto a poesia
como o pensamento
movimentam-se no elemento
do dizer.
Pensando a poesia, já
nos vemos no mesmo elemento em que se movimenta o
pensamento. Aqui não
é possível decidir
se a poesia
é propriamente um
pensamento ou se o
pensamento é propriamente
poesia. Fica obscuro o que
determina a sua relação
mais própria e a partir de onde isso
que chamamos sem
hesitar de próprio
surge propriamente. No entanto, qualquer que seja
o modo
em que nos vem à mente
poesia e pensamento, um mesmo elemento já sempre
está a nos alimentar, quer lhe prestemos atenção ou não. Esse elemento é a
saga
do dizer.
Guarda, assim, o filósofo as marcas
segregadoras na distância mantida pelo próprio do pensamento e da poesia, cuja
ultrapassagem não arrisca, preferindo estabelecer na vizinhança uma propriedade
de trocas enriquecedoras. Ainda que Heidegger resvale numa mudança de rumo que
torna o seu pensamento impensável sem o poético, insiste em guarnecer as
fronteiras seculares da separação, aderindo à distinção hölderliana e revelando
uma dívida ao hegelianismo:
Mas pelo fato de a poesia, em comparação com o
pensamento, estar de modo
bem diverso e privilegiado a serviço da
linguagem, nosso encontro que
medita
sobre a filosofia é
necessariamente levado a discutir a
relação entre pensar
e
poetar. Entre ambos, pensar e
poetar, impera um oculto
parentesco porque
ambos, a serviço da linguagem, intervêm por ela e
por ela se sacrificam. Entre
ambos, entretanto, se abre ao
mesmo tempo um
abismo, pois “moram nas
montanhas mais separadas”.
II
Não é muito comum encontrarmos autores que
transitem pelas duas áreas com a mesma desenvoltura. Antonio Cicero faz parte
do seleto grupo para o qual a poesia não significa o abandono da filosofia.
Prova viva dessa afirmação é o lançamento simultâneo de dois livros, Porventura, de poemas, e Poesia e filosofia, um conjunto de
pequenos ensaios sobre o parentesco entre os dois discursos.
Antonio Cicero, oriundo de família de
intelectuais. Possui sólida formação. Fugindo ao clima opressivo da ditadura,
conclui o curso de filosofia na Universidade de Londres e fez pós-graduação na
Universidade Georgetown, nos EUA.. Conhece grego e latim, o que lhe dá uma boa
visão dos textos clássicos, tanto dos filosóficos quanto dos poéticos. Por
outro lado, lida bem com as formas da contemporaneidade: tornou-se um letrista
importante, lançou cd com leitura de seus textos, participou do filme Tabu, de
Júlio Bressane, mantém o blog Acontecimentos, espécie de antologia pessoal
propiciada pela tecnologia, além de ser
figura muito requisitada para eventos nos quais a cultura é o centro das
atenções.
De sua produção anterior, vale a pena
mencionar O mundo desde o fim (1995)
e Finalidades sem fim (2005), ambos
voltados para a reflexão, e Guardar
(1996) e A cidade e os livros (2002),
livros de poesia.
O autor deixa bem claro na introdução à Poesia e filosofia o ângulo a partir do
qual tece as suas ideias: “penso que a poesia e a filosofia são atividades
humanas inteiramente diferentes uma da outra”. Tal posição, aparentemente
óbvia, serve para marcar um distanciamento da corrente contemporânea que busca
uma aproximação entre as duas linguagens, processo iniciado no primeiro
romantismo alemão e que encontra em Giorgio Agamben e Alberto Pucheu argutos
pensadores de novas possibilidades.
Admite Cicero a existência de um filósofo que jamais tenha escrito uma linha; toma Sócrates
para exemplificar a tese, o que me parece estranho, pois o mentor de Platão
teria elaborado, refinado e criado métodos e modos dialéticos de filosofar,
limitando-se apenas a deixá-los banhados em pura oralidade. No entanto, não
compreendi a razão pela qual não admite a existência de um indivíduo capaz de
ser efetivamente poeta sem obra. Ainda mais se pensarmos que a poesia só existe
em fuga, como impossibilidade, melhor, como potência da linguagem que se
materializa no poema sempre como falta.
Uma característica comum à filosofia e à
poesia é não possuírem nenhuma utilidade prática, a primeira por privilegiar à
abstração, a segunda por também corresponder à imersão em território
imaginário. Outra característica, responsável pela marginalidade de ambas na
sociedade contemporânea, é a despreocupação com a temporalidade numa época de
aceleração incontrolável do tempo. A transformação do tempo em mercadoria
eliminou a noção de tempo livre, a fruição de autonomia, o espaço de
movimentação da subjetividade, de transformação interna, o ócio criativo, a
margem reflexiva, enfim, expurgou o tempo similar ao do demônio do meio-dia, o
filtro interno em que o mundo se realimenta e se reinventa. O princípio do
desempenho corresponde ao processo de instrumentalização do ser humano, sua
apropriação pelo reino espetacularizado e produtivista do imediato. Ora, o
poema não rende, não produz nada que já não esteja nele encerrado. O valor do
poema não é semelhante ao da acumulação de capital. Autotélica linguagem, vale
em si mesma. Nesse sentido, tanto a poesia quanto a filosofia rompem com a
linha de montagem e o consequente utilitarismo. Temos, então, um paradoxo: não
há espaço para ambas numa cultura cada vez mais chapada, googlada, digitalizada,
instantânea, por outro lado, nunca foram tão necessárias.
Antonio Cicero toma emprestado o título de
um livro de Carlos Drummond de Andrade – A
vida passada a limpo – para exemplificar alguns aspectos do trabalho
poético. O poema advém de uma tomada de decisão ou de algum acaso inicial. O
autor deixa de fora a possibilidade de possessão, ou seja, de o poema assaltar
o poeta, invadi-lo, obrigá-lo a dar-lhe forma. Qualquer que seja o caminho, todavia,
o trabalho envolve um complexo processo de escolhas; título, extensão, métrica
ou não, versos rimados ou brancos, forma buscada na tradição ou proposta
experimental etc. Isso no plano macro, digamos assim, porque o poema exige, na
realidade, uma escolha a cada palavra. Fora a lapidação, a reescritura, às
vezes a completa transformação textual. Cada mudança no poema implica uma
mudança de todo o universo. Na depuração do texto, muitos universos são
suprimidos pela eternidade. Acontece que um poeta não é apenas o que faz versos
ou poemas sem versos, mas o arquiteto de uma determinada poética, cria, assim,
o barco, o rumo e o sistema de navegação em que se movimenta.
Não acredito, como Cicero, que o fim da
vida de um poeta seja virar poesia, poeta não possui fim propriamente, é aquele
que se lança ao inalcançável, o portador da recusa à limitação da vida e da
linguagem. Não há poesia sem risco, sem a possibilidade do caminho de
Hölderlin. Certamente há uma muito
arraigada visão de poesia como zona de conforto, abrigo, autoajuda,
melíflua musicalidade, terapia, aquilo que vulgarmente denominamos perfumaria. Mais
ainda: não há um caminho, receita, certificado de garantia. A fruição de um
único poema revela modos diversos de o leitor ideal fazer valer o tempo
livre, investindo numa “leitura ao mesmo
tempo vagarosa e ligeira, reflexiva e intuitiva, auscultativa e conotativa,
prospectiva e retrospectiva, linear e não linear, imanente e transcendente,
imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingênua e informada”.
“Um poema não se faz com ideias, mas com
palavras”, a resposta de Mallarmé a Degas, que acreditava que por possuir
muitas ideias poderia convertê-las em poemas, é exemplar na demarcação de
territórios alheios, mas me parece insuficiente para impedir a percepção do
texto poético como uma estrutura extremamente porosa aos ventos que sopram de
outros campos do conhecimento. O em-si do poema, a sua monumentalização, talvez
seja uma forma de mantê-lo intocado, num estado de pureza que não corresponde
ao terreno das artes, avesso à organização de materiais em prateleiras
arrumadas, rotuladas, submetidas à padronização científica ocasionalmente impostas
por pensadores tentam aos artistas. A frase de Mallarmé mapeia o centro nervoso
da produção poética, a palavra, é verdade, mas não existe algo tão fugidio
quanto a apreensão do significado dessa palavra, um conceito no qual se cruzam
caminhos diversos e nos constitui como sujeitos.
No quarto ensaio do livro, o autor faz uma
distinção entre “pensar o mundo” e “pensar sobre o mundo” de extrema
importância para compreender o jogo de separação e aproximação entre poesia e
filosofia. Cicero explora a diversidade sintática para refinar o pensamento
sobre a questão. Para ele, a presença da preposição após o verbo pensar,
construção mais usual, corresponde ao pensamento discursivo ou dianoético,
segundo a classificação aristotélica, já a supressão do conector seria uma
forma do pensamento intuitivo e noético. Isso significa que a cisão trazida ao
enunciado pela preposição, cria a possibilidade do pensamento filosófico pleno
ao transformar o mundo em uma “totalidade” a ser pensada pelo sujeito. Sem a
preposição, o pensamento rompe a segregação e passa a fazer parte também do
mundo. Nas palavras do autor: “a abolição da preposição sugere a abolição da
separação e da mediação entre o pensamento e a coisa pensada. É como se o
pensamento não ficasse sobre, isto é,
acima ou, de algum modo, fora do
mundo, para pensá-lo”. Portanto, há um pensamento solto, informe, apropriado
por todos, e há um pensamento formalizado, preso ao rigor e às exigências da
filosofia. Pensar o mundo é uma das possibilidades da poesia, como demonstra o
autor ao final do ensaio com uma análise do poema “O rio”, de Manuel Bandeira,
e a exposição do poema Nuvens, de Jorge Luis Borges. Aliás, um dos pontos altos
do livro é o uso de excelente repertório de poemas magistralmente utilizados na
defesa das concepções do autor.
O quarto ensaio prepara o leitor para a percepção
da natureza desigual das nuvens em que se movem poetas e filósofos. Cicero
explicita as diferenças: “Os assuntos do poeta não são tão genéricos e
abstratos quanto os do filósofo”. Antecipa possível objeção daqueles que não
acreditam na sua defesa de separação tão radical, por isso não acredita que os
poetas abordem de modo figurativo e implícito os assuntos tratados pelos
filósofos. Entende que é justamente quando mais parece se aproximar do universo
filosófico que a poesia dele se afasta. Toma da Ode I.xi, de Horácio, um dos
mais tradicionais motivos poéticos, o carpe
diem, como exemplo de comprovação de sua tese. Acrescenta que, em termos
filosóficos, não há absolutamente nenhuma novidade na ode horaciana. Isso não implica
a supressão de seu caráter de obra-prima, serve para comprovar que a filosofia
não é o “ponto de chegada” do poema, apenas um dos elementos integrantes de sua
composição. A perfeição e a beleza da ode são propiciadas por outros recursos.
Para tornar mais claro o seu ponto de
vista, o autor enfatiza: “Sustento que a poesia enquanto poesia é inteiramente
diferente da filosofia enquanto filosofia”. Para acrescentar: “Não é que não
haja poemas que contenham teses filosóficas ou textos filosóficos que contenham
trechos poéticos. É que o que torna um poema admirável enquanto poesia não é o
que torna um texto filosófico admirável enquanto filosofia”.
Considero um raciocínio quase irretocável,
só me pergunto se realmente não há nenhuma fenda, nenhuma fissura pela qual
seja possível a quebra dessa rigidez, do caminho único e impermeável de ambas,
ainda mais que são dimensões da linguagem, forma contaminada em sua essência,
propriedade de impureza. Não haverá em alguma falha da linguagem um verso que
seja um conceito, um pensamento no ritmo encantatório do poema, um vazamento de
palavras a misturar de modo incontrolável poesia e filosofia?
Outra ode de Horácio (III.xxx), na qual o
poeta latino exalta a perenidade do poema,
permite
ao autor de Guardar, valendo-se de
oposição foucaultiana, propor outra distinção entre o texto poético e o texto
filosófico: “enquanto, de maneira geral,
o poema sendo contemplado por si próprio, funciona como um monumento, um texto
filosófico, sendo lido em vista da tese que afirma, funciona como um documento”
(grifo do autor).
Antonio Cicero observa a não existência em
língua portuguesa de antônimo para a palavra “poesia”. Alguns equivocadamente,
empregam prosa, quando o mais pertinente é o emprego de expressões “não poesia”
e “não poema”. A prosa não se contrapõe à poesia ou ao poema, mas ao verso,
fato explicado pela etimologia:
“Prosa”, do
vocábulo latino “prorsus” e, em
última instância, de “provorsus” que
quer dizer “em
frente”, “em linha reta” é
o discurso que segue em frente,
sem
retornar. “Verso”,
do vocábulo latino “versus”,
particípio passado substantivado de
“vertere”, que quer dizer “voltar”, “retornar”,
é o discurso que retorna.
Na verdade, tal diferença guarda na escrita as marcas da cultura oral primária, na qual não existiam gêneros literários, pois a palavra literária deriva de “letra”. Não obstante, havia a diferença entre aquilo que se reitera e aquilo que não se reitera. Isso explica as formas distintas de epos - επος, enunciado reiterado, transformado em memória, e mythos - μύθος, , o enunciado não reiterado, originalmente com o significado de “fala”. Assim, na cultura não letrada o verso já é um padrão sonoro recorrente, enquanto a prosa é apenas ocorrência. A prevalência do verso nos textos da antiguidade seguramente deve-se à extraordinária dependência da memória, face à dificuldade de produção e circulação de textos escritos.
O autor não compartilha da crítica
agambeniana à cisão da palavra e da consequente busca de uma suposta totalidade
originária perdida. Eis como Agambem apresenta a questão logo na introdução do
livro Estâncias:
De acordo com
uma concepção que está só implicitamente contida na crítica platônica
da poesia, mas
que na idade moderna adquiriu um caráter hegemônico, a cisão da
palavra é
interpretada no sentido de que a poesia possui o seu objeto sem o conhecer, e
de que a
filosofia o conhece sem o possuir. A palavra ocidental está, assim, dividida
entre uma palavra inconsciente e como que caída do
céu, que goza do objeto do
conhecimento representando-o na forma
bela, e uma palavra que tem para si toda a
seriedade e toda
a consciência, mas que não goza do seu objeto porque não o consegue
representar”.
Para reforçar a exclusão mútua dos dois
campos do conhecimento, Cicero recorre a figura de Lucrécio, destituído da
condição de filósofo por faltar-lhe originalidade, mas em plena condição de
grande poeta e brilhante divulgador da filosofia de Epicuro. A questão da originalidade, tanto em poesia
quanto em filosofia, aponta para um pântano, mais hostil ainda no território
filosófico, pois os poetas moem e remoem temas imemoriais, livres que estão da
lida com ideias, porém os amantes do saber movimentam-se em possibilidades bem mais
estreitas. Talvez, por esse prisma, se os poetas tornaram-se invisíveis, os
filósofos tenham sido extintos.
A finalidade da obra filosófica é a
manifestação de uma proposição, tese, ou doutrina filosófica, assim como a da
poesia é a obra poética, embora esta possa conter proposições, como um dos
elementos integrantes de sua constituição. Como os enunciados poéticos não
constituem proposições, mesmo aqueles situados mais próximos do caráter
proposicional (como as manifestações de ars
poética), o fato de serem eventualmente contraditórios não os desqualifica.
Alguns têm na própria contradição a própria razão de ser.
O ensaísta valoriza a desfetichização
completa de todos os recursos poéticos efetuada pelas vanguardas do século XX
que derrubaram os limites das convenções métricas e dos recursos retóricos
tidos até então como condições necessárias e suficientes para a produção de um
poema. A irrupção do verso livre não acarretou a eliminação das formas
anteriores, pois a ação da vanguarda “não foi o fechamento de portas abertas,
mas a abertura de portas fechadas; não foi a renúncia, mas a desprovincianização
ou cosmopolitização da poesia”. Trata-se, portanto, da contribuição milionária
de todas as possibilidades estéticas. Tal movimento liberou a poesia dos
limites das aparências acidentais e das contingências históricas, da submissão à
camisa de força das convenções poéticas.
A proposta iconoclasta das vanguardas
trouxe o “make it new” poundiano para
a linha de frente da estética. É bem verdade que a fúria demolidora ajudou a
reconfigurar o cenário das artes, principalmente do ponto de vista cognitivo,
ao revelar que “simplesmente não há – jamais houve – condição necessária ou
suficiente para a produção de um poema”.
Sobre o culto à novidade também incide o
peso do reino das mercadorias, mas a crítica de Antonio Cicero não avança no
campos das relações de produção.
Caso a novidade fosse critério válido, uma
vez descobertas novas possibilidades, todas as anteriores estariam relegadas ao
esquecimento. No entanto, as obras de Homero, Dante e Camões ainda exercem enorme
fascínio sobre leitores contemporâneos.
Se a poesia é o que escapa ao poema,
escapa também a qualquer tradução, segundo Robert Frost. Apesar de a poesia ser
uma arte em fuga constante, traduzir poemas pode propiciar uma certa
aproximação entre o leitor sem domínio da língua de origem e a versão original.
Há certamente outra questão normalmente não levada em consideração: inúmeras
vezes uma tradução nos atinge tão profundamente que, quando aprendemos a ler o
texto na língua-fonte, não conseguimos nos desvencilhar do primeiro olhar sob a
luz da língua-alvo.
Cicero lê a filiação dos poetas às musas
não como simples valorização da memória, mas como verdadeira declaração de
autonomia estética. Os poetas, confessando-se ligados ao plano divino, conseguiram
alto grau de liberdade para circular por todos os caminhos do discurso.
Platão, em Íon, atribui a Sócrates palavras que conferem aos poetas a
propriedade de empregarem um discurso sem amarras: “porque o poeta é coisa
leve, e alada, e sagrada, e não pode poetar até que se torne inspirado e fora
de si, e a razão não esteja mais presente nele”. A passagem, todavia, critica a
incapacidade dos poetas, pois o discurso por eles proferidos viria dos deuses,
não possuindo a originalidade daqueles produzidos pela razão, criados pelos
seres humanos. Apesar disso, assinala, por outro lado, a ampla possibilidade da
poesia, fora da zona de controle da cidade.
O autor conclui os ensaios reafirmando a
rigidez dicotômica de sua tese: mais que uma diferença, há uma oposição
complementar entre poesia e filosofia. O último período do livro explicita a
natureza dessa complementaridade:
(...) esta [a poesia] constitui a afirmação radical e imanente do mundo fenomenal,
imediato,
aleatório finito, aquela [a filosofia] é o núcleo do empreendimento moderno
de crítica
radical e sistemática das ilusões e das ideologias que pretendem congelar ou
cercear a vida
e, consequentemente, congelar e cercear a própria poesia.
Resta saber se a poesia precisa de tutela,
de defesa, de outro discurso que, sob a fantasia de combater ilusões e
ideologias, na verdade muitas vezes as justifica. A investigação do autor,
formulada sob uma ótica kantiana, é realizada de modo esplêndido, com profundo
conhecimento de causa.
Confesso que li com muito proveito as
reflexões do filósofo e poeta, tanto que esta resenha me saiu muito extensa. O
tema guarda, por sua própria natureza, um caráter inconclusivo, característica
que protege a riqueza inesgotável de um campo proteico, formado e informado por
matéria em fuga, em incandescência inesgotável. Não há, felizmente, o ponto
final de uma certeza, nada foi resolvido porque não há nada a se resolver, mas
a ser revolvido. Justamente por isso saímos da leitura mais sedentos e enriquecidos.
Continuo a acreditar que a poesia está
mais próxima de uma forma de energia do
que da ideia de monumento e que a diferença entre os dois discursos é que a
filosofia é um não sei e a poesia um sei lá!
Livro: Poesia e filosofia
Autor: Antonio Cicero
Editora: Civilização Brasileira
Páginas: 142.
Preço: R$ 29,90
Prezado Professor,
ResponderExcluirExcelente seu trabalho! Estarei adquirindo o livro e divulgando para meus alunos...parabéns pois você conseguiu uma façanha importante e que eu venho tentando há tempos e não consigo!!! Fantástico!!!
Dá o que pensar! Recomendarei o texto a algumas pessoas.
ResponderExcluirAté mais!