Essa história me foi contada por
um velho lápis à beira da morte.
“Há muito tempo atrás, durante
uma revolução na escrita, um nobre e presunçoso til apaixonou-se por uma vírgula
desconhecida. Obcecado pelas pernas curvas da bailarina da linguagem, o til atrevido
rompeu com os melhores amigos da alta sociedade: os acentos grave, agudo e
circunflexo, além das aspas, irmãs siamesas. Seu amor por aquela criatura da
classe baixa, que vivia misturada a
tipos inferiores, como pontos, travessões, hifens e reticências, transformou-o
num pária a exemplo do velho companheiro trema, banido por decreto a exílio
eterno.
Apesar de viverem em espaços
diferentes, a paixão apagou as distâncias; peles arrepiaram-se, bocas selaram
promessas, sonoridades do gozo vazaram rios noturnos. Mas o coração sempre
oculta um saco de veneno em um dos ventrículos. A vírgula passou a cobrar do
til mais presença em sua vida, queria sentir o fino perfume de suas palavras, a
cabeleira em ondas do jovem aristocrata pulsando sobre os seus seios ofegantes.
O til, com voz fanhosa e enfadonha,
sempre alegava excesso de trabalho ou problemas na mucosa nasal que quase
impediam a respiração.
Alguns meses transcorreram
pesados, perdidos, a proximidade fazia água, o til raramente aparecia. Até que,
numa esplêndida madrugada de outono, apareceu todo animado na linha onde a
vírgula morava. Ao chegar contemplou de queixo caído a cena que o deixou
irremediavelmente amargurado: um ponto movia-se como minúsculo demônio por cima
da vírgula adorada.”
A cada visita que faço em seu blog, ternurizo-me pela vontade de aprender... Envolvente o seu conto de hoje, principalmente a quem, como eu, se intromete ao nosso complicado vernáculo!
ResponderExcluirAbraço, Célia.