"O suicida", 1877, tela do pintor Édouard Manet (1832-1883) |
I
Caminhava
apressado por uma das galerias da Praça Saens Peña. Havia uma turbulência em
seus gestos, um vazamento de rancor e orgulho. Rapidamente as nuvens escuras
desapareceram. Pôde ver, então, um asséptico espaço subterrâneo de guichês, corredores,
escadas rolantes e roletas. Na realidade, entrava inconscientemente na área de
lançamento de um voo cego, tudo ali se constituiria nos registros físicos do
embarque na área cinzenta dos impulsos, do descontrole, da perda de rumo.
Próxima
parada – São Francisco Xavier; próxima parada – Afonso Pena; próxima parada – desespero;
próxima parada – o Inferno. Desembarcou como autômato na estação da Central.
Voltou a contemplar as nuvens, agora menos carregadas, atravessadas em pequenas
fendas por tímidos raios de sol.
A
calçada do Campo de Santana era insuficiente para os seus passos pesados,
largos, presos a tantos tropeços e desencontros. Os camelôs espetavam nos
ouvidos maravilhas de produtos. Até que surgiu, em frascos minúsculos, sem
qualquer destaque no colorido das mercadorias, a solução para o seu mal. Não
parou. O medo obrigou-o a olhar para diante. Ultrapassou o vendedor de bermuda
vermelha, camiseta do Flamengo e óculos escuros. O som, no entanto, permaneceu
em seu cérebro como farpa: “elimina qualquer rato”, “tiro e queda contra
aquelas ratazanas que invadem a sua casa”, “leve três e pague apenas um”.
Tremor nas pernas, uma sensação desconhecida adormeceu a língua, quis
continuar, não quis continuar. Voltou. Dirigiu-se ao ambulante com uma estranha
inflexão na voz - “Amigo, eu quero
quatro” - como se estivesse num confessionário.
Ligou
para Odete. Ninguém atendia. Insistiu. Novamente no metrô, de volta a Saens
Peña. Na Tijuca. pegou um ônibus rumo à Barra. Sentou-se ao lado de uma jovem
de óculos infantis e lindas pernas morenas. Não tirou os olhos. Voltou a ligar.
Odete atendeu: “Já falei pra você não me procurar!”, furiosa, do outro lado da
cidade. Ele não possuía nenhum argumento, só ameaças, a última: “Você vai se
arrepender”. Ela desligou. Ele desceu na Floresta da Tijuca.
Nunca
entrara no parque. O caminho era longo. Sem qualquer planejamento, as pernas
simplesmente avançavam, passavam ao lado de caminhadas de casais, jipes com
turistas, viaturas da segurança, risos de crianças. Mais à frente, pisavam no
sinteco carcomido do sala e quarto no Bairro de Fátima, cruzando os zigues-zagues
de Odete. Tropeçavam em frases com toneladas de pressão, uma atmosfera poluída
por contas, cartas de cobrança, carências, empregos perdidos, cursos não
concluídos, promessas não cumpridas. Irresponsável, podia ler pela milionésima
vez a última palavra de Odete, misteriosamente escrita no chão pelas folhas
caídas de árvores centenárias.
Íntima
correlação entre a subida do caminho e a ascensão da nódoa cinzenta em seus
pensamentos. Ingressava na faixa onde só se ouve o som da mata e dos bichos,
reconhecia, no verde, o deserto habitual. Sentiu que não venceria a distância,
exausto, quase no topo. Lembrou-se dos frascos.
Anexada
ao boletim de entrada no Hospital Sousa
Aguiar, foi encontrada esta declaração: “Odete, nunca conheci alguém como você.
Passei toda a minha vida à deriva, me decepcionando aqui e ali, totalmente
perdido. Não há caminho sem a sua presença. Fiz tudo o que podia para aguentar
o tranco, mas não deu”.
II
Abriu
com dificuldades a porta da quitinete caindo aos pedaços onde vivia, próxima ao
Largo do Machado. Bia ainda não voltara da casa de Luíza. Sacolas, malas,
trouxas, caixas de papelão pareciam pregadas ao chão, muda resistência de
objetos e roupas da vida em comum. Tudo enevoado agora, rachaduras nas fotos,
olhos inchados explodindo retratos de noivado e casamento: rascunhos de uma
felicidade não escrita até o final da página. Como dados enlouquecidos, as
palavras da mulher de sua vida estouravam sintaxe e sentido. Um mundo
desordenado fazia os móveis do conjugado levitarem na sala abarrotada de
acusações mútuas. Perder a mulher para outra
tornava-o menos que um homem. Diploma de fracasso completo, com louvor,
um ph.D em desastres amorosos andando em círculos no interior de um abrigo
reduzido a hospício. Nunca poderia pensar. Luíza tão delicada, tão educada, tão
feminina. Viagens à metade do mundo. Cursos em Londres, ex modelo, lista de ex namorados.
Assediada, desejada por todos. Logo ela. Ele chegara a pensar que...
No
minúsculo apartamento, o banheiro assemelhava-se mais a um túmulo, porém dava-lhe
a segurança de refúgio, pausa nas discussões e disputas. A camiseta do Iron
Maiden no porcelanato caramelo, a calça jeans acinzentada jogada no
porta-toalhas, ao lado das meias imundas e furadas. Sabonete barato suspenso
nas mãos, enquanto pisava o único tênis que lhe restara, voltou-se para dois
seios ofegantes à frente do acendedor do chuveiro a gás; olhos usurpavam o
lugar dos bicos e das aréolas. Os mamilos sussurravam falsas delícias,
obscenidades, numa linguagem sufocante. Sobre o balcão do banheiro, metade do
pó imobilizado.
O
número da besta, sim? Esquecera o número do celular de Bia. Não, não, a besta
era Luiza. Tomara-lhe a mulher, o apartamento, a vida. Sua carne viva malhara
desejos noturnos. Luiza selvagem e arisca. Perfume e perfeição dos peitos,
bunda de calendário de oficina. Quanto desejo, quanta deriva. Investira todos
os seus recursos de Don Juan falido, acenara com tudo que não possuía,
oferecera plurais sem majestade e superlativos baratos. Luíza firme, uma madre
Teresa de Calcutá, puro cristal. Traíra! Filha da puta! Joguinho safado por
trás das costas. Ela e Bia, provocação, deboche.
Esquecera
o bloco de rascunho na sala. Sorte contar com fita crepe bem larga. A caneta
falhava, como ele, mas daria para o gasto. Mais uma carreira sobre a pia. Ao
levantar a cabeça viu, no espelho manchado de velhice, Luiza atravessar a
parede, nua e deliciosa.
Exultou.
Em vão, logo após Bia cruzou as pastilhas da mesma parede com todo o esplendor
de seu corpo moreno. As duas se beijaram e se amaram em um banho de deusas sob
os seus olhos agachados no canto mais fundo do banheiro.
Alguém
acrescentou uma folha amassada ao prontuário do Hospital Miguel Couto, nela se
podia ler, em caligrafia confusa, declaração pungente em fita crepe colada no
papel: “Luiza, nunca conheci alguém como você. Passei toda a minha vida à
deriva, me decepcionando aqui e ali, totalmente perdido. Não há caminho sem a
sua presença. Fiz tudo o que podia para aguentar o tranco, mas não deu”.
III
Entrou
num táxi em frente ao prédio da Maison de France, onde passara a tarde toda
lendo um livro de Michel Déguy sem ter compreendido uma linha sequer, o
pensamento todo em Alana, irrompendo imagens, quebrando versos, rasurando
páginas.
De
volta ao amplo apartamento na rua Toneleros, em Copacabana, jogou-se sobre o
sofá verde musgo em L na sala com dois ambientes. Mais um final de semana sem a
mulher, perdida em Búzios ou Angra, sequer sabia o paradeiro certo. Nas últimas
semanas, o que ela lhe dizia chegava pastoso e confuso aos ouvidos. As palavras
tinham pontas alongadas que desenterravam um passado desconhecido, anterior à
fila de cinema onde a conhecera.
Entrou
no escritório amplo com três estantes entulhadas de livros. Alana perdida para
eternas pesquisas, simpósios, congressos, cursos. Professora universitária em
pastas diversas sobre a escrivaninha. De um retrato, ambos em sorrisos abertos,
saía tímida fumaça de felicidade. Sob um dicionário de francês um comentário
aos versos que ele escrevia. “Bons, mas frouxos [...] criativos, espontâneos
[...] pecam pela ausência de trabalho [...] grandes soluções anuladas por erros
gramaticais e fórmulas grosseiras [...] falta de leitura, péssimos hábitos
[...] inadmissível preguiça intelectual [...] anárquica irreverência, sim, mas
jogos de palavras sem sentido, trocadilhos infames rimados [...] tragédias
pessoais não transformam ninguém em poeta razoável, apenas revelam experiências
comuns a milhares de outros indivíduos”.
De
volta à sala, sentiu agulhadas nos ouvidos. “Você foi o maior erro da minha
vida”. Alana enlouquecida ocupava todos os cômodos do apartamento, enquanto
entre lágrimas, vermelha quase no limite de um AVC, soltava uma legião de
frustrações. “Te peguei na lama, seu filho da puta, e você só sabe beber,
arrumar confusão e me deixar sozinha, seu poeta de merda”.
Fechou
e abriu os olhos para espantar o demônio da memória. Quis sair, lembrou-se de
que acabara de entrar por já não ter para onde ir. Levantou-se
extraordinariamente lúcido e pesado. Foi para a varanda. Observou besouros velozes na rua e móveis
pontos colorindo as calçadas. Viu a cortina de prédios do outro lado da rua, gente
em outras varandas, um casal trepando no terceiro andar em frente.
De
repente, uma frase antiga de Alana passou voando bem à sua frente. Em seguida,
a mulher apareceu amorosamente nua e suspensa, pedindo perdão e chamando-o para
uma reconciliação definitiva. Ele não hesitou, seguiu em frente.
Entre
as anotações da ficha de entrada do paciente, em uma folha de caderno
universitário pautado, com margem dupla, podia se ler a lápis o último
parágrafo de um texto todo rasurado: “Alana, nunca conheci alguém como você.
Passei toda a minha vida à deriva, me decepcionando aqui e ali, totalmente
perdido. Não há caminho sem a sua presença. Fiz tudo o que podia para aguentar
o tranco, mas não deu”.
IV
Saiu
sonolento do sítio em Vargem Grande. Ligou o carro e apagou a sanidade. Louca e
acesa a seu lado, Tininha falava pelos cotovelos.
O
dia quase amanhecia quando chegaram à vila numa ruazinha perto da Praça Seca, em
Jacarepaguá. Banho tomado, a mulher apagou-se exausta. Ele permaneceu zonzo na
recém comprada poltrona reclinável azul-marinho, motivo de tanta discussão entre
os dois. A porta da casa permanecia escancarada como um convite. Não tinha
forças para se mover.
Já
estava cansado, passara dos cinquenta. Tininha vinte e cinco anos mais nova.
Pior, comportava-se como eterna adolescente. Patético, tentava acompanhá-la
mesmo em modo grisalho. O viço do corpo que tanto o encantara começava a se
apagar precocemente. Cada vez mais louca e viciada, Tininha atingira o estágio
da total perda de controle. Cada dia mais impotente, não conseguia segurá-la, sentia-se
uma nulidade, acompanhante mudo da decadência, personal trainer de catástrofes.
Voltou
ao quarto. Não encontrou a mulher. A cama permanecia perfeitamente arrumada.
Ninguém nela se jogara. No banheiro, tudo seco, nenhuma toalha molhada. Saiu
para ver o carro. Nada. Lembrou-se, então, de ter deixado o velho Gol grafite
na oficina. Voltou profundamente angustiado, sem encontrar explicações para o
que estava acontecendo.
Abriu
uma garrafa de uísque para se acalmar. Tininha surgiu com um copo e um sorriso
estranho. O peignoir aberto mostrava
os seios generosos parcialmente cobertos pelas pontas dos longos cabelos
molhados. Sentiu o perfume de outros tempos balançar novamente o seu destino.
Todas as mulheres desfaziam-se da carne para se transformarem em aparições em
sua vida. Nunca conseguira construir laços, todos os caminhos amorosos
deixavam-no no pântano mais próximo e mais fundo. Todas as vozes só se
aproximavam para envenenar a alma, demolir afetos, devastar a cidade interior. Lutou
para desvencilhar-se dos braços ainda roliços, repletos de marcas de picadas,
daquela morena mignon de beleza capaz
de mandar qualquer um para o inferno. O rosto diabólico de Tininha tirava-lhe o
fôlego. A cruel devoradora de seus últimos dias pisava o seu abdômen com
lâminas nos saltos, ajoelhava-se sobre o tórax enfraquecido, enfiava-lhe a
língua bipartida nos ouvidos.
Refeito do assombro, deu-se conta do estado alucinatório anterior. Além dele, ninguém na sala. Estava com o telefone nas mãos. Ouviu com atenção de colegial todas as instruções da operadora. Largou o aparelho, decidiu-se por um bilhete final. Equilibrou-se num gesto de extrema determinação até chegar à cama. Abaixou-se lentamente. Pegou uma caixa de papelão de algum Natal passado que, agora, servia para esconder a pistola Glock calibre 380, em fibra de carbono fosco, carregador de 16 tiros. Abriu-a com ternura na tentativa de ingressar em outra caixa, bem maior e definitiva.
Refeito do assombro, deu-se conta do estado alucinatório anterior. Além dele, ninguém na sala. Estava com o telefone nas mãos. Ouviu com atenção de colegial todas as instruções da operadora. Largou o aparelho, decidiu-se por um bilhete final. Equilibrou-se num gesto de extrema determinação até chegar à cama. Abaixou-se lentamente. Pegou uma caixa de papelão de algum Natal passado que, agora, servia para esconder a pistola Glock calibre 380, em fibra de carbono fosco, carregador de 16 tiros. Abriu-a com ternura na tentativa de ingressar em outra caixa, bem maior e definitiva.
Ao
procurar, entre tantos documentos, o formulário de alta do paciente, Duília,
auxiliar de enfermagem do Hospital Lourenço Jorge, deixou cair uma folha meio
rasgada em que se podia ler declaração única e inesquecível: “Tininha, nunca
conheci alguém como você. Passei toda a minha vida à deriva, me decepcionando
aqui e ali, totalmente perdido. Não há caminho sem a sua presença. Fiz tudo o
que podia para aguentar o tranco, mas não deu”.
An excellent tale. Congratulations.
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