Pronto para lançar-me fora,
desprendimento, desaprendizagem, única possibilidade de reencontrar o prazer.
Na lavagem de fim de ano, desfazer tatuagens com grandes movimentos circulares
sobre o corpo, ao final proferir três vezes: “lavo para que leves o que te for
entregue para enterro e cremação”. Vejo meus pedaços caírem em cubos, cones,
cilindros, desmontagem cubista do erro de ótica a que denominei “meu corpo”. O
que mais assusta são os gases, a fumaça, a névoa da alma em fuga. Às vezes
quero ficar em mim, nostálgico e acomodado às décadas de insegurança. O risco
de desmanchar-se é a sombra de um cataclismo: em vez de reinvenção o surgimento
de simulacro, a prevalência da redução em detrimento da ampliação arquitetada,
basta que materiais abandonados retornem misturados a outros ou que o marasmo
desenhe novo projeto. A nova página do rosto: verdadeiro mosaico. “Reescrever,
reproduzir um texto a partir de suas iscas, e organizá-las ou associá-las,
fazer as ligações ou as transições que se impõem entre os elementos postos em
presença um do outro: toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário” (*). O
processo de revivescência cria cenários insólitos. Estou na fronteira com Walter
Benjamin. Ontem ele não dormiu. Ficou andando agitado, extremamente nervoso. A Gestapo a oito horas de distância; os Zetas, ao norte, à espera de nossa travessia com
presentes alojados em fuzis pós-modernos; as tropas franquistas, além Pirineus,
hostis com seus binóculos à nossa procura; a polícia militar de Rondônia, do
outro lado da fronteira oeste, nos confundindo com contrabandistas de diamantes.
Tomamos café, comemos bolo de milho e biscoitos. Benjamin não quis cachaça.
Jogamos cartas até eu lançar sobre a mesa a frase de Paulo, o apóstolo: “Como
uma cidade arrombada, sem muralha, é o homem que não domina seu espírito
(Provérbios, 25:28).” Benjamin fechou a cara, arrumou o óculos e desistiu de
jogar. Não existia ainda o livro de Badiou sobre os textos paulinos. Irônico,
Benjamin apenas disse “e depois eu é que sou um marxista messiânico”. Isso aconteceu ainda há pouco, na madrugada
de 27 de setembro de 1940. Agora, a três horas de 2013, enquanto vou me
despedindo de mim mesmo, posso observar a sombra de Benjamin ainda com a
injeção de morfina sobre o peito e o olhar dividido entre o quadro Angelus Novus, de Klee, e a pistola
sobre o criado mudo. Afasto-me de costas, contemplo horrorizado o acúmulo de
ruínas, sou um anjo sobre uma montanha de lixo tão alta que parece uma escada
para o Paraíso. Preciso fugir à tempestade que vem para salvar o mundo. Nenhum
olhar é mais aterrorizante do que a ilusão de verdade nas pupilas de um
salvador.
* COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P.
B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. p.39.
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