segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Texto de passagem




Pronto para lançar-me fora, desprendimento, desaprendizagem, única possibilidade de reencontrar o prazer. Na lavagem de fim de ano, desfazer tatuagens com grandes movimentos circulares sobre o corpo, ao final proferir três vezes: “lavo para que leves o que te for entregue para enterro e cremação”. Vejo meus pedaços caírem em cubos, cones, cilindros, desmontagem cubista do erro de ótica a que denominei “meu corpo”. O que mais assusta são os gases, a fumaça, a névoa da alma em fuga. Às vezes quero ficar em mim, nostálgico e acomodado às décadas de insegurança. O risco de desmanchar-se é a sombra de um cataclismo: em vez de reinvenção o surgimento de simulacro, a prevalência da redução em detrimento da ampliação arquitetada, basta que materiais abandonados retornem misturados a outros ou que o marasmo desenhe novo projeto. A nova página do rosto: verdadeiro mosaico. “Reescrever, reproduzir um texto a partir de suas iscas, e organizá-las ou associá-las, fazer as ligações ou as transições que se impõem entre os elementos postos em presença um do outro: toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário” (*). O processo de revivescência cria cenários insólitos. Estou na fronteira com Walter Benjamin. Ontem ele não dormiu. Ficou andando agitado, extremamente nervoso. A Gestapo a oito horas de distância; os Zetas, ao norte, à espera de nossa travessia com presentes alojados em fuzis pós-modernos; as tropas franquistas, além Pirineus, hostis com seus binóculos à nossa procura; a polícia militar de Rondônia, do outro lado da fronteira oeste, nos confundindo com contrabandistas de diamantes. Tomamos café, comemos bolo de milho e biscoitos. Benjamin não quis cachaça. Jogamos cartas até eu lançar sobre a mesa a frase de Paulo, o apóstolo: “Como uma cidade arrombada, sem muralha, é o homem que não domina seu espírito (Provérbios, 25:28).” Benjamin fechou a cara, arrumou o óculos e desistiu de jogar. Não existia ainda o livro de Badiou sobre os textos paulinos. Irônico, Benjamin apenas disse “e depois eu é que sou um marxista messiânico”.  Isso aconteceu ainda há pouco, na madrugada de 27 de setembro de 1940. Agora, a três horas de 2013, enquanto vou me despedindo de mim mesmo, posso observar a sombra de Benjamin ainda com a injeção de morfina sobre o peito e o olhar dividido entre o quadro Angelus Novus, de Klee, e a pistola sobre o criado mudo. Afasto-me de costas, contemplo horrorizado o acúmulo de ruínas, sou um anjo sobre uma montanha de lixo tão alta que parece uma escada para o Paraíso. Preciso fugir à tempestade que vem para salvar o mundo. Nenhum olhar é mais aterrorizante do que a ilusão de verdade nas pupilas de um salvador.

* COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.  p.39.


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