Automaton, trabalho de Kazuhiko Nakamura |
segunda-feira, 8 de abril de 2013
Manequins da desordem
Peguei a pistola, apontei-a para o cofre incrustado naquela testa lustrosa,
disposto a estourar-lhe os miolos, porém, após tensão
provocada por rumor exasperante, o piso emborrachado estremeceu e começou a
dobrar-se. Lentamente papéis amarelecidos escaparam de frestas no chão,
movimentando-se em círculos até ficarem suspensos no ar. Poemas de todos os
tempos flutuavam entre quinquilharias como fantasmas. Pude ver manuscritos em
línguas diversas. Fragmentos de Dante, Donne, Bandeira, Cruz e Sousa, Cesário Verde, Emily
Dickinson, Vallejo, Drummond, Khlébnikov, Villon, Cecília, Góngora, Wislawa Szymborska, Antíloco, Hölderlin, Arnaut Daniel levitavam entre
tantos outros. Os poemas apagaram os relógios. A pequena comerciária agarrou-se
ao meu pescoço. Senti seus minúsculos seios latejarem contra o suor do meu
peito. Uma pontada abaixo do coração acusou um estranho dispositivo girando bem
rápido dentro do meu corpo. Novo fluxo aquoso percorria minhas artérias, numa
pressão intensa, como se caravelas incendiassem o rumo de continentes
desconhecidos. Vi o meu rosto mover-se no círculo cor de ferrugem ao redor da
pupila da pequena vendedora de miudezas. Havia uma tonalidade azulada nas maçãs
do rosto, não sei se refletia a excessiva claridade da loja à beira de
curto-circuito ou se minha pele buscava novas camadas de nuvens e areia.
Guardei a pistola. O proprietário, aterrorizado pelo fenômeno inexplicável e pela
certeza da completa falência, esquecera minha ameaça. Eu não tinha mais razões
para matá-lo. Só os humanos são assassinos. Eu já assimilara a natureza
complexa de minha musa-manequim. Saímos porta afora, livres para a
desintegração do universo.
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