Interior do Teatro Lírico, Rio de Janeiro, em 19.02.1927 (o teatro foi demolido em 1934) |
Dia de caminhar em silêncio
cuneiformes cariocas, a arqueologia afetiva das ruas todas do centro do Rio de
Janeiro. Dia de não se ver a calçada, a caixa de rolamento, os postes belle époque e as esculturas de ferro
fundido em velhas sacadas. Dia para
se perder no gigantesco pergaminho em cuja superfície zilhões de passos
desaparecem em fluxo contínuo como líquida memória que se esvai entre as
frestas dos paralelepípedos submersos numa espécie de hemorragia de espaços
urbanos por onde um dia encontramos abrigo, subimos os rangidos de escadas, fomos
acolhidos entre paredes imperiais e até nos apaixonamos. Ah, a era dourada de
Ouvidor dândis; os ares parisienses da Rio Branco e a passeata dos cem mil; a
música em sexo balzaquiano da Tiradentes; a urgência na fila do teatro de
revista da Carioca; os bondes e as pernas da Uruguaiana; os casarões alongados
do círculo dos sebos; os tílburis a caminho de Botafogo; os crepes, chamalotes, veludos, tafetás, cetins, cassas,
gorgorões em vestidos dominicais no Passeio. E mais acima dos olhos,
buscando insignificâncias no chão, a pulverescência de alguns prédios ou a
modernosidade contábil-operacional de caixotões-business, monstros devoradores de horizonte e beleza, a fixidez de tantas
outras construções nas quais a única mudança são novos hálitos urbanos e a
respiração de outros trajes. Ah, o domingo rói em surdina os ossos da paisagem,
lambe as suas cáries, oculta outra cidade no subsolo exposto – masmorra a céu aberto:
bando de espectros, debaixo de marquises, amontoa-se sobre papelões, olhos
insensatos montam cenários de crimes, cachorros latem desolação urbana, tapetes
de sujeira, lixo. Um mendigo fuma cachimbo
insólito. Ele e todos os sobrados tremem de medo, como se pressentissem a
aproximação furiosa de novos neofasciurbanistas que virão para ofertar o
deserto à cidade.
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