domingo, 26 de maio de 2013

Cuneiforme carioca

Interior do Teatro Lírico, Rio de Janeiro, em 19.02.1927 (o teatro foi demolido em 1934)



Dia de caminhar em silêncio cuneiformes cariocas, a arqueologia afetiva das ruas todas do centro do Rio de Janeiro. Dia de não se ver a calçada, a caixa de rolamento, os postes belle époque e as esculturas de ferro fundido em velhas sacadas. Dia para se perder no gigantesco pergaminho em cuja superfície zilhões de passos desaparecem em fluxo contínuo como líquida memória que se esvai entre as frestas dos paralelepípedos submersos numa espécie de hemorragia de espaços urbanos por onde um dia encontramos abrigo, subimos os rangidos de escadas, fomos acolhidos entre paredes imperiais e até nos apaixonamos. Ah, a era dourada de Ouvidor dândis; os ares parisienses da Rio Branco e a passeata dos cem mil; a música em sexo balzaquiano da Tiradentes; a urgência na fila do teatro de revista da Carioca; os bondes e as pernas da Uruguaiana; os casarões alongados do círculo dos sebos; os tílburis a caminho de Botafogo; os crepes, chamalotes, veludos, tafetás, cetins, cassas, gorgorões em vestidos dominicais no Passeio. E mais acima dos olhos, buscando insignificâncias no chão, a pulverescência de alguns prédios ou a modernosidade contábil-operacional de caixotões-business, monstros devoradores de horizonte e beleza, a fixidez de tantas outras construções nas quais a única mudança são novos hálitos urbanos e a respiração de outros trajes. Ah, o domingo rói em surdina os ossos da paisagem, lambe as suas cáries, oculta outra cidade no subsolo exposto – masmorra a céu aberto: bando de espectros, debaixo de marquises, amontoa-se sobre papelões, olhos insensatos montam cenários de crimes, cachorros latem desolação urbana, tapetes de sujeira, lixo. Um mendigo fuma  cachimbo insólito. Ele e todos os sobrados tremem de medo, como se pressentissem a aproximação furiosa de novos neofasciurbanistas que virão para ofertar o deserto à cidade.


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