"Mulher Caída", por Egon Schiele |
Veio a névoa, densa neblina obliterando formas. Teu rosto ainda não existia no retrato, tua voz dormia cantatas em dias de chuva, e o desejo sequer latejava remotíssimo sabor futuro. Minha pele encerada por cerdas ásperas de nostalgia, pergaminho em caminho de rugas, solo intocado dos passos que um dia curvos. Tempo esvurmando minutos, grinaldando de grisalho pelos, cabelos, memórias. As palavras vieram depois, filtradas por máquinas de sucção de impurezas e excessos sintáticos. Os filtros eram falhos como as letras do manual de instruções. Uma vegetação luxuriosa saltava do coração da noite âmbar e ambivalente. Incenso de vigília e tempestade exalava-se em espera. Corria um rio invisível entre os móveis ofertados aos cupins na sala, ouvia-se o ritmo das corredeiras e quedas d'água saltando do pulso. Tudo um fluxo, tudo um continuum, mas nada apontava a possibilidade do legível. Nada de limpidez, toda geometria desmanchava-se em sombras no horizonte a anos-luz de distância. Tudo se tingia de pardo-obnubilante. Linhas voláteis desenhavam um chão de nuvens. Fugidios e movediços, os objetos afirmavam-se como um não-é-para-mim, algo latente num sempre-além, fora das circunstâncias, da vida e suas adjacências entrevistas como relâmpagos apenas em pesadelos. Aéreas fotomontagens as pessoas, nenhuma ascese, nenhum princípio de transcendência ou aproximação, redomas metafísicas. Longe, sempre longe o campo do real objetivo, a latência de formas vivas, a irrupção de sujeitos. Assim, caminhar e tateio operavam sinonímia, entendimento erigia-se em obscuridade, existir era um território de avessos. O trajeto vertical descendente radicalizava perdas e recusas. Mas algo atravessou a névoa, uma instalação desviou o sangue das entranhas para uma baía de águas vivas. Teu corpo, teu corpo, teu corpo, por isso todas as heresias em cântico, todas as blasfêmias abertas em chagas na carne viva. A tua voz do outro lado do impossível explodia o universo.
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