Foi numa noite antiga, no hall do 11° andar da UERJ.
Conversava com outro poeta. Subitamente alguém invadiu o campo visual da conversa.
Sibilina e aristocrática beleza pausou nossas vozes. Tudo o que vi, então, foi
um dedo mindinho escapando como anjo da xícara de café (na verdade, mísero copinho
plástico porcelanizado por minha memória traiçoeira). Posso ainda ver a fumaça
contornando languidamente os cachos de cabelo castanho bem claro, os olhos
concentrados na quentura, a elegância displicente de musa desconhecida. Por uma única vez na vida vi o “entre”. Nunca pensei que fosse visível a
olho nu. Todo o universo esteve, por um breve e eterno momento, fixado entre o
copinho levantado com a mão direita e os lábios em u na antemanhã do gole.
Todas as coisas e todas as certezas dissolviam-se na fumaça. Ela ainda não
sorvera a promessa do sabor e o aroma já se degustava em sua língua. Aquela
fração mínima do tempo entre “ainda não” e “não mais” sustentou a versão do
inalcançável da poesia.
Carolas joyceanos chamam a isso de epifania: o
momento em que descobri que a poesia é "entre". Difícil, no entanto, dizer o que
vi. “A meio de”, “intervalo”, “através de”, “dentro de”, “perto de”,
“preferência”, entre outros sentidos da preposição no Houaiss, não lançam nenhuma
luz; madeleines proustianas também pouco acrescentam. Entre pode ser ente
infiltrado por um r. Ou forma de referência não à distância propriamente, mas à
intransponibilidade, aos limites do corpo e da alma, ao aprisionamento do ser a
ser-sempre-menos. Referência que é, simultaneamente, chamado, desafio,
incitação a que alguém ouse saltar o impossível, gesto a que só loucos e poetas
se atrevem. Por outro lado, meus olhos puderam ver que o ser-menos é a visão de
olhos cansados e mecânicos, o movimento do café aos lábios da musa anônima foi
a maior prova de que o nosso olhar é cego, coberto por véus de distância e
alheamento. Talvez tenha visto todas as letras da distância inexpugnável entre
a voz e o voo.
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