terça-feira, 5 de março de 2013

Esfingenigma





Foi numa noite antiga, no hall do 11° andar da UERJ. Conversava com outro poeta. Subitamente alguém invadiu o campo visual da conversa. Sibilina e aristocrática beleza pausou nossas vozes. Tudo o que vi, então, foi um dedo mindinho escapando como anjo da xícara de café (na verdade, mísero copinho plástico porcelanizado por minha memória traiçoeira). Posso ainda ver a fumaça contornando languidamente os cachos de cabelo castanho bem claro, os olhos concentrados na quentura, a elegância displicente de musa desconhecida. Por uma única vez na vida vi o “entre”. Nunca pensei que fosse visível a olho nu. Todo o universo esteve, por um breve e eterno momento, fixado entre o copinho levantado com a mão direita e os lábios em u na antemanhã do gole. Todas as coisas e todas as certezas dissolviam-se na fumaça. Ela ainda não sorvera a promessa do sabor e o aroma já se degustava em sua língua. Aquela fração mínima do tempo entre “ainda não” e “não mais” sustentou a versão do inalcançável da poesia.

Carolas joyceanos chamam a isso de epifania: o momento em que descobri que a poesia é "entre". Difícil, no entanto, dizer o que vi. “A meio de”, “intervalo”, “através de”, “dentro de”, “perto de”, “preferência”, entre outros sentidos da preposição no Houaiss, não lançam nenhuma luz; madeleines proustianas também pouco acrescentam. Entre pode ser ente infiltrado por um r. Ou forma de referência não à distância propriamente, mas à intransponibilidade, aos limites do corpo e da alma, ao aprisionamento do ser a ser-sempre-menos. Referência que é, simultaneamente, chamado, desafio, incitação a que alguém ouse saltar o impossível, gesto a que só loucos e poetas se atrevem. Por outro lado, meus olhos puderam ver que o ser-menos é a visão de olhos cansados e mecânicos, o movimento do café aos lábios da musa anônima foi a maior prova de que o nosso olhar é cego, coberto por véus de distância e alheamento. Talvez tenha visto todas as letras da distância inexpugnável entre a voz e o voo.


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