sábado, 30 de março de 2013

Maná no deserto





Quando o pequeno e dócil manequim de fibra de vidro desapareceu do outro lado da vitrine, voltei à entrada do prédio no Catete. Um casal saía às gargalhadas. Duas crianças atrás da explosão de alegria me olharam curiosas. A trouxa quase caiu sobre a mais nova. Discussão áspera. O corpulento diz que vai me encher de porrada, a mulher me xinga. Dizem que não valho nada, não trabalho, exploro a mulher do terceiro andar, uso drogas, desrespeito todas as senhoras casadas, mau-caráter, ateu e tarado. O troglodita me encurrala no canteiro à esquerda da entrada, debaixo da placa “Palais de Sérénité”. Seus olhos espumosos já me veem saco de pancada. Uma chuva de livros caiu sobre o casal e os filhos. Dicionários, romances russos, livros de xadrez, contistas contemporâneos, poesia erótica, manuais de linguística, meu mundo impresso em anacronia desabava: Deus me mandava o maná prometido. Meus livros salvaram a minha vida. Grato, Ciça, você sempre foi ruim de mira. Pulo o corpo desacordado do vizinho com a cabeça sob o dicionário Houaiss aberto no verbete irremissível -  “Adjetivo de dois gêneros: 1) que não se pode remitir, que não merece perdão, imperdoável; 2) que não se pode evitar; infalível, fatal”. Me abaixo apenas para recuperar Sonetos Luxuriosos, de Aretino, traduzidos por José Paulo Paes. Desisto das roupas e demais pertences. A  loja do outro lado da rua já está fechada; aberta, escancarada, imensa cratera pulsando errância na alma. 


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