Quando o pequeno e dócil manequim de fibra de vidro
desapareceu do outro lado da vitrine, voltei à entrada do prédio no Catete. Um
casal saía às gargalhadas. Duas crianças atrás da explosão de alegria me
olharam curiosas. A trouxa quase caiu sobre a mais nova. Discussão áspera. O corpulento
diz que vai me encher de porrada, a mulher me xinga. Dizem que não valho nada,
não trabalho, exploro a mulher do terceiro andar, uso drogas, desrespeito todas
as senhoras casadas, mau-caráter, ateu e tarado. O troglodita me encurrala no
canteiro à esquerda da entrada, debaixo da placa “Palais de Sérénité”. Seus
olhos espumosos já me veem saco de pancada. Uma chuva de livros caiu sobre o
casal e os filhos. Dicionários, romances russos, livros de xadrez, contistas
contemporâneos, poesia erótica, manuais de linguística, meu mundo impresso em
anacronia desabava: Deus me mandava o maná prometido. Meus livros salvaram a
minha vida. Grato, Ciça, você sempre foi ruim de mira. Pulo o corpo desacordado
do vizinho com a cabeça sob o dicionário Houaiss aberto no verbete irremissível - “Adjetivo de dois gêneros: 1) que não se pode remitir, que não
merece perdão, imperdoável; 2)
que não se pode evitar; infalível, fatal”. Me
abaixo apenas para recuperar Sonetos Luxuriosos,
de Aretino, traduzidos por José Paulo Paes. Desisto das roupas e demais
pertences. A loja do outro lado da rua
já está fechada; aberta, escancarada, imensa cratera pulsando errância na alma.
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