SERÁ QUE É PROSA?

ESTORINHA INOCENTE

Damien Hirst Blue Painting 04


     José Antônio Cavalcanti


        Havia um homem dentro do bule e uma xícara vazia. O homem não cabia no bule  e  o vazio da xícara não a preenchia.  Entre o homem dentro do bule e a xícara vazia existia  um túnel escuro, ou existia um caminho bem claro.  O homem no interior do bule explodia  e  a xícara vazia se esvaía na sede que não se sacia.  E,  puta que pariu,  o homem no bule  vazio possuía a força de gostar da xícara que não existia no homem que a continha. Eis que,  súbito,  a primeira porta do paraíso mergulha macia em seu muro e a língua da   lua  apreende  a clareza  do  dia,  enquanto o homem dentro do bule não suporta a sangria.  A xícara julga  o  homem dentro do bule:  rotula,  desentende,  reclama do homem dentro do bule a existência do homem do bule;  imagina a sua única asa capaz de sustentar o seu vôo até o céu  do  prazer nos lábios do homem do bule.  O homem do bule percebe a revolta e nada  faz  para  resolvê-la, dando espaço ao vazio da xícara justificar-se vazio. O bule dentro do homem  dentro da xícara vazia não é jesuíta para evitar pecado ou transgressão à lei,  recusa a resolução de qualquer problema e deseja do fundo do coração que a xícara vazia se encha de café,  cachaça ou qualquer porcaria. O homem que havia dentro do bule é suficientemente puto para manchar a toalha,  estragar a festa e saltar no escuro.  A vazia exigência  de  uma  perfeição que atenda a todas as vontades,  maus humores,  brigas com família e questões ao estilo   “a minha vida é uma merda”  aumentam o vazio da xícara. O homem dentro do bule permanecerá vivo, sempre,  apesar da rebeldia da xícara vazia e do vazio da xícara vazia.  E,  apesar desta ridícula alegoria, mesmo o homem dentro do bule,  contra a própria xícara vazia,  cultivará um imenso querer,  um honesto gostar,  do homem do  bule  vazio  pela  xícara  vazia  dentro do bule vazio do homem explodindo o bule.
 
 
Estorinha inocente II
 
 
Manabu Mabe

  José Antônio Cavalcanti

         A perseguição do anjo prosseguia demoníaca.  O homem  já se encontrava encurralado no último beco da cidade.  O anjo perseguia,  implacável e atemorizador.  O homem  já  nãocabia no último beco da cidade, porém o anjo preenchia todo o espaço. Havia partes do anjo pela infância e a recordação de um domingo num parque de diversões,  onde  o  anjo  sorria candidamente numa roda-gigante.

        A perseguição do anjo prosseguia demoníaca. O volks do homem não ganhava  distância do opala do anjo.  Na avenida Brasil, quase é  alcançado pelo  opala.  Conseguiu  ganhar terreno no túnel Rebouças. O anjo ficou intimidado com as entranhas da terra,  na certa. Na lagoa Rodrigo de Freitas,  o anjo ultrapassou o volks aflito que derrapou três vezes e cuspiu o motorista sobre/sob o lodo e os peixes mortos da lagoa.
        O homem não morreu.  O anjo não desistiu. Abriu a blusa e exibiu-lhe os seios. Escorregou as mãos pequeninas pelo dorso do homem,  pelo tórax,  pelo abdômen, até alcançar o pênis angustiado. Depois disso, o homem não tentou escapulir de novo, nem era possível; o anjo já  havia amputado as suas pernas e transformado o seu rosto num espelho de prazeres onde o céu e o inferno coabitavam.




MISSIVA Nº 36



        José Antônio Cavalcanti           


                                            
                                             Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1984.


Prezada Felice,


Assunto: OCULTO



W.  através desta venho solicitar a v.sa. breve relato sobre os últimos
       insólitos acontecimentos. nossa empresa  não  costuma  abrir tal
       exceção, mas tratando-se de uma cliente pontual no seu 
       histerismo e com um histórico de crises identitárias extraordinário,
       acreditamos não ser mero gesto de boa vontade, como nos 
       exprimimos no último expediente, datado de 30.10.1984, no qual 
       expusemos nossa desaprovação ao método de escolhas
       amorosas de v.sa., constituído pela fixação em homens vestidos 
       de vermelho. as duplicatas e faturas vencidas não recompõem, 
       com o seu devido pagamento, o nível anterior das nossas 
       relações, até então extremamente corretas e amistosas, apenas 
       impedem o agravamento das disputas e o excesso de ações
       judiciais. as dívidas temperam com cinismo e malícia os nosso 
       diálogos por vezes inócuos e exasperantes. o tempo todo, não
       obstante, tentamos construir pontes entre territórios impossíveis,
       recortados por uma geografia afetiva infensa à mínima
       racionalidade.  embora sujeitos a carga horária integral, 
       sabemos que a integralidade sempre é fascista, o que lança sérias 
       dúvidas sobre aqueles indivíduos denominados
       (ou autodenominados) íntegros. isso não advém apenas da 
       natureza suja do nosso trabalho, de nossas concorrências 
       desleais, das licitações fraudulentas, das notas frias, do caixa dois, 
       da lavagem de dinheiro, de eventuais contrabandos, da 
       constante sonegação fiscal e de quantias exorbitantes
       empregadas em propinas, pagamento de fiscais, policiais
       e  juízes, além do  dinheiro sujo jogado em campanhas 
       eleitorais. é algo talvez mais refinado (por isso mesmo 
       mais doloroso), algo que nos joga no mesmo plano infecto 
       de uma existência miserável na qual tanto
       as boas quanto as más ações se anulam ao se decomporem em 
       um destino que foge às nossas mãos. ficamos felizes 
       com a crueza do final, pois ele iguala palácio e palha, 
       coloca no mesmo deserto  o justo e o injusto. 
       como v.sa. já escreveu em sua última carta:
       “a morte nos iguala ao nos anular, mas a vida é um longo mergulho
       no reino das diferenças”. o currículo que temos apresenta v.sa. 
       como criatura fantástica, mediúnica sereia despetaladamente 
       talhada para a angústia de viver, um ser ambivalente na 
       transparência de peles superpostas, misto de imagens goyescas e
       pintura pastel. há, ainda, uma anotação a caneta vermelha, cheia de
       rasuras e de decifração difícil (talvez o agente estivesse bêbado ou
       sonolento): informa sobre a sua necessidade de horário livre 
       num tempo construído com dentes e dedos inexperientes. não 
       sabemos propriamente o que isso significa, talvez a ânsia de uma 
       liberdade à beira da irresponsabilidade, um não querer nada com 
       compromissos, ou a ferocidade com que v.sa. extrai nacos
       de carne e de sonhos de quem a ama, condenando os infelizes
       a criar milhares de planilhas de preço, relatórios intermináveis
       de erros, verdadeiras enciclopédias de textos inúteis (como este). 
       todavia, não nos conformamos com a expressão “dedos
       inexperientes”; v.sa. já passou dos cinquenta. experiência é
       algo que não lhe falta, décadas de envenenamento de 
       almas, décadas de empalamento de amantes, décadas 
       dedicadas a destruir carreiras. aliás, v.sa. possui formação
       de alto nível: doutorado em ciências masturbatórias. também
       achamos estranho o azinhavre nas pálpebras e a turbulência 
       de gênese desconhecida nas rótulas. alguém insinuou que 
       o seu corpo parece estar curvando-se para frente de modo 
       inverossímil, o mesmo funcionário atribuiu a perda da
       verticalidade ao peso de uma coleção de atos infames, porém
       creio eu que isso seja apenas juízo de valor, e nossa empresa 
       não compactua com apreciações subjetivas. em nossos arquivos 
       podemos ainda observar a sua preferência por líquidos
       extraordinários, de composição desconhecida. certo, existe
       uma suspeita de que a fórmula contenha substâncias advindas
       do refino de cocaína, contudo ninguém sabe qual. resíduos 
       que, misturados a álcool, éter, absinto, amoníaco, cachaça,
       xaropes, energéticos, uísque, calmantes e outras drogas e
       bebidas ainda não levantadas em nossa análise laboratorial, 
       seriam a causa do tom azulado da sua face, concentrado 
       particularmente no lado direito, cuja visão cachos de 
       cabelos como louras samambaias tentam esconder. já pedimos
       a v.sa. encarecidamente (leia as explicações detalhadas
       fornecidas na missiva 29) uma fotografia – de preferência 
       sem pose afetada – diaboli, diabolicamente
       digo, medíocre. assim: calças tipo guerras nas estrelas, pistola 
       de laser, máscara antigás, chapéu estilo sete anões, com 
       bodoques indígenas nos lábios e orelhas. a que estava em 
       sua ficha foi devorada por traças, restando apenas
       os caninos superiores no papel. lamentamos ter guardado
       em formol as cartas de sua autoria. apesar de serem 
       poucas e fúteis, multiplicaram as próprias
       letras em nossos arquivos. tentamos a princípio contratar
       especialistas para exterminá-las com gases e pós químicos. 
       inútil, as palavras cresceram de tal maneira que tivemos 
       que comprar novos arquivos para abrigar o material
       retrocitado. se for possível, solicitamos a v.sa. nos informar
       qual o antídoto e se a contratação de homens-répteis e 
       de mulheres-águias poderá solucionar o grave
       problema enfrentado por nossa grande, serena e sólida
       empresa. devido à crise econômica, cortamos o fornecimento 
       de missivas (v.sa. pode ver, portanto, como é especial para 
       nós). fechamos a fábrica de metáforas. despedimos os
       estilistas da palavra. trabalhamos apenas com o estritamente
       necessário, evitando, destarte, a falência que se anunciava. 
       conseguimos ótimos resultados, comprovados em relatórios
       e no último balanço, graças à exportação de sirenes, 
       alarmes, mecanismos antirroubos, grades à prova de
       serras, porretes eletrônicos, algemas com gps, gás pimenta,
       aparelhos de choque e de escuta clandestina, 
       robôs-revistadores, programas-espiões para internet, balas 
       de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e uma linha completa
       de produtos destinados ao enquadramento de desajustados,
       rebeldes e terroristas.  por oportuno, comunico a v.sa. 
       que se encontram abertas as  inscrições para um curso 
        intensivo patrocinado por nossa empresa em convênio
       com uma ong sueca – SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO FODIDO. 
       trata-se de um novo método existencial de largo sucesso nos 
       Estados Unidos e na Europa, trazido ao Brasil por nosso 
       diretor espiritual (duas obervações para  v.sa. levar
       em consideração: 1) nossa empresa possui uma dimensão 
       sagrada; 2)  a metafísica é irmã gêmea da mais-valia). não 
       era nossa intenção nos alongarmos, acreditamos que
       o calor infernal do Rio de Janeiro tenha dilatado
       nosso texto. finalmente, temos o prazer de informá-la
       que o Setor de Inteligência Global (SIG) a considera 
       morta, razão pela qual providenciou o seu
       desligamento do nosso sistema, fato não efetivado até o
       momento por conta do seu débito. na verdade, correm
       várias versões a respeito do seu falecimento,
       apenas três, no entanto, estão registradas em nossos 
       arquivos: a) v.sa. teria viajado para Camboriú, em Santa 
       Catarina, e, ao tentar se aproximar de uma  baleia, foi
       tragada por uma gigantesca onda; b) v.sa. teria ido fazer
       compras num supermercado e, no exato instante em que 
       olhava o preço de um pacote de biscoito, foi alvejada em 
       meio a um intenso tiroteio entre policiais e assaltantes.
       houve grande divergência em torno de quem teria sido 
       o autor do disparo fatal, como se tal fato alterasse a 
       morte. c) v.sa. teria saído à noite para uma
       danceteria na Lapa e, após se apaixonar perdidamente
       por um jovem italiano, seguiu para uma garconnière em 
       Copacabana onde o rapaz, galã sórdido e perverso,
       submeteu-a a inacreditáveis vexames sexuais; depois de
       penetrá-la por todos os buracos do corpo, asfixiou-a e  jogou 
       o corpo em sangue a um bando de porcos que o destroçaram 
       em um bairro de Duque de Caxias. como v.sa.  pode observar, 
       nosso SIG é da pior qualidade (a falta de imaginação é
       o menor de seus males). nunca acreditei nessa fantasia 
       mambembe. sei que v.sa. está viva, escondida talvez em algum
       condomínio de luxo do Rio de Janeiro, onde seguramente 
       deve impressionar a todos com os seus vestidos
       florais em que a natureza parece viva, pois as folhas não só
       se mexem, como caem ao chão depois que v.sa. passa,    
       para assombro dos mortais, sem que os
       vestidos percam um desenho sequer. grato pela
       sua  prestimosa atenção e na certeza de que v.sa. 
       jamais conseguirá saldar o débito (razão pela qual nos
       recusamos a acreditar na sua morte), subscrevemo-nos.





C.  não obtendo resposta até a presente data  à carta que
      nunca lhe escrevemos, solicitamos a v.sa. proceder com
      mais cortesia com aqueles que lhe querem bem. apesar 
      de sua atitude inamistosa, voltamos a expor a v.sa. todos os
      problemas decorrentes de sua atitude incompreensível. 
      deixando de  frequentar as nossas reuniões e preferindo
      a liberdade, esse terrível mecanismo de empobrecimento
      pessoal, seu nome foi incluído na lista de nulos-
      improdutivos, sujeitos a confisco da aura e a perda da
      caligrafia, propriedades perversas com as quais alguns 
      ainda insistem em cultuar mitos antiglobais.  
      parece que v.sa. esqueceu que a escravidão é o divino
      equilíbrio e a submissão a suprema virtude; 
      criamos um mundo único, modelando-o de modo
      cirúrgico com nossa metodologia de falsificação do real. 
      caso v.sa. pretenda fugir, nos avise: todas as rotas de fuga, 
      todos os meios de acesso a outros universos e
      todos os territórios denominados livres também estão 
      sob o nosso completo domínio.

                                                                    Cordialmente,

                                                               Assessor GMOP 1029




HORA DE ALMOÇO


 

   José Antônio Cavalcanti



        Abriram-se novas e velhas portas.  Do interior dos vidros,  do oco das casas,  de dentro das lojas,  saíram pessoas de todos os tipos.  A multidão rapidamente organizou o caos.  Em questão de minutos,  ninguém se entendia.  Todos perguntavam o que  estava  acontecendo, no entanto as respostas eram as mais disparatadas e enlouquecidas. Na confusão  que se  estabeleceu  soberana,  na  pressa  de ver o que estava ocorrendo,  a massa  esmagou  uma  senhora  grávida sem ligar a mínima para os seus lancinantes gritos.  Os vendedores de amendoim e camelôs ficaram em polvorosa, vendo  −  impotentes  −  o  esfacelamento de  suas mercadorias:  derrubadas,  pisoteadas ou,  simplesmente,  afanadas.  O guarda de trânsito,  a princípio calmo − lógico, a confusão não era com ele −,  começou a irritar-se e,  em dado momento,  completamente fora de si, danou a apitar feito um  músico  louco e  a sambar  no meio da pista.
        O amontoado humano continuava a aumentar e todos permaneciam ignorando o  motivo de tamanha celeuma.  Ninguém informava a ninguém o que havia colocado aquela  massa ordeira e trabalhadora em tamanha balbúrdia.
        Os punguistas passaram a agir livremente. Os bandos de pivetes, depois de uma rápida e objetiva reunião,  estabeleceram a área de atuação de cada um,  a fim de evitar atritos.  Incontáveis vendedores ambulantes afluíram ao local.  Pipoqueiros, sorveteiros, baleiros e outros eiros infestavam as calçadas,  as ruas e as praças,  provocando  sérias  escaramuças  em torno dos pontos de venda.  Até mesmo o glorioso Corpo de Bombeiros deu o ar de sua graça,  comparecendo apressado e barulhento,  jogando mulheres e criancinhas ao solo para logo descobrir-se desnecessário.
        Do alto dos edifícios os funcionários dos escritórios acenavam eufóricos, divertindo-se a valer.  Não demorou muito e começaram a jogar bolinhas de papel,  sacos plásticos preenchidos com urina, rolos de papel higiênico, fora outros objetos não identificados.
        A multidão que se formara ao longo daqueles quarteirões ria às escâncaras;  alguns seguravam a barriga com as mãos, quase explodindo.  Naturalmente, quando  “acertados”,  ficavam fulos, xingavam, esperneavam ensandecidos, faziam gestos obscenos.
        Porém a diversão melhorou consideravelmente quando começaram  a  atirar  gatos  em  cima da multidão.  Em poucos minutos,  não havia um só gatinho no Passeio Público ou  no Campo de  Santana.  Os  mensageiros foram expressamente encarregados de  recolhê-los,  o que executaram com impagável perfeição.
        Fartamente  municiados,  os  datilógrafos e auxiliares de escritório começaram a lançar os felinos dos andares superiores dos prédios. Note-se que muitos bichanos foram  lamentavelmente inutilizados porque o povo, ávido por cooperar,  participou também da caçada aos bichinhos,  mas  tal era o seu ímpeto que muitos animais ficaram divididos  em  pedaços  na mão de caçadores inexperientes.
        O espetáculo estava montado.  Todos fitavam ansiosamente as minúsculas figuras movendo-se entre os retângulos das janelas. Às vezes aplaudiam freneticamente a queda  espetacular de um gato, outras vezes vaiavam e assobiavam, irritados com  o desperdício de  um angorá caído fora do alcance do olhar ou de um gato preto se  estrebuchando  sobre  um  telhado,  numa  irritante recusa a cair no asfalto.
        No entanto, as quedas começaram a despertar menos interesse e todos  já estavam dispostos a reiniciarem suas tarefas quando um datilógrafo mais afoito resolveu subir em cima de uma antena de televisão e de lá arremessou com toda força um infeliz animalzinho. Isso foi a faísca reativadora da multidão, todos se voltaram para o edifício de onde  caíra  a  última vítima.
        Os ocupantes de outros prédios,  revoltados  com  a  apelação do contendor,  decidiram partir para a ignorância.  Arranjaram escadas, arquivos, caixotes, mesas, cadeiras,  e  formaram verdadeiras babéis, em cujo topo um equilibrista operava prodígios.  Era o delírio.  Todos gritavam,  batiam palmas e de  todas as gargantas saíam −  unânimes  −  exclamações e elogios. E uma procissão de  “ahs” e “ohs” grassou no meio do povo,  fato  maquiavelicamente explorado pelo partido do governo e pela oposição.
        Muitos chegaram a guardar um rabinho,  uma patinha,  como recordação de um dia tão feliz.
        O bispo de São Raimundo,  ao  passar  pela  entusiasmada  localidade  e  contemplar  a multidão tão enlevada em inocente distração,  elogiou a índole pacífica e ordeira de todos  e abençoou a cidade, o país, o planeta. Não fazia mais do que externar a opinião comum.  Todos viviam em um terra boa,  pura, bendita. Terra na qual todos conviviam em paz e harmonia, sob o olhar complacente de Deus, um deus esculpido por abnegação e sofrimento,  mas   muito bonzinho. Deus estava no céu, zelando por cada um dos seus amados filhos e, se bem que fosse completamente impotente para minorar nossos sofrimentos,  era um velhinho cordato e incapaz de praticar uma má ação.  Era o diabo quem fomentava a  revolta  no seio  da população,  incitando-a à desordem,  jogando irmãos contra irmãos.  Trabalho vão. No país, apesar de propagandas mentirosas, tudo era diferente: oásis, paraíso, Eldorado, nirvana.
        No auge da festa, no momento em que todos participavam com maior intensidade,  em emocionante ato de solidariedade e comunhão de aspirações e interesses,  as  infernais  sirenas começaram a azucrinar os tímpanos das  pessoas.  Num piscar  de  olhos,  a  brincadeira  cessou. Os homens e as mulheres reorganizaram o centro nervoso da cidade:  recolheram os objetos  espalhados  pelas ruas;  lavaram o sangue sobre o asfalto e as calçadas;  refizeram a ordem e a limpeza em menos de dez minutos.  Depois,  cada um encaminhou-se  silenciosamente para o seu  trabalho,  em passos largos e pesados,  com as faces voltadas para o chão.  Os  policiais chegaram aos montes e começaram a colocar os eventuais vagabundos fora  de circulação.
        A vida voltou ao normal.  Crianças maltrapilhas, a vender amendoim, tornaram a correr da polícia. Nas lojas, nos escritórios, nas fábricas, enfim, em todo lugar onde houvesse produção, trabalho,  as pessoas desempenhavam com perícia as suas funções.  Tudo  na  mais  perfeita organização e na santa paz do senhor. 
        As autoridades ocuparam as esquinas, as praças, as ruas, as avenidas, as lojas, os escritórios, as fábricas, os colégios, os hospitais, os ônibus −  em qualquer lugar sempre existia um representante da lei.  Estava mesmo em votação  no  Congresso  uma  lei  autorizando  a presença de um policial em cada lar,  a fim de fiscalizar as  atividades  domésticas  de  cada família. Tal lei, caso aprovada, estenderia aos encarregados da manutenção do sistema o direito de permanecer a um canto do quarto enquanto casais mantivessem relações sexuais.
        Mas isso não é motivo de grande preocupação para todos. Afinal, sábado,  à noite,  em todas as quadras de escola de samba haverá milhares de indivíduos felizes e satisfeitos à semelhança de outros milhares de  pessoas em  puro  êxtase com as anestesiantes jogadas  dos deuses da bola.

 

 

NANONARRATIVAS II



Jake e Dinos Champman - Zygotic Acceleration, biogenetic-de-sublimated

José Antônio Cavalcanti


I
Camelôs. Guardas municipais babando legislação. Uma velhinha ilumina os sonhos da neta. Mercadorias no chão; no chão, uma velhinha morta.


II

O prontuário registrava isquemia e alcoolismo. Uma semana depois morreu. A quem entregar os buracos da mochila vazando letras de samba?


III

Com cactos e cacos cortava a carne cruelmente. Carregava os cortes como cânceres ou cristais corrosivos nos canais das cicatrizes cruas.


IV

Na pérgula, pernas de princesas parasitárias pedalam perdidamente por pontas e performances patéticas em programas pérfidos e pornográficos.


V

Preparou-se para rifar a família. Simulou palavras e fugas. O celular disparou: "Não me procure mais". Voltou à sala apaixonado pela esposa.


VI

Era outubro e nublado o dia. Da varanda avistou o filho entrar no táxi. A porta arrebentada estava mais inteira do que o seu coração de pai.


VII

Criptografo na minha cripta decrépita o crepitar crepuscular e crítico da cápsula de criptonita incrustada na cracolândia do meu coração.


VIII

Tentei beijá-la, porém seu corpo decompôs-se em sílabas mortas, em uma estranha e intensa nuvem negra afundando no ralo do banheiro.


IX

Fui ao cinema com ela. Minhas mãos no corpo moreno até tocarem, no outro lado, em mãos alheias sob o sexo amado. Três na noite insaciável.


X


A mulher foi tomar banho. O homem permaneceu sob os lençóis, mumificado em êxtase como um faraó suburbano. Precisava lançá-la no deserto.


DEZ NANONARRATIVAS



Beatriz Milhazes

 

      José Antônio Cavalcanti



I
                  
Ao abrir a porta, o motorista assustou-se. Sua ex subiu no ônibus com o homem que fora o amor da vida dele. Dois mortos, dez feridos. 

II
  
A paisagem sórdida infiltrava-se nas janelas e nas veias de Horácio. Seu vício vazava solidão nas esquinas, no jogo clandestino dos clientes. 

III
                                                                                                   
Vejo pela janela a mulher nua do outro lado. Todas as tardes me provoca. Logo fechará com um punhal o zíper das cortinas. Hoje não durmo. 

IV

Era para acertar o bandido. O pai não percebeu o carro à frente. Segurou o braço da filha já sem movimento. O policial balançou a cabeça.

V
 
Porta escancarada, cadeiras caídas e retratos rasgados. O vento lavava risos e fúria sobre as almofadas, saudosas de corpos em desencontro.

VI

Tremor ao vê-la. Há cinco anos confissões à luz de hálitos e desejos tangentes. Agora, um vestido floral anunciava folhas mortas.

VII

Corriam sem nenhuma direção. Atrás vinham viaturas sem placas. Quando pararam, homens desceram do carro, sacaram as armas e cuspiram adeus.

VIII

Ela me pergunta pelos óculos e avisa que não tirei as meias. Lembro-lhe do seu remédio. Não dormimos, apenas silenciosamente nos xingamos.

IX

Abriu o e-mail e leu: "Amor, vou para Vancouver. Embarco sexta-feira". Iriam se casar no sábado. Sobraram uma passagem e um tiro no escuro.

X

Pai em conferência, em reunião, em viagem. Mãe no trabalho, na ong, em viagem. Filho no apartamento, no quarto, na gaveta, na caixa, no pó.




BARRIGUINHA




José Antônio Cavalcanti
 

       Era uma vez um menino pançudo. Tão barrigudinho que todos mexiam quando ele passava. Onde ele ia, a barriga sempre chegava à frente. Todos o chamavam de Barriguinha.
       O gorduchinho era muito guloso. Não podia esperar a hora do almoço ou a do jantar. Sentia cócegas na língua, a sua garganta começava a arder e, na sua enorme pança, os vermezinhos pulavam aos berros:
       – Queremos comida! Queremos comida! Queremos comida!
       Tanta era a sua fome que acordava de madrugada a fim de investir em silêncio contra a geladeira. Pelo caminho, destampava a bombonière, abria sacos de biscoitos e diminuía o número de frutas na fruteira. Pela manhã, a mãe de Barriguinha, ao entrar na cozinha, contemplava horrorizada aquilo que parecia um verdadeiro campo de batalha: cascas de frutas e embalagens de biscoito no chão, misturadas às poças de coca-cola e de iogurte. Brigava, ameaçava, suplicava ao filho mais moderação. Nada adiantava, Barriguinha era insaciável.
     Um dia o volumoso herói arrastou todo o seu peso para uma festinha. Lá avistou uma menina maravilhosa que morava na esquina da rua dele. De cabelos louros e cacheados, olhos de mar e fantasia, cor de beijo, voz belíssima, diretamente do cinema ou dos sonhos para o meio da muvuca. A pequena deusa dançava numa animação estonteante, despertando admiração, inveja e cobiça. Barriguinha ficou maluco. Começou a pular no meio do salão de festas, virou cambalhota, dançou rock, charme, reggae, axé, samba, lambada, valsa, bolero, funk e outros ritmos ainda desconhecidos pela humanidade. Fez de tudo para impressioná-la. Exausto, suado, cheio de catchup e poeira, aproximou-se da diva mirim e disparou:
       – Oi, gatinha, vamos dançar?
       A garotinha convencida olhou bem nos olhos dele e detonou:
       – Qual é? Não se enxerga não? Então você acha que eu danço com um hipopótamo?
       – Ah! Ah! Ah! – ecoou o coro dos amigos da superpaquerada beleza.
       Barriguinha encolheu a barriga e saiu murcho, murchinho, quase chorando de raiva, mastigando um hambúrguer furiosamente.
       Desde esse dia nosso herói passou a preocupar-se com aquele enorme volume abaixo do tórax. Começou a moderar o apetite, a cuidar de sua forma física, a praticar esporte e a ter uma vida mais saudável. A barriga não desapareceu, é verdade, porém assumiu um volume menos ostensivo.
       Um dia, pela primeira vez após a sua grande decepção, Barriguinha resolveu ir a um baile no clube perto da vila onde ele morava. Estava mudado, tinha crescido três anos. No meio da animação conheceu a Lia, uma dentuça de óculos fundo de garrafa, supersimpática, e se encantou por ela. Lá pela metade da festa já estava aos beijos e abraços com a nova paixão. Feliz, pulando de alegria, a mão direita no ombro do novo amor e a outra equilibrando um imenso cachorro-quente.
       Ao sair do clube, Barriguinha levou um susto: a belezura que o desprezara saía agora sozinha, carregando dois seios maiores do que a sua antiga barriga.

Dois personagens, Siron Franco

 Aí onde?

José Antônio Cavalcanti

_ Ainda*...

       * os quatro fonemas inscreveram surpresa no ar, como se vazios dos significados atribuídos à forma adverbial pelos dicionários - até agora, até este momento (presente); até então, até aquele momento (passado); ainda agora, agora mesmo; em tempo recentíssimo (passado);até lá, até esse tempo (futuro); um dia, algum dia (futuro);          us. para dar continuidade à ação; além disso, também, mais; ao menos, pelo menos; mesmo, até, inclusive –, incorporassem, entre a porta e a janela, dimensões insuspeitas.

        ** a idéia de permanência rompia-se de modo violento, ao expressar-se o desejo ou alimentava uma conivência com o imobilismo, os pés fixados nos tacos tão zelosamente limpos? A palavra era sopro de despedida ou sofrida incorporação de parasitismo? O advérbio adjetivava um estado existencial de aderência a uma pele, um convívio colado à incompreensão e incomunicabilidade. Ele era o homem-ainda, ele ainda era ele, e a vida ainda, simultaneamente ainda não podia reconhecer o próprio rosto. Gramaticalizava os gestos e o pensamento na tentativa desesperada de extrair sentidos. Era a capa de um mundo caótico no qual sabia que vida e sentido não rimam. Parecia-se ao papagaio de madeira, pintado de verde, balançando ironicamente a um canto da parede descascada, entre o comutador e o painel azul onde ficavam as chaves.

*** O ainda surgiu quando ela estava arrumando a capa do sofá, sacolas no chão, carnês sobre a mesinha de centro, uma sombrinha lilás aberta entre o som e a tevê ligada mas sem som. Veio alto e sem veneno. Parecia simples, vulgar até. Primeiro deve ter percutido na reprodução de Van Gogh acima do sofá, então o advérbio amarelou-se, e veio em curvas, com sucessivas camadas de decepção, na calma amargura daquelas entonações que parecem definitivas e tão claras que dispensam intensidade e drama, daquelas palavras que ultrapassam qualquer encenação porque alcançam o status de algo definitivo.

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_ ...aqui?!!