domingo, 25 de março de 2012

O último texto




       José Antônio Cavalcanti


Antes que eu me vá, precisava dizer algo. O mundo vai acabar daqui a alguns meses, e antes que a lua despenque suas crateras sobre a nossa insensatez, antes que um nômade meteoro arremesse como um alucinado suas rochas incandescentes contra uma fazenda de Uberlândia, em Minas Gerais, eu precisava dizer. No entanto, tudo ficará numa das formas do pretérito, aquela expurgada de qualquer gramática por referir-se a ações não realizadas, que algum gaiato rotulou de pretérito mal passado. Tento arrancar expressões exatas, todo o vocabulário submerso da não escrita com sua crosta de impurezas e maravilhas. Uma matilha rancorosa, ancorada em algum território absconso, lança um ataque de mísseis à minha memória.  Piso em imagens e afetos renegados, fotografo as cenas extintas de amoroso enlace: cacto e esponja, diamante e vinho, serenidade e turbulência.  Sob o vidro espatifado do retrato, tudo o que vejo somos nós, na velha banheira, dois corpos exaustos, envelhecidos, afogados por toneladas de indefinições. Vou lançando a torto e a direito todas as desconexões possíveis. Imperiosas as disjunções, as dislogias, as portas fechadas, o esvaziamento de toda carga emocional, a blindagem como antessala do autoaniquilamento. Talvez o trabalho tornasse possível a ilusão de um caminho. Mas desisti de buscas. Vivo sob o fascínio da minha ruína. Vou me largando em suportes inócuos da inexistência, fantasma virtual digitalizando pedras e dramas. Posso ouvir meus olhos, pernas, mãos, pau, coxas, cabelos, todas as partes incapazes de um centro, na galeria de um museu de assombros ou como trilha de ópera absurda. Toda palavra perdida remete a você; ouço o tremor da sua voz  quando corto os fios da rede de explicações, desfaço os ângulos de proximidade e contato, inviabilizo tangências, destruo a lógica de formalismos e conveniências, vandalizo as cidades de ternura que construí como um louco para você. Dessa vez não precisarei de atos extremos, a morte já instalou o seu programa na minha alma. Vou partir antes do fim do mundo, é fato. Descobri que o silêncio é a única linguagem capaz de expressar o mundo sem a sua presença. Precisava dizer algo, mas já estou de saída. Gostaria de ficar e descobrir o que preciso tanto dizer, mas a clepsidra é uma déspota a sorver com volúpia todos os afetos.

Sob o céu de Lisboa




As casas de fado nas ruazinhas e vielas da Alfama, na volta da subida ao Castelo de São Jorge, entoam canções marítimas que se agarram aos meus passos. Ao léu pelos bares e cafés boêmios do Bairro Alto, mesmo diante do mercado municipal, após idas e vindas entre as ruas de D. Pedro V, de São Pedro de Alcântara, da Rosa, do Conde de Soure, da Atalaia, como fantasmas sonoros as músicas ainda tomam a minha alma toda de assalto. Depois da noite plena e insone, fugi do roteiro turístico de dez prestações e vaguei por Restelo, Baixa, Liberdade. Parada obrigatória no Brasileira, café famoso no elegante Chiado, bairro onde Fernando Pessoa permanece sentado, alheio ao progresso. Evitei livrarias para não suprimir a cidade dos meus olhos. Em visita ao Museu Nacional do Azulejo, no dia posterior ao deslumbramento produzido pelo monumental Mosteiro dos Jerônimos, herança da grandeza perdida, fruto do cristianismo e do expansionismo luso, onde repousam os restos de Camões. Aliás, guardo do mosteiro o sabor dos pastéis de Belém depois da longa fila na Fábrica dos Pastéis de Belém, todos de olho na Oficina do Segredo. Depois, incursões ao Museu do Traje e ao Museu dos Coches. Rápida passagem pelo Oceanário, pela imponente Sé, antes do passeio nostálgico à Torre de Belém, graciosa fortaleza em miniatura.  Sem tempo para apreciar a paisagem vista do teleférico, cansado e sonolento para guardar a rápida visão noturna da Estação do Oriente, retorno à colmeia. Manhã apressada me levou ao Largo do Rossio, entro na Rua do Carmo, olho tudo, mas não compro nada. Perambulo pelo metrô: Baixa/Chiado, Rossio, Martim Moniz, Intendente, Anjos, Arroios, Alameda, e volto. Dia sem compromissos, melhor então é comer sardinha no Peniche. Já havia me encantado a bordo do bonde 28 e seu percurso mágico. Antes de pensar nas malas, um tremor. Alguém está em todas as ladeiras. Percebo, entre cafés e azulejos, Cesário Verde recitando o poema “Num bairro moderno”. A voz baixinha, que só eu escuto, cria um corpo humano imaginário, construído com frutas, legumes e hortaliças, à semelhança do que realizou, embora com mais estranheza, Arcimboldo na pintura. Cesário Verde renovou temas e incorporou à poesia as falas das ruas de Lisboa. Além disso, o forte sentimento do concreto, a metalinguagem, a ironia cortante, a perda da aura da figura do poeta e o intenso apelo visual conferem aos seus poemas uma acentuada modernidade. No começo não compreendi a sua interferência na paisagem. Depois lembrei a ausência inscrita na minha origem, então sorri com serenidade. Sob o sol de Lisboa jaz intacta a rua inaugural da minha existência. Meu pai, o oceano.

sábado, 24 de março de 2012

Roberto Bolaño: uma literatura nômade





    José Antônio Cavalcanti

Roberto Bolaño, além de atrair uma legião crescente de leitores, tornou-se uma referência para todos os autores jovens (e nem tão jovens assim), tomados de assalto por uma escrita dotada de forte pulsação rítmica, com personagens à deriva, mas que arrastam na caminhada às escuras todas as leituras possíveis. Seus textos incorporam experiências pessoais à construção de uma realidade sem glamour, sem a presença da luz de um caminho, porém fonte de persistente inquietação e estranheza. As técnicas narrativas, o exílio, a escolha do lado esquerdo do mundo, a reutilização de personagens e cenários contribuem para a construção de uma escrita nômade, em que tudo circula para inevitavelmente desaguar no vazio, no deserto de sentidos situado no México, no Chile, em Barcelona, em qualquer lugar ou em lugar algum.
Chamadas telefônicas, o primeiro livro de contos de Bolaño, publicado originalmente em 1997 e só agora lançado no Brasil, guarda em seus textos breves a escrita de urgência como enfrentamento da morte. Ao antecipar temas, personagens e recursos narrativos explorados de modo intenso em obra posteriores, o livro funciona como um cartão de visitas do universo do autor.
Os quatorze contos são divididos em três partes – Chamadas telefônicas, Detetives e Vida de Anne Moore, todas encerradas com narrativas homônimas.
Na parte inicial, a própria literatura é colocada em primeiro plano, recurso de metalinguagem recorrente na produção do escritor chileno, mas num viés que privilegia a zona de sombra da escrita, os perdedores heroicos, os escritores fracassados.
O conto de abertura do volume, “Sensini”, incide sobre um escritor argentino exilado na Espanha especializado na caça a concursos literários por enxergar neles uma forma de sobrevivência. A narrativa estrutura-se sobre elementos autobiográficos. Bolaño, ainda anônimo, também participou de diversos concursos; num deles, o 1º Prêmio Alfambra de Contos, conheceu o autor argentino Antonio di Benedetto (1922-86), a quem tomou como modelo para construir Luis Antonio Sensini. No prefácio a Monsieu Pain, relembrando essa época, Bolaño referiu-se ironicamente à perseguição de “prêmios búfalos que um pele-vermelha tinha que caçar”.
Em “Henri Simon Leprince”, ambientado na França durante e depois da Segunda Guerra, encontramos um escritor fracassado, cuja invisibilidade, apesar de uma atuação digna e corajosa na Resistência, surge como propriedade irremovível de sua existência. A marginalidade completa do anonimato, a rejeição de público e crítica, a repulsa de seus pares enunciam a solução fatal: “ele deve desaparecer, ser um escritor secreto, fazer com que sua literatura não reproduza seu rosto”.
Dedicada a Enrique Vila-Matas, “Enrique Martin” aborda o caminho que leva um poeta “à ruína, à loucura, a morte”, como nos avisa o narrador em primeira pessoa logo no início:  Arturo Belano, alter ego de Bolaño, protagonista, ao lado de Ulises Lima, de Os detetives selvagens. A literatura surge como o espaço do inalcançável. Enrique Martin, poeta extremamente medíocre, apesar da tenacidade cega de seu dedicação, não consegue um modo de realização estética. Uma trajetória na qual a poesia não assegure cumplicidade produz o progressivo enlouquecimento e o suicídio do poeta.
A ironia e a política literária são usadas com excelente resultado em “Uma aventura literária”. A história expõe uma tensão entre A e B. A, famoso, tem dinheiro é lido; B, um escritor desconhecido, publica seus textos em revistas de público inexpressivo. B transpira ressentimento. Consegue publicar um livro em que critica com ironia a obra de A. Este reage de modo incompreensível, faz elogios ao novo autor e contribui para transformar o livro em sucesso de vendas. Assim, surge a necessidade da construção de uma cadeia de raciocínios elaborados pelo protagonista para justificar a ação inesperada daquele que fora, na verdade, alvo de uma escrita rancorosa.
As idas e vindas de um casal separado sustentam o conto que dá título ao livro, “Chamadas telefônicas”. O narrador onisciente permite a construção de sentidos diversos para a história. A separação e o reencontro de um casal são feitos por telefone. O homem não consegue ajudar a mulher a enfrentar a depressão e a tendência ao suicídio. B, o ex, sonha com um boneco de neve andando pelo deserto. Condição irremediável das personagens de Bolaño, todas entregues a uma andança interminável rumo ao desconhecido. O desfecho da história, com a revelação sobre a morte da antiga companheira, revela as propriedades tomadas pelo autor à narrativa policial, antecipando, assim, o próximo bloco narrativo.
A segunda parte do livro, sem perder o apelo a recorrentes referências literárias, acentua a propensão a um realismo cru, visceral (não foi à toa que em Os detetives selvagens,  o narrador inventou o “real-visceralismo”) e violento, com personagens mergulhados em situações absurdas, na zona sombria do submundo e da ruína existencial. “O verme” trata de história da amizade entre um velho e um jovem (novamente Arturo Belano) em fuga dos compromissos escolares para navegar entre livros e sessões de filmes europeus ou mexicanos, alguns recontados no texto, explicitando a dívida do autor com a narrativa cinematográfica concentrada na ação contínua. O título sugere, na metáfora pespegada ao velho, um ambiente de desolação, espaço de migração, perda, decadência e violência. Lugar originário do “verme” e do avô de Arturo Belano, Santa Teresa (nome fictício de Ciudad Juárez), em Sonora, onde ocorrem vários assassinatos de mulheres descritos no romance 2666, considerado a sua melhor obra, já aparece na ficção do autor de Noturno do Chile.
Em “A neve”, Rogelio Estrada, filho de comunistas chilenos, exilado em Moscou, assiste à decomposição do regime soviético. Relaciona-se com a máfia russa por intermédio de Misha Pavlov, gangster da pesada e leitor refinado, numa curiosa e insólita mistura de banditismo e literatura. Rogelio apaixona-se por uma saltadora, amante do chefe. O ato de matá-lo não o livra do submundo, torna-o apenas subordinado a um novo capo.
O narrador de “Outro conto russo”, transformado posteriormente em personagem de 2666, o professor de filosofia Amalfitano, reproduz com um humor negro a história de um soldado espanhol em ação no front russo durante a Segunda Guerra salvo da morte, mas não do sofrimento, de maneira insólita.
Em “William Burns” o protagonista homônimo assassina um sujeito inocente movido pelo medo e pela denúncia das duas mulheres com quem vivia, ambas ameaçadas por um desconhecido.
A estrutura dramática do conto Detetives”, diálogo cínico e absurdo sobre a impossibilidade de se justificar o injustificável, constrói um clima asfixiante em que dois policiais relembram os dias sombrios da ditadura chilena. Autobiográfico no limite da catarse, o texto transfigura a passagem de Bolaño, novamente transformado em Arturo Belano, pelos cárceres de Pinochet, dos quais foi salvo, segundo ele mesmo confessou, pela interferência de dois amigos de infância transformados em agentes da repressão.
A terceira parte reúne quatro histórias protagonizadas por mulheres. “Colegas de cela” traça a trajetória de um homem e de uma mulher vítimas políticas no mesmo período mas em países diferentes: Chile e Espanha. A pequena, morena e bonita Sofía vive à deriva, entregue a amantes voláteis e a uma indefinição constante. Melancólico e pungente, a banalidade de sucessivos desencontros desenha a vida como energia que se perde no vazio.
“Clara” conta a história de uma mulher cujo único ato notável na vida foi a conquista do segundo lugar num concurso de beleza. Depois, tudo cai numa rotina depressiva e embrutecedora, e ela passa a andar em círculos no território sombrio da realidade. O narrador destila toda a sua ferocidade: “Quando a vi, demorei a reconhecê-la. Tinha engordado e seu rosto, apesar da maquiagem, exibia o estrago, mais que do tempo, das frustrações, coisa que me surpreendeu, pois no fundo nunca acreditei que Clara aspirasse a nada. E se você não aspira a nada, com que pode estar frustrado?”.
“Aqui estou eu, Joanna Silvestri, trinta e sete anos, atriz pornô, prostrada na Clínica Os Trapézios, de Nîmes, vendo as tardes passar e ouvindo as histórias de um detetive chileno”, assim começa o relato de decadência “Joana Silvestri”. A personagem narra com muita naturalidade a um interlocutor, do qual sabemos apenas que é chileno e não se considera detetive, experiências da vida amorosa e profissional ambientadas na Califórnia.
As fendas e elipses do texto de Bolaño permitem associá-lo à teoria do iceberg, de Ernest Hemingwat: “Se um escritor de prosa sabe o bastante sobre o assunto do qual está falando, ele pode omitir coisas que sabe e o leitor, se o escritor está escrevendo de forma verdadeira o bastante, sentirá essas coisas com tanta força como se o escritor as tivesse afirmado. A dignidade do movimento de um iceberg existe porque apenas um oitavo dele está acima d’água. Um escritor que omite coisas porque não as conhece apenas cria lugares vazios na sua escrita”.  
“Vida de Anne Moore” conta a história da protagonista desde o nascimento, em 1948, até o seu desaparecimento. A narrativa tece um caminho sem grandeza, expondo com crueza uma vida em que encontros e desencontros não formulam qualquer rumo. Anne Moore, ainda que presa a um caótico deslocamento de parceiros e lugares, sucumbe à banalidade do vazio, desaparece num vácuo existencial.
O labirinto de Bolaño não corresponde à representação geométrica borgeana de uma percepção metafísica, mas desenha uma rede caótica e inextrincável na qual a existência expele a vida como destroços, gestos fraturados da irrealização, O deserto onde todas as personagens se perdem só pode ser atravessado pela escrita como gesto urgente de rasura e resistência. O hiper-realismo em Bolaño impregna as letras do discurso de fisicalidade e tom vitalista, sem nunca abandonar a envenenada estética da palavra. Por isso o século XXI, ao menos em seu início, é cada vez mais Bolaño.


Chamadas Telefônicas,
de Roberto Bolaño.
Tradução de Eduardo Brandão
Editora Companhia das Letras
212 páginas.
R$ 39,00

sexta-feira, 23 de março de 2012

Páginas da zona de sombra


René Magritte


VIII

Isso é um teste, um texto, um resto. Isso é, são, foi, foram os, as. Palidez de palavras na página porque as sílabas não captam. Ex, quase, talvez ou nunca, os sentidos escapam pelos túneis semânticos do precário. Todos os signos, isso: areia movediça, pântano, entulho, a traição dos espelhos, insignificância. Especulação a escrita. Fluxo, continuum, duração bergsoniana em que se esboroa a experiência. Sintaxe de desgaste, esquizofrenia da linguagem. Rasura e falha, o texto desenha a camuflagem para a impossibilidade da fala. Excesso de poréns, concessivas em remendos, temporais do instantâneo, causas sem consequência e vício-versa. Todas as sentenças são relativas, isto é, poeira radioativa de significados flutuantes e invisíveis. De tecer, carimbam especialistas, a origem. O texto, entre tantos,  é onde o mundo acontece e todas as páginas são, simultaneamente, formas de desaparecimento. Isso não é um teste, sequer um texto, nem há nada que preste, por isso poesia é imprestável, toda arte é manifestação de imprestância. Isso não é, e isso é tudo que é possível ser. Acontecer vem do latim  *contigescere, var. de *contingescere, incoativo de *contigère, do lat. contingère 'atingir, chegar a; encontrar; resultar de'. Não obstante, ninguém escreve para encontrar a, o, se. Toda palavra é o som e a grafia da perda. Não capturar significados, dissipar-se, doar-se, acender a queda como dêitico da liberdade.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Páginas da zona de sombra





VII


Na lateral de uma ponte polonesa, cadeados antecipam blindagem e ocultamento. Selo metálico de crimes e segredos, multiplicados, parecem expor a cidade como campo de gestos clandestinos, como se todas as ruas fossem linhas de invisibilidade. O que se guarda é suposto bem precioso: a carta encardida de confissões assustadoras, o dinheiro desviado, as telas roubadas pelos nazistas, os diamantes contrabandeados do Brasil, o ouro sul-africano, joias falsas, talismãs mexicanos, brinquedos do tempo irrecuperável, testamentos para demandas entre herdeiros, instruções criptografadas, segredos industriais ou amorosos, croquis de agências bancárias para futuro assalto, números cabalísticos. Invento uma possibilidade não cartografada: os cadeados são construídos para aprisionar os espíritos. Testemunhas insolentes e silenciosas da nossa insignificância, injetam paranoia em olhares mortos e simulam posse e poder sobre cinzas. Instalados nas costas dos homens curvos, segregam um visgo alaranjado de almas enferrujadas, dessas que se corroem em interiores, celas, cômodos secretos, porões, sótãos, masmorras, condomínios blindados, cercas, muros, muralhas, salas, cofres, covis, encaixotadas pelo medo e pela indiferença. Cadeados não escondem nada, apenas expõem o lado pantanoso de nossas sombras. 

terça-feira, 20 de março de 2012

Páginas da zona de sombra





 VI

Saio mais uma vez de “Os mortos”, de James Joyce. Desço as escadas, largo as ruas de Dublin para circular cercanias Tiradentes. Todos flutuam dentro de bolhas. Protegidos de sílabas e afetos por fina película resistente a tato, a palavras, à explosão nuclear. Notável este mundo onde casulos flutuantes tomam de assalto a cidade. Tecnozumbis em suas bolhas calculam frações de triunfo, estudam o caráter ascensional dos movimentos, configurados à geometria do poder e à estética do nada. As conexões apenas numéricas, numa rede sem fio e sem finalidade. Imersos na transparência das bolhas, os corpos negam a imagem que aparentam. Não há rosto no interior dos invólucros da matéria desconhecida. As bolhas são práticas, dispensam entrada e saída, portanto não precisam de chaves. Funcionalidade é a palavra mágica (claro, mortal aos poetas). Vejo a passante de Baudelaire sumir dentro de uma bolha esverdeada. Parece que as setas no chão fornecem a direção, por isso todo o olhar é preenchido por imagens em um ritmo alucinante, desse modo perde-se a capacidade de ver algo que vá além de anúncio, letreiro, manchete, mercadoria. Sim, a vida no interior das bolhas vem codificada em um Manual de Instruções. Todos os caminhos estão gradeados em GPS. Todos os movimentos registrados no Arquivo Geral dos Gestos. Lacrado, não em bolha, mas em uma arca enferrujada no depósito municipal, o livro de descobertas há décadas não registra nenhuma palavra. 


sexta-feira, 9 de março de 2012

A Semana de Arte Moderna – mito e história


 

 

 * Resenha publicada no Jornal do Brasil em 09.03.2012



José Antônio Cavalcanti


Este ano  comemoram-se os noventa anos da Semana de Arte Moderna, marco inicial do nosso Modernismo,  realizada nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Como acontece em todas as datas redondas, diversos lançamentos somam-se ao extenso legado de obras consagradas ao tema. 1922: a semana que não terminou, de Marcos Augusto Gonçalves, editorialista e repórter da Folha de São Paulo, reconstrói, na linguagem fluente e ágil do jornalismo,  o contexto e os preparativos para o evento, além de destacar os momentos mais importantes e traçar um perfil dos protagonistas, tudo amparado em ampla investigação, enriquecida por excelente iconografia.  
Apesar de não haver uma preocupação em reavaliar criticamente a Semana, as informações reunidas pelo autor permitem preencher certas zonas de sombra, ao propiciar maior nitidez sobre as relações entre os autores modernistas e a elite paulista, num processo paradoxal que instituiu o modernismo não como ruptura, mas como um jogo conciliatório com o conservadorismo que supostamente o movimento deveria combater. Se na Europa a arte moderna precisou conquistar terreno à margem dos salões oficiais, no Brasil veio à cena “pela via oficial e conduzida pela mão do poder”.
As duas partes iniciais do livro concentram-se em apresentar os preparativos da Semana. Só na reduzida parte final o autor descreve o que de fato ocorreu nos três dias considerados decisivos para a arte brasileira.
Os anos anteriores a 1922 viram nascer uma insatisfação com a literatura no Brasil. Toda a tradição realista, naturalista, parnasiana e simbolista sobrevivia como fantasmas disputando um território abandonado. O contato com a cultura europeia - realizado por intermédio da leitura de textos inovadores, por meio das viagens de Anita Malfatti, Graça Aranha, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, entre outros, e pela vinda para o Brasil de artistas europeus, como Brecheret - expunha o fosso que afastava nossos autores do amplo movimento de renovação estética proposto pelas vanguardas. Essa percepção manifestou-se na polarização entre futurismo x passadismo, pois o primeiro termo, posteriormente renegado, possuía então uma significação muito mais vasta, representando a ruptura com o atraso e com a tradição acadêmica. O fato de Mário de Andrade rejeitar o rótulo de “futurista” tanto significou um afastamento da proposta de Marinetti, quanto assinalou um caráter complacente em relação à tradição criticada. 
Ao abordar as relações com a tradição na gênese da Semana, o autor é bem preciso: “Se havia negação na atitude polêmica e agressiva do grupo, a estética prendia-se ainda ao passado. E o evento, programado para gerar repercussão, parecia combinar muito bem com os interesses da elite paulista de autovalorização histórica e hegemonia intelectual”.
Não há como fugir à força da Pauliceia, à presença do ufanismo paulistano. A Semana foi trabalhada desde o início por intelectuais paulistas, com a ajuda de representantes da burguesia cafeeira, sob o influxo de Paulo Prado, misto de escritor e empresário. Todos perceberam a necessidade de o movimento ultrapassar os limites do provincianismo. A presença de figuras do cenário do Rio de Janeiro contribuiu para dar uma dimensão nacional ao evento. No entanto, a Semana assinalou um deslocamento cultural só tornado possível, de acordo com o crítico Antônio Cândido, porque “meia dúzia de intelectuais renovadores da Pauliceia, por estarem mais afastados do campo gravitacional do poder literário e artístico, teriam menos a perder”.
O deslocamento promoveu visões diferentes, confrontando leituras paulistas e não paulistas. A Semana, assim, passou a ser exaltada, combatida, negada, ao sabor de circunstâncias diversas, dificultando uma avaliação crítica mais acurada.
Por outro lado, algumas manifestações literárias com feições modernas, como a “escrita art déco”, estudada por Beatriz Resende, foram praticamente apagadas do cânone por um modernismo depurado de qualquer elemento que não correspondesse à visão do núcleo articulador da Semana.
A efeméride poderia ter passado à história como Semana Villa-Lobos. O espaço reservado à literatura, diminuto em relação à música, assumiu a forma de conferências: “A emoção estética na arte moderna”, de Graça Aranha, palestras de Menotti del Picchia, de Mário de Andrade e de Ronald de Carvalho.
A leitura de poemas, após a palestra de Menotti, já faz parte do nosso folclore literário. Assim que Oswald subiu ao palco, houve vaias e manifestações de desagrado. Tudo indica, no entanto, que os modernistas alugaram uma claque para encenar o escândalo: “Depoimentos de participantes do evento sugerem que o receio do fiasco os teria levado a incentivar alguns conhecidos a puxar a vaia no segundo dia”. Um golpe de mestre ou de marketing, fato já apontado por Mário da Silva Brito, no indispensável Antecedentes da Semana de Arte Moderna, primeiro volume da História do modernismo brasileiro, obra que infelizmente não teve continuidade.  
Livros, ensaios, reportagens, artigos, dissertações e teses ajudaram a construir uma visão multifacetada do marco inicial do modernismo. O livro de Marco Augusto Gonçalves serve para atenuar a visão acrítica sobre um mito da cultura oficial brasileira. A reconstituição passo a passo dos acontecimentos questiona verdades aceitas como incontestes, lacunas, deturpações. Torna-se uma referência importante para fugir a um evento reinventado constantemente ao longo do tempo pelos próprios participantes e por parcela significativa da crítica. A Semana de Arte Moderna é um mito móvel, informe, afetivo. Não pode ser apreendida apenas pela leitura de sua programação, pois tanto guarda organização quanto improviso, vale tanto pela presença quanto por ausências e esquecimento. Nela, no entanto, dificilmente encontramos as marcas de ruptura. Foi preciso um trabalho notável para reinventá-la como dias extraordinários de inovações estéticas e de propostas radicais.
Por ser uma manifestação flutuante, autêntico ponto de cruzamento de linhas de chegada e de partida, assumiu uma dimensão extraordinária, inscrita como nascente do pensamento e da sensibilidade que ainda nos regem. A leitura do livro ajuda a desmontar fantasias sobre os três dias mágicos e revolucionários de noventa anos atrás, apaga a lenda para nos restituir a história. Não obstante, a Semana nunca será aprisionada ao ano de 1922. Sempre viverá miticamente em fuga, o que só aumenta o desejo de querer inaugurá-la. Estranha semana, seus dias só transcorreram em anos posteriores.


     1922: a semana que não terminou.

      Marcos Augusto Gonçalves

      Companhia das Letras

      R$ 49,00 

quinta-feira, 8 de março de 2012

Páginas da zona de sombra


V

Não diria infiltração em tela alheia, antes uma galeria de faits divers, zona de dispersão de fantasmas incubados em espelhos. Pouco importa o piso, o papel, o ladrilho, em qualquer superfície – fria ou quente – a mesma falta de juízo, a mesma curvatura de uma sombra inverossímil, exposta em mímica e contorção. Talvez fosse possível uma outra geometria, incorporando mofo e ângulos mortos. Mas a parede azulejada converte película em museu, um antro enigmático onde a arte instala, em posições artificiais e aritméticas, a vida como resíduo e projeto de nuvem. Não estar inteiro, abolir a perspectiva que conduz a um centro, expõe o corpo (o meu?) e sua sangrenta rota de fugas. Nada de tragédia no percurso. Por favor, não grite. Nenhum excesso anulará o vagaroso acúmulo de gás na pele e nos olhos. Algum desavisado leria, sem dúvida, a secção de sentidos como uma vida desossada, gesto que apenas o conduziria a um cômodo vazio. A sala secreta, no entanto, é música em outro plano. O horizonte não está no olhar, nem longe, nem distante. Horizonte é toda linha que justamente não está. Como você, por exemplo, do outro lado dos azulejos. Desmonte de manhã e horizonte, a existência como despojos, é tudo que posso lhe oferecer - um buquê de desejos bárbaros manchando o seu vestido floral. 

Adriana Varejão

domingo, 4 de março de 2012

PÁGINAS DA ZONA DE SOMBRAS

IV

FÁBULA

Era uma vez uma vogal pouco arredondada, aberta, de oralidade intensamente feminina, como um sol vivia no centro de qualquer sílaba. Um dia, cansada da rotina em comum com as suas irmãs e invejada pelas primas, constrangedoras constritivas e explosivas oclusivas, pôs-se a caminho da independência (gesto insensato, pois não existe autonomia na linguagem). Fugiu de casa com duas malas de acentos agudos e graves, sobre a cabeça um til escondia o ouro dos cabelos. No entanto, outra vogal esguia a tudo assistia bem mais à frente, fechada e alta. Ocultava estranha pulsação sonora no peito quando articulava uma melodia em comum com a vogal-rainha. Curiosa e insensata, desprendeu-se da nuvem onde morava e seguiu, movida pela paixão, a fugitiva veloz. Tonta vogal afinada e fina, cada fuga é particular e intransferível. Mas a louca achou possível uma sílaba especial com a outra, um ditongo para toda a vida. Que tombo! Que pancada! A vogal-rainha, refeita da surpresa e do fugaz encanto do som que se julgava alma gêmea, rompeu logo o pacto:

- Nada de ditongo, não temos nada em comum! Quero ficar só! Nossa união será sempre assinalada por um intervalo! De pouco proveito será para você ficar ao meu lado! Não preciso de capacho nem de escravo!

Esse foi um caso triste, inusitado e raro. De nada valeram os argumentos e assovios da vogal ensandecida: as canções mais alucinadas, as interferências sonoras mais mirabolantes, as mais belas modulações, timbres, ritmos não encontraram ouvidos. 

De fato, sou o primeiro homem na história da humanidade que morreu de hiato.






















III

Duelamos silêncios, dançamos uma esgrima de ausências. Havia o tumor de mundos extintos quando não nos cabíamos? O amor temperava no suor da carne a sopa de ruínas e azedume? Talvez um fluxo surdo e arroxeado minasse as palavras, gotejantes sílabas de eros e incandescência. Prensados por muros, contidos em frascos de veneno, tolhidos por fiscais de voos e alumbramento, caminhamos na contramão? Agora, sentado neste banco, observo o trânsito de abelhas e mamutes à frente de um circo decadente. A praça cheia de olhos implora minha retirada. As babás já recolheram as crianças. Só indesejáveis e suspeitos me olham com desconfiança. O policiamento não tardará. Mas não posso sair desse lugar, preciso ver você passar do outro lado da rua, do outro lado da cidade, do outro lado do planeta. Claro, você não virá, não sairá da frente do computador, não largará o iPhone, o iPod, o iPad, o tablet, o shopping, a rede social, ligada 24 horas na cilada da informação como forma de infantilização dos sentimentos, fuga da conversa e do afeto. Mesmo que você me olhe, não me reconhecerá, morto em 15 de dezembro de 2010, renasci há dez minutos atrás e resolvi ficar nesse banco, catatônico, invisível, cercado por um cão pestilento e moscas, um tambor explodindo no peito.




II

Ontem, antes da chuva, a lua era anúncio de despedida em sua curva. A noite turva escondia sobre o abraço a dissolução de países inviáveis. Mãos inábeis conduziam carícias no corpo de pedra e despedida. De olhos fechados, o que se via era o ruído de placas tectônicas em movimento. Tremor não era gozo, mas abalo, desmoronamento, física de dispersão e adeus. O último beijo é cogumelo mofado na selva dos sonhos. O último beijo é música congelada na primeira página da paisagem escura. Ontem, depois da chuva, o último beijo selou com batom e cerveja a caixa da solidão.





I

Atrás da porta um abismo me espera? Devo enfrentar o escuro, o pânico, o absurdo? De que me vale o abrigo no deserto, a inclemência do céu, o rancor do zodíaco, a transformação do abandono em oásis? Sei que o meu nome foi apagado do corpo da mulher do outro lado da porta. Seu olhar ainda medusa o pântano dos meus olhos, enquanto me atira areia e pedras, suspensa sobre um piano de gargalhadas. É verdade, tenho um isqueiro, mas me falta gasolina. Caríssimos leitores amigos, como tocar fogo em tudo?