sexta-feira, 19 de agosto de 2011

NA NOITE IMPOSSÍVEL

Vladimir Kush

                                                                                     
     José Antônio Cavalcanti

Jamais poderia imaginar que o que aconteceu há uma semana fosse possível. Porém, apesar de eu mesmo não encontrar explicações, tudo aconteceu como vou contar. 

Era noite. Uma chuva miúda caía lá fora. Eu estava em frente ao monitor, meio perdido e cansado. A garrafa térmica e a xícara de café sobre a estante envidraçada anunciavam mais uma longa jornada. As ideias escapavam à possibilidade de texto. Pensava em escrever sobre a tese; caminhos e descaminhos da pesquisa; origens e fins; precisar intenções, justificar escolhas. Quarenta minutos imobilizado e nada. Não sabia como começar. Rejeitava todas as possibilidades, num grau de exigência absurdo. Fui retirado do impasse por um leve ruído na maçaneta da porta do quarto. Nada além do vento ou de algum movimento natural, pensei. Sequer fui verificar, preso à teia acidiosa da minha deriva.

Poucos minutos depois, ouvi um ruído mais forte, como se alguém quisesse e não conseguisse entrar. Levantei-me e abri a porta e, meu Deus, eis que a própria Hilda, aos 28 anos, surgia à minha frente  vestida em um modelito década de 50: blusa de crepe caramelo de manga três quartos com os ombros sensualmente torneados, saia godê grená, bem justa na cintura, com caimento quase à altura dos tornozelos, sapatos de salto agulha em tom caramelado. Parecia uma personagem saída de algum filme de Hitchcock, com notável diferença: era estonteante. A mão direita exibia, no alto, um copo de uísque, enquanto a esquerda ainda se apoiava na maçaneta. Ria baixinho, de modo irônico e levemente embriagado. Seu riso era pura provocação, desafio. Confesso, claudiquei. Acovardado, fechei a porta. Em vão. Ao virar-me em direção à escrivaninha, deparei-me com uma menina de oito anos, sentada na poltrona azul próxima à janela. 

– Você se lembra de mim? – sussurrou em suave inocência. – Sou Lory Lamb. Quer que eu tire a roupa? – Atirou palavras e tentação com uma overdose de sensualismo e perversão infantil sobre o meu espanto. Sentei-me bem devagar (ou caí) na cadeira rasgada da escrivaninha e fechei os olhos. Ao reabri-los, havia desaparecido. 

Após alguns minutos, voltei a pensar na prosa ficcional de Hilda Hilst. O que provoca a violenta comoção de sua leitura? Que propriedades encantatórias guarda o texto hilstiano? Por que é tão impactante? Precisava encontrar respostas. Eu ainda devia estar tonto: quem ainda acredita em respostas nessa altura do campeonato? De que ilusões me alimentara: procurar entender, buscar sentidos, acreditar em significados, ideologias, bandeiras. 

Havia lido toda a prosa ficcional de Hilda, acreditava que só um recorte abrangente pudesse dar conta daquilo que nela existe de mais essencial. Depois de, progressivamente, abrir mão de vários livros, consegui concentrar-me em três: Estar sendo. Ter sido. Tu não te moves de ti e A obscena senhora D. Trabalhei numa linha de pesquisa voltada para a indistinção entre prosa e poesia em seus textos ficcionais. Para isso tomei como ponto de partida a expressão “poesia em expansão”, empregada por um de seus interlocutores em entrevista concedida por Hilda Hilst aos Cadernos de Literatura Brasileira do IMS. Assim, aos poucos ia encontrando um caminho que justificasse o título da tese: “Deslimites da prosa ficcional em Hilda Hilst”. Pesquisei o processo de contaminação da prosa pela poesia, apoiado no conceito platônico de poiesis, ou seja, como “pro-dução, criação, passagem do não vigente para o vigente”, assimilado via Heidegger. Pude perceber como o caráter tardio da prosa ficcional , passado o momento primeiro, de reprodução especular da realidade, recuperava a potência da poética matricial mediante a crise da representação. Apostei, então, na escrita como cruzamento do plural e do proteico, ciente do movediço e precário terreno de seus termos. A indistinção, a zona de penumbra, o campo minado das fronteiras textuais propiciaram um caminho cujas incertezas me pareceram mais exatas do que a lógica narrativa fornecida por tipologias textuais, divisões genéricas, hierarquização discursiva, o método da transformação do texto literário em objeto de apreensão e catalogação destinado a validação de uma espécie de selo de qualidade, fetiche da crítica instituída como instância axiológica. 

Precisava não estabelecer um muro entre Hilda Hilst e o meu texto. Se necessitava de um mínimo campo conceitual para organizar minhas ideias, não poderia escravizar-me a ele, muito menos reduzir a prosa hilstiana a um experimento de laboratório. Em Giorgio Agamben encontrei a sustentação teórica da ideia-base, porém sempre no limite da necessidade real da pesquisa, evitando o engessamento do texto hilstiano e fugindo ao vício de usá-lo como mera exemplificação de qualquer formulação crítico-teórica, numa instrumentalização do texto literário como mera ilustração de correntes de ideias momentaneamente alçadas ao ponto culminante do vigor do pensamento.

- Pena, meu caro, que você nada entendeu. – ouvi uma voz grave soprar no meu ouvido esquerdo. Não acreditei. Era o próprio Agamben ao meu lado, esguio e elegante num blazer azul marinho, mais interessado num livro de filosofia escolástica do que na minha reação.

Senti dificuldade em responder. Achei-me inseguro, impotente. Como discutir com quem me orientara? No entanto, irritado rebati rudemente: - Por que o senhor saiu da Itália para vir aqui perturbar o meu trabalho? Se não pode enriquecer a minha tese, por favor, volte para casa.

- Você é um tonto – retrucou Agamben e num tom mais agressivo disparou - Não leu os meus livros, não saqueou o meu pensamento, não cortou, colou, recortou, usou e abusou dos meus textos. Não se portou como um parasita durante esses anos. Quer ajuda? Trate de pensar, então. Além do mais, quem é essa tal de Hilda Hilst de quem nunca ouvi falar?

Sorri maldoso e envenenado, um sorriso Matamoros, pleno de vingança, uma luz sombria sobre as minhas palavras pantanosas: - Ah, é mesmo! Que pena! Em vossa altíssima e reluzente biblioteca, onde convivem Homero, Dante, os provençais, Nietzsche, Heidegger, Hölderlin, Hegel, Foucault, ao lado de autores esquecidos e ignorados, há mais que um hiato, uma verdadeira ferida. Precisa escolher melhor suas leituras.

Do sarcasmo da última frase, eu me arrependi incontinente, mas era tarde demais. De qualquer maneira, Agamben acusou o golpe. Vi o seu rosto avermelhar-se e percebi a sua respiração alterada. Sem querer entrar em confronto com um desconhecido, passou a bisbilhotar os meus livros. Sentou-se onde há pouco estivera Lory Lamb, retirou um exemplar de A obscena senhora D da estante e, com um aparente ar entediado, mergulhou no silêncio da leitura.

Envergonhado, também caí em cerrado mutismo, porém um falatório incessante brotava na minha mente. Pedaços de versos, fragmentos de textos diversos, frases truncadas, palavras raras e desconhecidas, pouco a pouco, cederam lugar a uma demora em Estar sendo. Ter sido, o último texto de Hilda Hilst, publicado em 1997. Enquanto enchia a xícara com um café cuja quentura arrefecera, pensava em porque havia falhado na inversão da ordem, já que me vi obrigado a confrontar o último livro com “Fluxo”, o texto inicial do primeiro livro de prosa da autora, Fluxo-Floema, de 1970. Não, não foi propriamente uma falha, mas uma exigência de Estar sido. Precisava observar as linhas da complexa trajetória da autora, comprovar como a expansão poética de sua prosa ocorria. Acho que eu guardava inconscientemente uma perspectiva evolucionista. Logo quebrei a cara. Hilda já estava completa em Fluxo-Floema. Seu texto espiralante não progride em plano geométrico, contínuo, crescente, seu movimento circular aproxima-se antes à dança de uma galáxia que se volta sobre si mesma, apagando e reescrevendo seu rastro, alimentando-se de uma energia carnal e cósmica capaz de manter acesa a intensidade com a qual ultrapassa as fronteiras entre drama, narrativa, pensamento e poesia. A pulsação libertária não se constrói sem requintada elaboração de linguagem, ainda que aberta ao chulo e ao não canônico, acompanhada de fina e irônica indagação filológica e de um vocabulário tanto seleto quanto mordaz, usado em dicção lírica ou herética, com aceno ao filosófico e ao fescenino. 

Buscava o ponto nebuloso da conversão de ideias em escrita quando escutei um riso debochado. Olhei para a direita. Não, não era Agamben, que agora, todo curvado, lia o texto de Hilda com olhos arregalados. Atrás de mim, Hilda, de chapéu de palha e bata indiana, aos 50 anos, ainda muito bonita, ria desbragadamente.

- Sabia que posso ler pensamentos? 

- Mas o que há de hilariante nas minhas reflexões? Tento como um louco capturar as palavras no mundo pesado das ideias, lá onde elas se escondem e esquivam, fugindo para o caos onde flutuam.

- Ora, por que acho graça? Quer saber mesmo? Tudo que você tenta é imobilizar o fluxo que me funda, não vê? Você quer definições, garimpar propriedades, fixar temas e motivos. Doido para descobrir uma ideia preciosa, o filão do ouro acadêmico a ser explorado pelo resto da vida.

- Isso é tão ruim assim?

- Não sei, meu caro, não o julgo. Apenas comete mais um equívoco. Para me ler com mais propriedade há que se danar, doer, doar, sangrar as pálpebras, o pau, o ânus; gritar e insultar Jesus, Maria e José; ser homem, mulher, porca  e cadela; para me encontrar precisa se perder em minhas páginas, precisa se libertar para fracassar como o amado Bataille pregava, ou como disse Beckett: “Tente de novo. Fracasse de novo. Fracasse melhor.”

Quando quis me defender, já era tarde. Hilda se esvanecera, apenas um doce perfume almiscarado ficara no ar. Inquieto e temeroso, tentei voltar a Estar sendo, mas o livro já se fora. Tadeu, Matamoros e Axerold surgiram no horizonte, movendo-se em Tu não te moves de ti. A atmosfera da noite chuvosa ficava cada vez mais onírica e paradoxal. Marcado pelo trânsito de personagens entre três histórias diversas, por uma ilimitada busca pelo inalcançável e por uma intensa metaficcionalidade, o livro parece negar os limites da territorialidade ficcional ao permitir o cruzamento incessante das linhas demarcatórias dos textos. As dicções e os ritmos diversos da tríplice narrativa, no entanto, reúnem-se na mesma negatividade: a arte como potência do nada.

Resolvi ir à cozinha comer alguma coisa que diminuísse o gosto do café meio amargo. Na volta, mais um sobressalto, agora terrível: sobre o sofá alaranjado da sala jazia Matamoros, um punhal espanhol enterrado na vagina. O sangue ainda escorria. Sob os cabelos em desalinho, dois olhos gregos me espreitavam apesar de mortos. 

Saí apressado para voltar inutilmente com um lençol na mão. O sofá permanecia intacto. Matamoros viera do nada, a criação fora um breve sopro cuja dissolução, contudo,  ficará gravada para sempre.

Voltei ao meu quarto. Medo de abrir os olhos. Medo de abrir as páginas. Fantasmas e teorias se cruzavam no ar. Aparições, sombras, penumbras, lampejos e vazio entre as paredes, o que quer que seja aquilo que se entenda por parede: limite, muro, fronteira, guarnição punitiva a eventuais ousadias. Certamente eu estava contaminado, uma peste artaudiana me invadira ao querer espalhar o vírus da poesia na prosa. 

No rádio – quem o ligara? – um samba de Candeia demorava na filosofia, cantando os paradoxos da existência em ritmo dolente. Cruel e confuso, não deixei a canção chegar ao fim. Desabei sobre a cadeira, decidido a voltar ao desrumo de um pensamento já não em fragmentos, mas em frangalhos. 

Perdi a noção do tempo, mas me vi girando em torno de A obscena senhora D, como se eu fosse um alienígena tentando decifrar a órbita de um planeta desconhecido. Nele, enfim, alguém, com propriedade de protagonista, reduz-se de nome a letra, de corpo humano a porca, de busca em naufrágio. A violência, o furor iconoclasta e a transgressão formulam a resposta hilstiana ao desamparo, tanto uma aproximação quanto um distanciamento do divino. O hiato entre deus e o homem não é fixo, funda-se na mobilidade de um pensamento capaz de transformar graça em gozo. Se o abismo é móvel, todas as fronteiras são flutuantes, tudo é em trânsito, tudo pode ser t(r)ocado, mesmo a ausência.

Começara a me empolgar quando uma voz estranha me interrompeu: 

- Por que você insiste nessa escrita século XIX, toda arrumadinha, ordenada, lógica? Fragmente-se, rapaz. 

Ninguém insistira tanto quanto eu. Percebi minha insensatez ao olhar a porca rosada ao meu lado questionando os meus métodos. Após sorrir exultante com a tirada, passou a desfilar sua megalomania pelo pequeno aposento.

Ressentido, dirige-me a ela em termos secos e provocativos: - Fique à vontade, minha cara, aqui em casa não há escadas, não há vãos, não há qualquer refúgio.

Ignorou-me solenemente. Com rapidez e sedução mútua, a porca e Agamben começaram a travar uma conversa amistosa. Discutiram, riram, citaram, divergiram, deram gargalhadas no meio da noite, porém, a partir de certo momento, passaram a se xingar com ironia e discrição, depois com fúria. Irritados com um diálogo que não ouvi,  começaram a atirar palavras um sobre o outro; uma mais pesada, quebrou o vidro da janela, outra danificou a tela do computador, uma frase de Heidegger arrancou-me o óculos. Era um velho embate, questão anterior a Platão: poesia e filosofia se atracavam e se expunham no corpo todo prosa da ficção. Sim, causava perplexidade e estranheza, porém era o jeito de se unirem, misturarem sintaxe e vocabulário, permanência e precariedade; isso nunca aconteceria no campo das amenidades. O diálogo inscrevia a literatura como a última utopia, a busca da palavra inaugural, capaz de alcançar, na literatura que vem, a superação da fratura da palavra originária.

Percebi, então, que eu era uma presença excessiva no texto, deveria me retirar, sair de fininho. 

Saí do quarto, deixei a porta aberta. Abri a página da sala, a porta do livro, senti o vento gelado das folhas da rua. As luzes do trânsito de palavras piscavam no final da noite.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

HELENA DESTRÓIER

















  



   



José Antônio Cavalcanti


A Vênus do telemarketing
sai apressada da sala no sexto
andar
de leveza e vulgaridade
acesa.

Sem medo,
largo a longa fila de emprego,
perco de vista a entrevista
e me atrevo um Páris.

O coração sai em disparada.
A perco de vista
entre a sala 610 e a escada.
O ascensor me escapa
(bem que li no horóscopo
que esse dia não daria em nada).

Desafio os deuses e a idade,
recordista de velocidade
mas chego tarde à Ítaca.

Vejo a Vênus de crachá
girar a roleta do adeus.

A Vênus de tênis e fones
some no meio da multidão,
essa maldita invenção de Baudelaire.

Eu, Heitor hilário e exausto,
acabo arrastado por um carro
no centro do estacionamento
Aquiles Park.

Um transeunte afirmou convicto:
o morto parecia drogado.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

FUGA

Maurits Cornelis Escher
     

      José Antônio Cavalcanti


O hábito não faz o monge
nem sei se habito um tempo
perto de abismo
ou longe
do exorcismo de palavras
em atrito
no palco portátil do mundo.

A poesia,  o que nos escapa
-  a rima imperfeita do infinito.