POEMAS


Piintura de Beatriz Milhazes

                  

 Quebrada

José Antônio Cavalcanti

Hora da alcateia na praça.
Sigo
o hálito transbordante
da desordem.

Uma lua de cobre
em sua órbita pedestre
poderia.

Inscrito na linhagem
do círculo,
salto possibilidades e geometria.

Invado a zona secreta
da casa de intolerância,
turva escrita de decretos
para burla e tédio.

Encurralado no escuro,
derrubo o rumor de qualquer traçado.

Órbita pessoal possível:
à deriva, ao léu, ilegível,
apenas o imprevisto por caminho.
 





Obra de Adriana Varejão


Patria migrante



    José Antônio Cavalcanti



Nación de nómadas apátridas
fugitivos
exiliados
en vuelos clandestinos
balsas
túneles bajo lo destino.

Mapa de las minas
donde el oro sangra la América
- Eldorado Eldolores Eldólares -
la money-Canaán del siglo XXI.

Cholos, criollos, chicanos
en lo desierto o en aguas norteamericanas,
entre perros, coyotes y tiburones,
animales o humanos,
bajo las luces de una noche sin nombre
expuestos a patrullas de fronteras
o a la siniestra persecución de la Guardia Costera.

Riesgo de cárcel a los indeseables,
riesgo de muerte y su hermana,
la invisibilidad,
riesgo de crucifixón en un muro,
espejo de lo cinismo
que nos dibuja como bandas latinas.

Quedó atrás lo país de la infancia,
la morada ancestral
y las palabras de asombro y alegría.

Si civilizarmos la América,
si le enseñarmos la risa, la danza, el amor,
cómo ella tendrá fuerzas para invadir otras tierras
y inundar el mundo de codicia, bombas y rencores?

 


  
Auto Portrait, Antônio Bandeira























POR QUE TE AMO?

                             

      José Antônio Cavalcanti



Não há respostas.

Meu amor é um míssil.

Secreta ogiva segreda

inaudíveis palavras de amor.

Infelizmente

você não aciona o controle remoto.

Disparo meu último foguete.

Aciono o pavio,

porém você não detona.

Então, amor, afundo

e não volto à tona. 





O que vi pela tv canal 98, de Siron Franco






















REALITY SHOW POETRY


        José Antônio Cavalcanti




Vc

tb

naum

me


(escolha a opção certa):



(   )  kiss

(   )  quis

(   )  quiz





Rony Bellinho

























O cão da noite


   José Antônio Cavalcanti


 


Quando a noite cai
 
eu a aparo no peito

 
e tiro de letra

 
todos os pecados do mundo.








Di Cavalcanti




         




















As filhas da noite



             José Antônio Cavalcanti


 
Passeiam pelas calçadas

atrevidas

atravessadas pela vida.



Suas pernas são foices

que cortam o gozo

e se abrem vazias

como um cofre

à espera de moedas. 








Damien Hirst
























Luz de emergência


        José Antônio Cavalcanti



O sangue exsuda das sílabas
                           do teu nome
e escorre, 
resina inútil e rancorosa,
na manhã trêmula e volátil.


Pulsação intensa
insemina nas minhas veias o denso licor
                                                do deserto,
oásis de poços envenenados
os teus olhos
atravessam o meu coração em resíduos
com séculos de fúria represada.


Meu corpo todo flutua.
Inflada, a alma se despovoa.
A nódoa do medo me contamina.


Quem em mim ficou no meu lugar?


























Sala de espera


      José Antônio Cavalcanti



o impasse
                do próximo passo


pendentes
                paixão e poemas de Kaváfis
                                                              em prateleiras mortas


limo
       a linha opalina do destino
                                                 da anônima iluminada        
na praça de alimentação de um shopping    
                                                           onde canibais domingam


furo
       a rede de pretéritos que não vi passar
                                                                   apesar das rugas e agora grisalho
(toda biografia é caos e infâmia)


indecisão
               a lâmpada sem o fio
                                                do gesto


é dezembro
                 e também inferno


os carros
              flechas no asfalto
                                           pretas azuis cinzas vermelhas
escorpiões cavando cicatrizes nas curvas


a cabeça nas mãos
                              de deuses dementes
espero
             entre um sofá rasgado e um celular emudecido
                                          a senha secreta da felicidade


Paralelo, Gil Vicente






















Estratigrafismo


   José Antônio Cavalcanti



Os sítios onde acampávamos
agora  campos arqueológicos.


Lá ainda se abrem embalagens
dos biscoitos que comíamos,
os calçados ainda caminham
vazios de donos e destino,
as mochilas ainda guardam
os sonhos que nos moviam.
(Na areia de uma praia deserta,
o ritmo de um relógio perdido.)


Tudo acumulado em antigas fotografias.
Em camadas paleozoicas
vivem o vigor e a euforia da juventude.
De costas para o inevitável abismo,
praticam uma escrita impenetrável.


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Marc Chagall


























APRENDIZ


         

José Antônio Cavalcanti





Usei todos os erros
 

de que dispus;
 

posso dizer que fui feliz.





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Manabu Mabe





















INTRANSFERÍVEL




              José Antônio Cavalcanti


Repare e apure
o passado, essa rasura.
Mancha na camisa
aquela sombra azul
no osso,
furos na escama, na pele,
memória incompleta.

Se puder, separe
as páginas valiosas
em que a felicidade
era um falso espelho,
vértice inverso da vida.

Não demore, antes
que o cigarro acabe
examine as sílabas.
Evite mastigá-las.
Não morra de saliva
nem de sintaxe.

Pense apenas
os, as,
isso,
aquilo,
escave uma gramática
intransferível
às palavras.

Escreva cem vezes:
seja sombra, seja luz
o que sou não me traduz.


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Nathan Sawaya, trabalho com peças de lego
  





















UMÂNIMO, ANÔNIME, HUMÔNIMO


                   José Antônio Cavalcanti



Sem efeito
pedras e palavras
lançadas a esmo
no reino de mensagens incompletas
voltam-se contra mim,
sujando de sonhos meus sapatos de camurça
um dia azuis.

Tento despistar o espanto
com um riso partido em pedaços
enquanto ajeito os óculos
e aceito um café mal feito
que eu mesmo faço.

Desteço as tramas e intrigas do destino
na fábrica de urtigas do meu peito,
esse jardim de abismos e desconcerto.

Não tenho como efetuar o acerto
com o cerco de coléricos cobradores
infernos e exfernos:
fantasmas vermelhos,
mulheres sem braços e sem cabelos,
páginas de uma enciclopédia de erros,
versos piratas, pesados e imperfeitos
espalhados
em décadas e corpos.
empilhados, à noite, como pesadelos,
sacodem-se nas grades do meu pijama de quedas.

Velhas contas suspeitas
anseiam anistia e olvido,
mas é um tempo de escamas metálicas,
de êxito, triunfo, impiedade.

Para que poetas em tempos de hu(nani)manidade
                                                          (nano)
                                                          (nula)
- algum dia, a humanidade?


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IRREPARÁVEL


            José Antônio Cavalcanti



Tudo é assim
e o ser-assim de tudo
pulsa em mínimo estado
dentro e fora de mim.

Círculo entre o início e o fim
a carta do caos e do cosmos
é assim:
escrita da indiferença derrama
ausência de refúgio ou de rumo;
as coisas todas serão
as sílabas já silenciadas
e a nascente das palavras.

Partículas perdidas
entre o poder não ser
e o não poder não ser,
as coisas, os seres, o mundo
(teus beijos e teu perfume)
são exatamente assim:
primitivos e modernos,
provisoriamente eternos.



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FALSA BEATRIZ



SÓ, PENSO EM VOCÊ
SÓ PENSO EM VOCÊ
SÓ                   PENSO
      EM VOCÊ


VOCÊ – SOL, EU – SUN
SÓ PENSO
SUSPENSO EM VOCÊ
NÓS DOIS - UM


PRESO PESO EM VOCÊ
C
A
I
O
PLUF! CRAFT! SBRUM!


MINHAS MÍNIMAS E MÚLTIPLAS PARTÍCULAS
ESPALHAM EM TERRENO INTERDITO
“SÓ PENSO EM VOCÊ”
AO INFINITO
ENQUANTO ANOITEÇO
ENQUANTO    D . S . P .  R . Ç .



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POEMA PROSCRITO






José Antônio Cavalcanti





Vão palavras vãs


eu:


fico.





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Atire se puder, 2001, Nelson Leirner


José Antônio Cavalcanti



INCISÃO



poema punhal
apanha
a sobra o lixo
o punho
destrói o grito


poema punhal
opõe
o sopro da vida
livre
ao visto do livro
permitido


poema punhal
pena fatal
traço no papel
o sangue 
fuzila o revólver




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MAR INSANO



      José Antônio Cavalcanti



o mar
é armadilha 
que liquida sonhos
em suas líquidas trilhas

o mar
é martírio
que agoniza ilhas
em distâncias de milhas

o mar 
é mortalha
que malha no sal
ânsias de maravilhas

o mar
é metralha
que crava na pele
as espumas de suas balas

o mar
é armadura
que cospe na cara
as águas da loucura




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                                                  ONÇÁRIO

                                                                 
                                                                     Para Maíra, minha filha


                                                  ANTEONÇA


                                                 a paixão do pai
                                                 apascentou os sonhos
                                                 com lança-chamas
                                                 riscando a noite
                                                 qual giz

                                                 o dorso encurvado
                                                 da avó
                                                 teceu redes de rezas
                                                 espantando os maus espíritos

                                                 mãe
                                                 animal de luzes
                                                 fêmea feracíssima
                                                 renovou o barro
                                                 do corpo
                                                 cobrindo as pernas
                                                 com pétalas de carne viva.


                                                 RUMOR DE ONÇA

                                                 sussurro de suçuarana
                                                 balbucio
                                                 a fera ruge
                                                 a febre estala

                                                 a baba do sentido
                                                 o susto da fala

                                                –  linguagem.


                                                 A PRESENÇA DA ONÇA

                                                 • a pelagem esmaltada da onça
                                                   anteparo ao agreste
                                                   à comida sem tempero
                                                   do azedo ácido vazio

                                                 • uma onça carrega
                                                   em sua bagagem:
                                                   bonecas de pano
                                                   batom & miragens

                                                 • uma onça aço-carícia
                                                   furta-se aos caraíbas
                                                   desprovidos de fala
                                                   – o nexo ou laço
                                                   entre ideia e ato

                                                 • uma onça líquida
                                                    não evita as pedras
                                                    mas não elege o seco
                                                    como território de caça

                                                 • uma onça nunca boneca
                                                    enfeite de risos
                                                    mero adorno
                                                    (ah! onça,
                                                    este amor de cheias
                                                     não reclama retorno).



                                                 NOMEAÇÃO DA ONÇA

                                                 • necessário outro zodíaco
                                                   que te traduza inteira.
                                                   Portanto, doravante,
                                                   serás onça, água & emoção:
                                                   estas as tuas cidades,
                                                   este o teu brasão

                                                 • ficarás nomeada onça
                                                   para andares em selvas,
                                                   cerrados, países, mares,
                                                   e escapares impune.
                                                   E também pela beleza
                                                   das cores de tuas asas
                                                   à semelhança de onças nenhumas.

                                                 • água será teu elemento
                                                   – espaço de regeneração
                                                   onde o mal não germina
                                                   e as feridas se fecham
                                                   : o mar – amigo & guardião

                                                  • no salto, no mergulho ou no voo
                                                    o sentimento é impulso
                                                    por trás de qualquer mecanismo
                                                    o coração pul(s)ando no meio
                                                    de qualquer teoria
                                                    a emoção: caminho & guia.

                                                
                                                 MANHÃ DE ONÇA

                                                 • onda inesperada
                                                   a luz
                                                   luxo dos teus olhos
                                                   águias
                                                   pulsando nas pupilas
                                                   marés
                                                   cobrindo retinas de águas
                                                   espumas
                                                   beijando um corpo de rochas
                                                   o de onça
                                                   e a mobilidade pictórica
                                                   movimento
                                                   de aquarela e balé

                                                 • onça
                                                    lança do imprevisto
                                                    vertendo
                                                    fúria em serenidade
                                                    traçando
                                                    os trajes da manhã
                                                    pendurada nos pulsos
                                                    do poeta

                                                 • onça: este galho não se alcança.


                                                 MAÍRA

                                                 onça
                                                 força viva
                                                 onda
                                                 dança leve
                                                 o coração
                                                 o olfato
                                                 o paladar
                                                 o tato
                                                 a audição
                                                 a visão
                                                 in/tentem rumos
                                                 sob as sobras da razão
                                                 outra
                                                 onça
                                                 um nascer
                                                 do mais
                                                 aumento
                                                 dos plenos
                                                 pulmões
                                                 ar
                                                 fôlego
                                                 gole
                                                 legado
                                                 de águas
                                                 ventos
                                                 fogos
                                                 terras,
                                                 onça.


                                                 MIMORANDO

                DE: Jaguar                                                                PARA: Onça

                                       – luas de fogo impressas no couro   
                                          da onça noturna;      

                                       – galáxias do paraíso no riso
                                          da onça noturna;  

                                       – o mundo: um brinquedo nas presas
                                          da onça noturna;

                                       – tatuada de estrelas a nudez
                                          da onça noturna;

                                       – espelho de delícias nos olhos
                                          da onça noturna;

                                       – luzes sobre sombras: o reinado
                                          da onça noturna.  


                                       O APRENDIZADO DA ONÇA      

                                       •  a implumagem da onça
                                          (ser líquido e transparente)
                                          clave na pauta vital:
                                              o fino das garras
                                                     o reluzente dos pelos
                                                               o vigor da investida     

                                       • olhos fosforescentes
                                          em prontidão & promessa:
                                          caraíbas com carabinas
                                          não provam a papa fina;
                                          bandeirantes da morte
                                          não bandalham nessas trilhas
                                          (necessário um animal acuado
                                          meio homem – meio jaguar
                                          enjaulado fora do tempo
                                          para captar o corpo incapturável)

                                       • as pegadas da onça
                                          lâminas luminosas
                                          : astúcia & armadilha.


                                             ONÇA, UM MOMENTO

                                                    onça,
                                                    avesso de ranço
                                                    mateira
                                                    vermelho no verde
                                                    dos campos
                                                    brejeira
                                                    nos brejos do tempo


                                                     ONÇA/VITRAL

                                       • a loca onde se enfurna
                                          uma urna onde se guarda
                                          a casa onde se larga
                                          quando em descanso
                                          a onça
                                          remanso de lembranças
                                          pleno de utensílios
                                          um castelo em desalinho
                                          com guardas embriagados.

                                       • a onça quando pisa
                                         converte sala em selva
                                         na desordem feroz
                                         dos gritos
                                         o faiscar das garras
                                         o balbucio da fala
                                         o desabrochar do bote
                                         toma o mundo por presa
                                         brinquedo domínio ou dote

                                       • onça: a quentura do colo.


                                      ALMOÇO DE ONÇA: O MOÇO

                                      • antropofagia
                                         não é exato
                                         o dizer
                                         (de fato)
                                         feraminilidade
                                         o deus macho
                                         agora fêmea
                                         num sexo felino
                                         sem trégua
                                         a onça bebe
                                         a onça come
                                         uma fome primária
                                         comida de caça
                                         (de onça que se preze)
                                         será sempre outra caça
                                         (nunca se sabe ao certo
                                         a onça que alimenta
                                         ou a onça que devora)

                                      • jantar de onça é a noite
                                        e a sombra de suas lanternas.








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Fukuda
























POESIA INGÊNUA E DEMENCIAL

     

                             José Antônio Cavalcanti




   

Balas

perdidas – as balas ou as vidas?







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Rony Bellinho


























PULSÃO


          José Antônio Cavalcanti


"Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo
Porque os corpos se entendem, mas as almas não."

                                                Manuel Bandeira


Atrás de textos
(noite de mil páginas);
à frente de fantasmas fugidios
emergindo da tela
(nela, exílio de fantasia ,
o branco causa pânico).

Ob
        servo
um cometa
- luz carimbando pálpebras
murchas
(pétalas despojadas do perfume
do dia).

Vem,
em passos de susto,
um surto de sombras e desarmonia
ao cair do corpo
em chão de trangressão e plumas.

É no pós,
no além de,
no para lá do possível
que quero lançar a flecha
e escrever o interdito
com a face encharcada de luz e lama.

Atrás de textos
(noite de mil páginas)
acendo beijos como velas
capazes de redimir os corpos
e arruinar as almas.



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CARACOL




          José Antônio Cavalcanti




Uma lesma
ao léu e a esmo
carrega a carga
de gosma
com a qual escreve
em sua bagagem
de rosas e losnas
uma viagem de
charcos, mágoas e
cacos de beijos.




Caracaos
carrega a alma
em espessa couraça
o coração é um bongô
batucando tristeza
em densa blindagem.
O vento grava
na aura das palavras
mensagens de perdas
e dramas.




Caracol
caracaos
caracosmos
os olhos das górgonas
não congelam os gestos
nem selvagem Cérbero
rosna maldições à lesma
que em si mesma
guarda a casa
que carrega
como quem rega
as pedras de uma estrada.




Do lado de fora
um hipopótamo azul rumina
— entre ilusão e fascínio:
como combina o seu corpanzil
com a casa mínima,
como se equilibra a sua massa
com a leveza bailarina,
como sua cantiga se afina
com a criatura peregrina.

 
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M.C. Escher




















VIDE VERSO


          José Antônio Cavalcanti



De onde os fios de luz

filtros

filamentos

trazem música e imagens

e, em cor, em forma, em volume e em movimento,

desenham desejos densos?



De ressaca ou secos,

fechados ou abertos,

práticos ou sonhadores,

ternos ou temerosos,

esses filtros de sombras e sonhos

armam ardis e armadilhas

a quem ouse mirá-los.



Diálogo luminoso entre corpos

— palavras obscenam a paixão —:

ver e ser visto,

o tato,

o olfato.

Um outro olhar,

de olhos fechados,

dentro e por dentro

da alma e do gozo.



Pequenos cofres redondos

guardam o precário

nos papéis da eternidade.



Ver,

        sorver,

                absorver.




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Gustav Klimt

























RASURA


          José Antônio Cavalcanti


O beijo na mínima fenda
entre gesto e fetiche;
uma curva
– vírgula
em texto turvo –
na pele lupina.

A voz e o chamado
em hiato;
o corpo ausente
do corpo
de destino ou passagem.

Habitar a margem
do outro lado
do beijo.
Uma escrita de sinais
trocados;
as águas deste rio
tocam
lábios apartados.

Cicatriz,
esse peso e espaço
entre
peles ausentes.

Beijo travado
não salva nem alivia
a ausência de um lado.


 
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Acho que esse poema é da década de noventa, não me lembro do ano em que o fiz. Não consegui publicá-lo no antigo Poemargem. Felizmente ele pode ser exibido na internet, ainda que com a perda de sua exata referencialidade espacial (o que é uma pena). Espero que gostem.


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Rony Bellinho



























PROMESSA DE FELICIDADE



                      José Antônio Cavalcanti




Tudo depende

de outra metade.



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MULHER-ABISMO


        José Antônio Cavalcanti



Esgrima no olhar,

farpas nos dentes.



Mulher de máscaras

entre rendas reclusas

armazenando mágoas e maldições.



Um andar só balé

em trilhas de noites egípcias;

dual mover-se de ser

a que caminha em duas direções.



Ágil animal de luz e leveza,

reserva de astúcia e mordacidade,

avalia a presa com precisão cirurgiã.



Instáveis as paredes do império

: posso sentir a fragrância de fendas,

a gangrena, o bolor, a queda

dos frascos de veneno sobre a cama,

os lençóis de gestos desabitados.



Fábula sonora a voz,

um sopro de pássaro e paraíso

: música para se perder o juízo.



Corpo de escusas e escamas escapa

da cama

por atalhos, desertos, falésias.



Carne encoberta de letras secretas

à espera de quem a invente

e ouse saber o secreto sabor

: lírio-do-vale, lavanda, limão.



Aço-carícia de cânticos

imantizados

ao nada, ao além:

o depois do nunca,

o antes do não-sei,

arcanos de indizível desejo.



Viver é exercício de queda

e dissolução em seus dentros.


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FRESTA



José Antônio Cavalcanti



Uma vírgula suspensa

pensa

– entre o nada e o antes –

o adiante.


 


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PAZ PALESTINA




                José Antônio Cavalcanti





Que flores desabrocharão
após o bombardeio?

Depois das bombas,
que canções saltarão de caixas quebradas
sob as ruínas do sol de Gaza?

Que brincadeiras infantis
desenharão no chão a sombra de gerações extintas?

A poesia incinerada por gente insana.

Então é assim,
onde não há água a sede é de sangue?
Onde não há vinhedos e olivais
a fome é de cadáveres?

Meu coração palestino
habita uma pátria de nuvens e impossíveis.

Bombas por todos os lados,
de vários pesos, tipos, finalidades,
repaginam o céu como um inferno.

A poesia incinerada por gente insana.

Que em um acampamento qualquer
uma lâmpada tenha permanecido acesa,
um aceno,
um gesto,
um sorriso,
uma vontade de converter facas em afetos,
bombas em abraços,
inimigos em irmãos.




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Lasar Segall










LUA FENÍCIA


              José Antônio Cavalcanti

 
Morena,
salpicam napalm
em tuas mãos.

Gerações dizimadas,
pilhas
nas calçadas.

Pilhagem.
Impiedade.

Ventos nos olivais.
Ira nos rebanhos.

Crianças muçulmanas
sitiadas.

(Década de 80 - após um bombardeio sobre Beirute e a leitura de uma antologia de poesia palestina)



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Parangolé Tenda, 1964, Hélio Oiticica



















ERROACERTERRACERTORTO

              
                      José Antônio Cavalcanti


Errei a mão
A vida na contramão
Todas palavras perdidas
Invento inutilidades
Abjeto exercício de óbvio
E balão a gás.
Resultado:
Um corpo exposto a matilhas,
Amor em campo minado.


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Rony Bellinho

























FRATERNIDADE DOS SUICIDAS

                José Antônio Cavalcanti

Irmanados na rebeldia
Ambos sujos e bêbados
Traçaram um balé estranho
Abrindo com canções
A caixa da noite eterna. 



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Arcimboldo


























DEGUSTAÇÃO




           

                 José Antônio Cavalcanti



 

Há conversas sem anverso.
Nelas, uma voz ressoa facas
em prato vazio.

As palavras - pólvora impura -
tateiam púrpuras na pele
enrugada em chumbo noturno.

Invisíveis os sulcos
nos quais a paixão irrigou
a colheita nunca recolhida.

Como iluminar um semblante
em luz insonora?

Qual o sabor das horas
que passam em branco?

Qual a distância entre
agora e antes?

Pensar em respostas é não responder.

Que não haja pane e perfídia
entre palavra e vida.

Que todos os gestos
festejem as promessas.

Que a dor não imobilize os membros,
não mais do que nesse minuto de purga
entre pergunta e sobremesa
em que se degusta palavra amarescente.

Restará, como licor amargo, um gosto degradado
na partitura de um dia perdido.

Em outros momentos navegantes,
refeitas do sabor de nomes incompletos,
nossas sílabas serão entrelaçadas
na carne e no som.



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Rony Bellinho



























FAUNOSFERA 

 

              José Antônio Cavalcanti



1. Fauno em várzea noturna
      fortuna infausta
      o amor: funda afasia
                        corpos em urnas
      carnes, licores, bruma.


2. Faunos e ninfetas,
      galeria de infâmias
      nos lupercais lupanares da Lapa.


3. Sombras demoníacas nos muros,
      vítimas nas esquinas,
      tapetes afegãos na varanda.


4. Dinofaunos furtam a ninfetas
      fragrâncias clandestinas
      sob a lua míope e devassa.























5. Um fauno verte absinto pelos cornos
      como a lua absorve em secreta órbita,
      no cobre de crateras macedônias,
      o rubro licor de virgens tessálicas.


6. Noturna sereia,
      no cabaré da Lapa,
      não cabe
      a indecisa nudez.


7. Peças
      saltam ao chão
      e desenham um pecado de cada vez.


8. Neste recinto oracular
      em vermelho soalho mofado
      blusas batas burkas
                                          bêbadas
      profanadas.




























9. Manual de instalação de desatinos,
      regras de abuso, senhas de violação:
      vírus no código da carne feita maldição.


10. Ruínas urbanas as avenidas vênus
        plenas de ícones egípcios, bíblicos, suburbandos.
        Mover-se na parte rasurada dos mapas:
        uma odisséia de perversão e sant(C)idade.


11. Eromágicos movimentos:
        bacantes, ninfas e hetairas,
        um balé de pólen e vento.


12. Entrar e sair de becos, bocas, grutas.
        Invadir a cena, a festa, a fescenina
        cerimônia da câmara íntima feminina.


13. Pã aposentou navalha e avena;
        exilado dos cenários bucólicos das colinas cariocas
        (e fugitivo de penitenciária espartana)
        inferniza damas em (in)cômodos Tiradentes.





























14. Cosmonáufrago, demônio da garrafa,
        incendeia de cachaça e carícias os corpos
        caravelas de amantes anônimas e insensatas.


15. A plenos pulmões, fauno de camisa amarela,
        no soviete dionisíarcos da Lapa, recita
        a cento e cinqüenta milhões de ninfálicas
        a desgrama amorosa para o milênio do caos.


16. Paixão de fauno é selo no ventre;
        impregna os monossílabos do gozo
        com o fogo da fúria e da intensidade
        e crava o agora no sempre.




























17. O amor, lâmina incandescente,
        rasura, risco, rabisco traiçoeiro,
        jaula e algema nas quais a alma
        do fauno jaz sob danoso domínio.


18. Dos negros montes pubianos
        o fálico ser aceso vê
        a grande rota das caravanas.


19. O tempo inclemente colheu o calor.
        O fauno, no meio da malandragem,
        sem flauta e sem cavaquinho, decanta
        a fraude amorosa, a erofágica libação.




























20. Torcer, retorcer, distorcer,
        conjugar o corpo crepuscopular
        no grau grisalho da queda.


21. Ninfetas-manequins sem afeto
        em sépias lilases e magentas
        mãos hábeis na flor e no furto
        simulam caos, orgasmo e adeus.
 

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TRÍPTICO

          José Antônio Cavalcanti



Manabu Mabe










I

Feminua
na concha da lua cheia.

Noturna sereia,
no cabaré da Lapa
não cabe
a indecisa nudez.


Peças
saltam ao chão
e desenham um pecado de cada vez

Sombras de prímulas trêmulas
ao som de paredes perfuradas
por tristes tangos redondos
- sonoras crateras lunares
em que ávidos sorvemos
a vida com sabor de vinho e contrabando.

Nosso clã
                nosso destino
                                          nossa idade
Clandestina claridade,
árvore onde inventamos
o verde
a levitar e inverter
a verdade:
essa versão falsificada de felicidade.

Feminua
é quando o salto se inaugura.


 

Manabu Mabe









II

Ser a chuva sobre,
a água jogada aos pés
ou o vento invasor, talvez.

Mínimo movimento
em direção à perda de rumo.

Diria, em outra pauta,
rumo à diccção
ou à falência das palavras.

Ir ao encontro do
beijo mais aceso,
esse, semelhante a selo
com o qual se lacra
a intensidade que escapa.

A chuva,
sobre a sombrinha,
soberana.

Quem determina
a cadência com que se afirma
a proteção redonda
dentro da qual caminha
elegância bailarina?

Qual proteção?! Que nada!
A sombrinha é que socorre a chuva
do sol que a segura e nasce a cada passo.

A sombrinha,
inversão completa:
passarela suspensa e portátil:
alumínio, nylon e poesia.



Manabu Mabe










III

A cidade era uma rede de ruas
onde o progresso apagava a paisagem,
acumulava crimes e cicatrizes
e traçava em seco mapa suas margens.

Na verdade, já não existem cidades.
À falta de asas, de olhos e de encanto
avenidas são feridas urbanas,
enviam dor a todos os recantos.

Nenhum projeto urbano
rima com felicidade.
A cidade, então, é você,
toda,
inteira.

Praia, praça e ponte
onde circula a claridade
que carregamos como pássaro
às salas secretas
movidas por luzes invisíveis.

Uma cidade deitada
derruba todos os muros,
incomensurável
entre paredes.



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Hélio Oiticica




HABITAR


              José Antônio Cavalcanti






Onde o sol guarda o fogo
e gargalha, amarelo-amargo.

Onde o mundo rumina ameaças
e ruínas; funda mina de vilanias
finas; dissemina insânias.

Onde a casa indizível
(agora cofre e casamata)
desaba, cínica e porosa,
percurso, discurso e demência.

Onde a nudez da escrita
gesta aguda e grave escuta;
música urbana confusa,
ópera de acordes absurdos

Onde a palavra é muralha,
cartucho, faca ou navalha;
o ponto em que se encerra
conversa, festa, encontro.

Onde te vejo colada à parede

do outro lado da calçada,
pálida, a cabeça inclinada
como uma lua devastada.



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Fukuda


A VIDA


                    José Antônio Cavalcanti




Não passou de ameaça;


vôo de cinzas,


ave de fumaça.




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Basquiat










 
A TAÇA

                José Antônio Cavalcanti

Acaso haverá
ou destino
nessa taça com a qual brindamos
todas as formas de desatino?

O que nela se esvazia
somos nós vazando
matéria e energia?

Ou tudo é passagem secreta
a dimensões inéditas
onde nos dispersamos?

É grave ação da gravidade,
submersa gramática de pecados
ou música incandescente,
o som das sílabas
espalhadas em cacos pelo chão?



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Fukuda











IMPUREZAS




          José Antônio Cavalcanti




Pelo mimeógrafo passa o meu sangue
negra tinta a imprimir a pele
e a esculpir o corpo da linguagem.


Pelo mimeógrafo roda a minha memória.
No giro do tempo perdido e preciso
as folhas alvas passam a negras,
amontoadas como pecados numa bandeja.


(1976)


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Idéia Invisível, Waldemar Cordeiro

















POETA

        

    José Antônio Cavalcanti



Amanhã da linguagem,


guarda em sua bagagem


gás e miragem.




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Lygia Clark



























SOB VIGILÂNCIA

         José Antônio Cavalcanti


À espreita,
nuvem maliciosa
desaba
o corpo na lona
azul cobalto.

Incorpora-se, então,
a dor nos póros entorpecidos
por falsas películas de felicidade.

Surge uma leitura
só osso e nervo;
a descoberta do prazer
como excesso de cordas na orquestra.

Os olhos gritam
décadas de convívio deletadas
em fina ferocidade.

A cidade expande suas fronteiras
com as pedras de palavras em demolição.

Inseguros, sentimos sensores
rastreando a pronúncia de novos movimentos
como se uma presença antiga
convertesse afeto em penitência.



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TERRA PONTO

                José Antônio Cavalcanti


Não se reduz
a curva
- jogo de côncavos
de tuas conchas -
no horizonte;
qualquer que seja a paisagem
ou palimpsesto do tempo
nossa pele,
plissagem de abismos e margens.

Satélites espetam antenas
em tuas fendas de fêmea ancestral,
de tuas minas extraem estranhos postais,
formas de clonagem e vigilância,
próteses de mundos extintos.

Sempre foi do alto que os homens te olharam:
eles mesmos demônios de barro, silício e insensatez,
apesar da soberba e do mau tempo.

Posse, domínio e controle completo,
formas de extermínio e exaustão,
desatam incêndios incessantes,
desenham a dança de desertos florescentes.

No adubo bioperverso do necronegócio
cicatrizes costuradas a pavor pleno
proliferam como inscrições cuneiformes
de um DNA poético demencial, virótico.

É, então, lúcido e louco,
que saio com uma terrina cheia de líquidos e ternura
disposto a alimentar os animais noturnos
que pastam na última fronteira do mundo.
Ou o momento em que fertilizo,
com um chorinho com solo de clarinete,
as plantas aladas trazidas pelo sol.

Meu corpo roça o chão, se espoja, se cobre de lama
e folhagens.
Descubro a pele como simples maquiagem.
Meu rosto verdadeiro é um composto
de água, seiva, pólen, sangue, esperma, vento...

Posso decifrar o código:
carícia, luz e leveza compõem o segredo.

Felizmente, tenho minhocas na cabeça,
pássaros no dedo,
tigres nas veias.

Por isso meus oceanos e abismos conversam com os teus.




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INCRIADO

               José Antônio Cavalcanti

Antes houvesse fundado
uma tribo de bárbaros.
Assim saberia o sabor
de incontáveis calamidades,
ouviria ossos assobiando agonias
entre tendas destruídas
e cupins de inútil mobília.

Insensato,
habitou entre demônios e ratos.
Vasculhou fendas invisíveis
no vasto e vulnerável horizonte.
Não navegou margens mallarmaicas
nem em homéricos mares naufragou
suas palavras malsãs e lunares.
Uma vulgaridade absurda gotejava
de seus poemas,
contaminava,
no chão poças de Vallejo, Khlébnikov,
Drummond, Montale
e um  imóvel Brodsky,
a  água impura dos poemas.

De tanto inventar-se, um outro
tomou-o por  inteiro.
Nada sobrou 
em pele ou cofre noturnos,
a não  ser metáforas anacrônicas
em  um caos digitalizado.