quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Capitulação





















Era uma manhã vadia
de névoa sobre a cidade.
A noite atravessara minhas fronteiras
por isso eu via os seres e as coisas
flutuarem lisérgicos e quânticos.
Algo doloroso das horas escuras
resistia à retirada.
como se cego fosse ao encantamento
da pulsação acelerada da vida.
No movimentado interior do café
toalhas brancas e torpor
espiavam disposição alheia
e sonhos de dia esplendoroso
enfileirados como time de futebol
ao entrar em campo.

Noite, manhã e névoa,
entretanto,
foram desmontadas
tábua a tábua
quando alguém
atravessou a porta
e deixou meus olhos
de joelhos
fora da órbita
de qualquer razão.

Os dias felizes erraram o código postal

René Magritte, "Persian Letters", 1958























Perto é apartado,
apertado o peito
de passos em fuga.
Pouco importa
a distância
se o alvo
nunca na pira.

Perturbação
aberta
a cem metros
de nova
lição de abismo,
mais uma palavra
e seria possível
outra caligrafia.

O paraíso
vem
sempre
quando não me encontro
em mim.

Caixa de correios
agora
caixa de Pandora.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Movimento de rainha

René Magritte,"L'Évidence éternelle", 1930




















Águas passadas
não movem rainhas.

Amor e rusga

Rony Bellinho


Uvas, maçãs murchas,
cachos de canções absurdas.
Amor e rusga.

À espreita da presa



Na árvore, onça,
pele pintada de estrelas,
à espreita da presa.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Plenipoema




















re
voltar
re
voar
re
volver
o poema
re
moer
re
montar
re
moinhar
palavras

até o faro
fisgar
um farol no radar,
lance furado
fora de alcance,
ferida que se tenta
em vão fustigar
mas em fuga
se alastra feito câncer:
deixar o poema
sem palavras


domingo, 26 de outubro de 2014

A arte de saltar janelas (nova versão)

























Ah, a subida.
Súbito
não há mais saída
de grau
em grão
a vida
no vai-em-vão
des/regular
a voltagem
no último vagão
arrebentar-se
pela janela
antes do posto de controle
carimbar o passaporte
sangue e ervilhas
salvam-se da viagem
à nova arquitetura psíquica
do humano em crateras
e cebolas,
muitas cebolas cortadas
com lâmina inox
de cabo cor de abóbora;
retalhos de lençol sobre o corpo.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

DNAniversário


















Sessenta e duas naves naufragadas
de fragmentada frota delirante:
prova definitiva
de que só navega de verdade
quem se arrisca visceralmente.

Cego da ausência dos olhos amados,
qualquer ilha no horizonte
(sob o cerco de Circe)
é abismo incandescente.

Nenhum futuro a bordo,
nenhuma felicidade à frente.
À beira de todos os perigos.

Navego a mil furos por hora,
todas as velas velozes
ao sopro violento dos ventos.
Sem pânico,
sem arrependimento,
na vazante do fundo dos seus olhos
a mil milhas de mim distantes.

Não amaldiçoo as fissuras de palavras
voláteis abrindo o casco
à correnteza de tempos sombrios,
líquida serpente a beijar de morte
todos os navios.
Peito e palavras sempre abertos
ao instável horizonte.
Levantar âncora
e ultrapassá-lo:
amálgama de travessia e afundamento.

Só se aventura de verdade
quem navega verticalmente.

Sessenta e duas naus carregadas
de ouro e inundações contínuas
inauguram o deserto das águas.



segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Ousadia

Antoni Tàpies




















Segunda-feira,
poeta de segunda
persegue poema de primeira.


domingo, 19 de outubro de 2014

É domingo e chove

Maria Cheung

















Sentado no meio da escadaria
vejo pernas apressadas,
rede de varizes impressas,
solidões exaustas
em cestos vazios de cheiros alheios,
mãos sem enlace
do primeiro ao último degrau,
dominicais famílias em trânsito
tangidas como fantasmas migrantes.

Mesmo a velocidade
das mais portentosas
parece carregá-las a um ponto obscuro
além da ladeira torta
do morro em disputa.

Quanto peso carregarão as minhas pernas?
Como aguentam as montanhas dos meus arcanos
e suas avalanchas sangrentas
de álcool, gelo, lava e lama?
Esse silêncio estufando a pele
ao limite da explosão?
A desorientação de quem sabe aonde não ir,
mas não sabe para onde ir?

Minhas pernas presas
eternas
presas
dos meus naufrágios.


sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Vazante


















Sou um rio
cada vez menor,
já não caibo
entre a nascente
e a foz.


Feminicídio


Ilusionismo


















Ilusionismo


Delito e deleite
dormem no mesmo leito.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Sete microluas no céu dos professores

"House of Seven Moons", Charles Veilleux
























I
Cinzas no cinzeiro,
um travesseiro intocado,
outro amassado.

II
Quando os lobos uivam,
luz acesa no covil.
Céu atrás da porta.

III
Disse “nunca mais”.
Jogou no sofá vinte anos.
Língua sem algemas.

IV
Vento vai e volta.
Aves afinam o canto.
Amor, ninguém toca.

V
Veio a primavera
depois que algo se perdeu.
Falta inebriante.

VI
Ponto de espera,
a árvore balança as folhas.
Sombra sobre sombras.

VII
Aurora e olvido,
a conjunção impossível.
As noites germinam.

Sem palavras

"Cambio", William Kentridge, 1999






















Não há mais cartas.
Os bilhetes, fora de moda.
Telefone e e-mail, deselegantes.
O amor agora acaba sem palavras.



domingo, 12 de outubro de 2014

Manutenção de sistema


















A turba trama
A turma treme
A paranoia turva
O medo curva
Trava a turma
O trauma e a urna
A treta e a tramoia
As tribos e as trevas
A trampa e o furto
O tumor e a tunga
Turbas às turras

O sol não nasce em urnas 

sábado, 11 de outubro de 2014

Onde nascem as tempestades

























A tempestade
se aproxima
da costa.

As ondas
já sondam
areias
expostas
ao sol.

Rochas
fechadas
em erosão
íntima
acusam
golpes
a cada minuto
mais intensos.

Algo no horizonte
não se encaixa
na rosa dos ventos.