quinta-feira, 28 de abril de 2011

O INCRIADO

Eu não sou este corpo, 2003, Deise Marin




















     





  José Antônio Cavalcanti 



 

Antes houvesse fundado
uma tribo de bárbaros.
Assim saberia o sabor
de incontáveis calamidades,
ouviria ossos assobiando agonias
entre tendas destruídas
e cupins de inútil mobília.

Insensato,
habitou entre demônios e ratos.
Vasculhou fendas invisíveis
no vasto e vulnerável horizonte.
Não navegou margens mallarmaicas
nem em homéricos mares naufragou
suas palavras malsãs e lunares.
Uma vulgaridade absurda gotejava
de sílabas em pânico,
contaminava
- no chão poças de Vallejo, Khlébnikov,
Drummond, Montale
e um imóvel Brodsky -
a água impura dos poemas.

De tanto inventar-se, um outro
tomou-o por inteiro.
Nada sobrou
em pele ou cofre noturnos,
a não ser metáforas anacrônicas
em um caos digitalizado.


sábado, 23 de abril de 2011

DERInerVAÇÃO

                                  

                                 

                                       DERInerVAÇÃO
                           (quando falham os cognatos


                                             José Antônio Cavalcanti


                                  de baixo, baixaria
                                  de boato, boataria
                                  de cura, curadoria
                                  de confrade, confraria
                                  de glutão, glutonaria
                                  de grito, gritaria
                                  de infante, infantaria
                                  de lata, lataria
                                  de letra, letraria
                                  de michê, mixaria
                                  de monte, montaria
                                  de ouro, ourivesaria
                                  de par, parceria
                                  de patife, patifaria
                                  de pedra, pedraria
                                  de peito, peitaria
                                  de pirata, pirataria
                                  de ponto, pontaria
                                  de porco, porcaria
                                  de porrada, porradaria
                                  de porta, portaria
                                  de prata, prataria
                                  de puta, putaria
                                  de Roma, romaria
                                  de saco, sacaria
                                  de velhaco, velhacaria
                                  de vaca, vacaria
                                  de Zé Mané,  Zé Maria

                                  de você, avaria

quinta-feira, 21 de abril de 2011

TIJUCARNE





Reené Magritte


        



















        José Antônio Cavalcanti



                 Para Rony Bellinho


            
Havia uma vila,


Miss Brasil,


Rainha do Rádio.



 


Na esquina,

janelas entre o cinza


onde umas sardas sorriam


todas as tardes.


 


À noite,

três padre-nossos


e salve-me rainha.


(1983)



SEM CENA

Arthur Bispo Do Rosario























AOS CACOS

NO CAOS

POR ACASO

UM CASO

          SÓ

                    : OCASO

                      ACESO 


domingo, 10 de abril de 2011

GOOGLICERINA

Deserto líbio

            

   José Antônio Cavalcanti 



Todo excesso 

também é um deserto.




sábado, 9 de abril de 2011

NAU SEM RUMO



















      José Antônio Cavalcanti




Não preciso de cartas de navegação:
basta-me o sonho de travessias impossíveis.




Caminhar sobre a superfície do oceano,
pisando em pássaros submarinos,
tropeçando em ruínas de outras civilizações,
beijando cadáveres de náufragos,
até a definitiva conversão em água, sal e vento.



Sei que não tenho destino.
É o destino que me possui.
As correntezas traçam a rota
e as tempestades preparam o naufrágio.



O mar não precisa de caminhos,
tece na solidão as formas da morte,
enquanto o vento entoa cantos fúnebres
sobre os campos azuis do país marítimo.



O mar não precisa de navios,
precisa apenas de corpos. 

(1976)

terça-feira, 5 de abril de 2011

ANJOS

Melancolia I, Dürer
             

          






















       José Antônio Cavalcanti



                   “O último anjo derramou seu cálice no ar.” – Murilo Mendes


Não o da melancolia de Dürer,
olhos exilados de signos,
exausto de garimpar as sílabas
de um nome nunca revelado.

Não os prosaicos e suspensos
anjos de Chagall
descascando pecados
sob o chão da cozinha.

Muito menos o de Benjamin,
de costas para o futuro
num voo pesado e obscuro.

Sequer aquele caído nas sombras
de Drummond
em torta escrita de tropeços.

Nem a criatura terrível de Rilke
de asas lavadas em ira e arrogância,
escriba e vigia de nossa sangria.

Um anjo também me assombra
só para sangrar-me.
Anjo apóstata e herege,
corrói com suas asas de inseto
caminhos e projetos.
Examina com tédio e desânimo
os índices de pânico e de esperança
depois de devastar as reservas.
Intrigante e pérfido,
sussurra-me conselhos obscenos,
pragas,
impropérios.

Mostra-me o seio esquerdo
e me olha envenenado,
mensageiro sem mensagens,
desertor de Deus e do homem.

Em sua última passagem, mãos entrelaçadas
e seu corpo macio colado ao meu,
a dupla inscrição de pecados
nas placas e paredes da cidade.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

ECLIPSE

          
 
             

            














        



          José Antônio Cavalcanti


Corpos e palavras
às escuras.

Nudez oculta
acaricia membrana
mesa
ou muro
na câmara vazia.

A lingerie no assoalho
projeta no teto alaranjado
retalhos do amor submerso.

Sobre a cama
finas camadas de mágoa
escavam a camisola
de beijos incandescentes
na zona central da noite.

Tua presença,
teu corpo carnívoro,
luz e leveza esvaziadas,
astros atirados ao inalcançável
da matéria escura do universo.


AR, MARGENS, DONS - TRÍPTICO PÓS-APOCALÍPTICO















Poema: José Antônio Cavalcanti
Ilustrações: Rony Bellinho


α


Mãos desirmanadas entre infelizes
olhares, entre substâncias e acidentes
aristotélicos, bebuns em bandos;
dizer de vozes a se cortar com navalhas e sílabas,
dizer de pedintes penitentes,
dizer de olhos injetados de paraísos.

Poetas e párias desrimam escrita e assepsia
voam contra vanguardas e ventos
nos sambas suntuosos de velhos malandros,
agora fantasmas varrendo silêncio.

Nem de Antíloco nem de Madame Satã
nem de heraclitiano ou homérico dizer
o devir entre mesas e cadeiras,
no chão, a caminho do ralo.

Sombras assentadas em infames
panos poentos
(por baixo dos quais
insones defuntos anacreônticos
libam nostálgico sabor de boêmia)
desfilam indiferença olímpica;
hedonismo e catatonia,
o código de barras da classe média
em sua forma líquida.




























β

 

Surgem os seres-do-fim-dos-tempos;
saem de tocas, antros, esconderijos,
de covas, talvez, ou de cisternas
clandestinas, jardins demoníacos,
fáb
      ricas de misérias.

A noite é víscera exposta,
intestinos nas calçadas,
insólito animal sangrento
a exibir, alucinado e repetitivo,
seus mais sujos dentros,
a mecânica macabra da vida
- gangrena guardada em rugas.



























Ω


As ruas então em festa:
códigos, circuitos, câmaras de vigilância,
verbiequívocovisuais controles anêmicos
acadêmicos políticos policiais
- o mundo oficial -
alimentam as hienas noturnas;
o capital contabiliza todos os excessos,
a mais-valia compra corpos e felicidade
plastificada, no cartão ou no paraíso.


A escória
- resíduo do humano liquefeito -
escorre de guetos, górgonas e esgotos,
invisível licor a invadir becos e portas secretas
contido apenas por gps e algemas.


Negra beleza bailarina nas calçadas,
grafita de vermelho muros e asfalto
antes da travessia irrevogável.


Invisíveis da mais espessa invisibilidade,
figuras goyescas lançam rajadas e granadas
contra as estrelas.