quinta-feira, 31 de maio de 2012

Questão de química





Questão de química

Instruções:

Não use lápis nem caneta, apenas a imaginação. Aceitam-se todas as rasuras.

Em 1921, E. Rutherford e J. Chadwick relataram que, ao bombardear átomos de nitrogênio com partículas alfa (núcleos de Hélio), ocorria a liberação de prótons. Posteriormente, eles afirmaram:

             Não há informação sobre o destino final da partícula alfa. É possível que ela
             se  ligue, de  alguma maneira, ao  núcleo  residual. Certamente  ela   não  é      
             reemetida pois, se assim fosse, poderíamos detectá-la.
           

Anos mais tarde, P. Blackett demonstrou que, na experiência relatada por Rutherford e Chadwick, havia apenas a formação de um próton e de outro núcleo X. também lembrou que, na colisão da partícula alfa com o átomo de nitrogênio, deveria haver conservação de massa e de carga nuclear.

Agora, seu filho da puta, com base nas informações acima, escreva a equação nuclear representativa da transformação que ocorre ao se bombardear átomos do isótopo 14 do nitrogênio com partículas alfa ou com poemas oxidados de nitronuvens de massa desconhecida.

Irresolução

A questão parte de um pressuposto anticientífico, o de que há a possibilidade de construção de resposta, quando, na verdade, já não há sequer perguntas. Mas jogando com as regras implícitas na formulação do enunciado, observamos um fenômeno estranho.

a) A perspectiva de intervenção violenta dos cientistas na natureza (golpe, pancada, bombardeio de átomos, violência do destino sobre corpo e alma, exatamente como nós dois fazemos, arremessando-nos o tempo todo acusações e culpas) relaciona conhecimento e fratura, constituindo-se a razão instrumental em uma enciclopédia de ruínas, a exemplo dos gestos que inscrevemos, eu e você, em nossos corpos infectados de rugas e solidão. 

b) A liberação dos prótons aponta para o processo de indeterminação da liberdade. O próton transforma a solidez do lugar demarcado em instabilidade de rumo, inaugura a invisibilidade como um caminho onde nós dois entramos no inapreensível. O caráter instável da matéria forma a sinonímia de fuga e movimento. Sim, veja o vestido grená e o capuccino no último setembro.

c) Nada sei sobre a sua massa nuclear. A órbita do seu perfume a anos-luz de distância me transforma em sombra residual do seu traçado. Radares e instrumentos de aferição corporal não detectam nenhuma pulsação no horizonte. Concluo, portanto, que o núcleo residual comprova a experiência da vida real como vestígio, resíduo de uma plenitude irrealizável.

d) O experimento investiga colisão, tangência, proximidade, afastamento. A ciência transita entre o mundo real e o universo fantasma (você, estrela irrecuperável de uma galáxia autofágica).

e) Se a partícula alfa me ligasse, haveria a reconstituição do núcleo (digamos, por amor à precisão, que com uma nova tonalidade, entre ocre e laranja, resultado de um excesso de neutrinos).

f) Qualquer experimento que apresente resultados positivos deve ser anulado. Justamente por sermos inviáveis, eu e você, deveríamos transformar a lei da gravidade relativa e construirmos um campo magnético em que nos bombardeássemos e nos amássemos até o final dos tempos. Anulados na matéria escura do universo, sairíamos livres e incapturáveis em alguma cidade dos mundos paralelos, tragados pelo aberto da existência.

g) Quanto à equação, nada posso revelar: é secreta.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

(In)FESTA(r)


Fotomontagem do fotógrafo belga Ben Goossens




















Rrose Sélavy acendeu
um cachimboom no ocaso.
Falsário feroz com a voz em falsete
desmoronou:
“"Rose is a rose is a rose is a rose”.

A Pomba Gira olhou pra Ogum:
“Que gente mais besta!”
Incontinente teclou para Wittgenstein
“Oi, seu puto,
minha linguagem entrou
em curto circuito.
Preciso de luz antes das dez,
sessão de descarrego”.

Wittinho ficou louco
(instalado em instalação secreta
de Pai Hélio Oiticica).
mandou esta letra atrevida:
“Não trato mais de terroria.
A arte sofre de artesclerose.
A filosofia morreu de sputnik.”

Gertrud Stein, na banheira com Angélica Freitas.

Duchamp se mijava de alegria.

terça-feira, 22 de maio de 2012

A grande marcha das baleias



















        José Antônio Cavalcanti


Em becos e vielas
presas
na maré tóxica
nadavam
sereias do necrossistema
pesadas
de taras e pecados.

As testemunhas insistem
em versões inconsistentes:
a) adernavam assombros e abandono;
b) abismavam autômatos urbanos:
c) negavam os negócios de Netuno;
d) nadavam o devir impossível;
e) eram falsas baleias de plástico e poliéster.

Dr. Ícaro Olímpico anotou em seu prontuário:

“Hoje, 22 de maio do ano tal, animais marinhos não identificados circularam pelas zonas cinzentas da cidade à procura de prazeres desconhecidos. Não se sabe o destino. Nas ruas ficou uma gosma esverdeada presa ao asfalto e um cheiro de dólar em decomposição no ar. Eram nove espécimes, uma, diminuta, mal podia acompanhar o resto do grupo. Bufavam alto e traziam estranhas inscrições na pele. Na mais ousada delas, nítida, iluminada e em letras amarelas, lia-se entre estrias: “o caminho nunca está onde caminhamos”. 

domingo, 20 de maio de 2012

Sala de espera



























o impasse
                do próximo passo


pendentes
                paixão e poemas de Kaváfis
                                                              em prateleiras mortas


limo
       a linha opalina do destino
                                                 da anônima iluminada        
na praça de alimentação de um shopping    
                                                           onde canibais domingam


furo
       a rede de pretéritos que não vi passar
                                                                   apesar das rugas e agora grisalho
(toda biografia é caos e infâmia)


indecisão
               a lâmpada sem o fio
                                                do gesto


é dezembro
                 e também inferno


os carros
              flechas no asfalto
                                           pretas azuis cinzas vermelhas
escorpiões cavando cicatrizes nas curvas


a cabeça nas mãos
                              de deuses dementes
espero
             entre um sofá rasgado e um celular emudecido
                                          a senha secreta da felicidade

sábado, 19 de maio de 2012

Tremor


Trabalho do fotógrafo belga Ben Goossens

















       José Antônio Cavalcanti


Rasgo
no risco do horizonte
a linha
de nomes pautados
no fervor
de verbos pretéritos
impossíveis.

Rasas sinapses
falhas,
ramerrame louco
do rancor,
rugido solto
na área de fuga
entre o hall e a ruína.

Um sábado racha janelas
e fecha passagens.

Atrás da porta,
repousa um aviso:
“Frágil,
sem juízo,
de cabeça para baixo,
completa instabilidade,
favor não remover o lacre”.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Festa no covil, de Juan Pablo Villalobos




A sagração da falsa inocência


     José Antônio Cavalcanti

 

 A literatura mexicana é um território que praticamente desconheço. Li a prosa enxuta de Juan Rulfo (da qual  gosto muito) e Carlos Fuentes (de quem só gostei da novela Aura), além de poemas de  Juan José Tablada e alguns livros de  Octávio Paz  (Transblanco e os textos críticos,  estes quase obrigatórios em nossos cursos universitários nas décadas finais do século passado).  Muito recente é o contato com a obra de Guillermo Arriaga, Mario Bellatin, David Toscana, entre outros. À nova geração de ficcionista mexicanos de primeira linha vem somar-se Juan Pablo Villalobos com a novela de estreia Festa no covil, lançada em 2010 pela editora espanhola Anagrama e publicada em fevereiro deste ano pela Companhia das Letras com tradução de Andreia Moroni revista pelo autor.

Nascido em 1973, em Guadalajara, o autor vive atualmente com a esposa brasileira (a tradutora do livro) e os dois filhos em Campinas, onde prepara com calma os outros dois volumes da trilogia do qual Festa no covil, sobre a infância, é o início. O segundo, Si viviéramos en un lugar normal, em torno da adolescência, sairá nos próximos meses. O terceiro, tomando por eixo a velhice, ainda está em projeto.
As três partes da novela apresentam uma realidade violenta descrita pelos olhos de Tochtli (coelho, na língua asteca), um menino mexicano filho de um poderoso traficante, Yolcault (serpente-cascavel). Devido ao tipo de vida paterna, o garoto vive recluso, cercado de mimos e cuidados, isolado a tal ponto que não frequenta escolas nem possui amigos da mesma idade, por isso costuma contar o reduzido número de pessoas que conhece, cerca de quinze. Preenche a solidão com experiências estranhas, como colecionar chapéus, assistir a filmes de samurais, apreciar palavras exóticas e ler dicionários. Um de seus caprichos é incluir no minizoológico do palácio-fortaleza onde mora um hipopótamo anão da Libéria.
Adam Thirlwell, no posfácio, após considerar que a narcoliteratura “trata de chefões do tráfico, armas e mulheres. De uma cultura política corrupta e asquerosa” (cujo melhor exemplo entre nos é o romance de Paulo Lins, “Cidade de Deus”), valoriza Festa no Covil por considerá-lo um desvio da categoria pulp da narcoliteratura. Embora seja uma narrativa sobre a vida de um filho de poderoso chefão do tráfico, cercado de bandidos e encerrado numa fortaleza, o autor fez uma clara opção pelo caráter experimental ao colocar um menino como narrador. Ao empregar tal recurso, a narrativa ganhou uma liberdade que permitiu  investir na linguagem e no rigor literário, afastando o texto dos vícios e cacoetes da linguagem documental, jornalística, verista.
Logo no primeiro parágrafo da narrativa aparecem cinco palavras que estabelecem um modo de visão particular: sórdido, nefasto, pulcro, patético, fulminante, usadas ao longo do texto como comentários recorrentes a situações observadas pelo protagonista, uma espécie de modalizadores narrativos.
A relação com o pai é hiperintensificada pela ausência da figura materna. Yolcault o admira, chama-o de gênio, faz tudo para agradá-lo, mas o insere nos paradigmas da violência: a cultura machista, na qual não se deve chorar nem demonstrar sentimentos, e o fascínio em relação aos atos criminosos, vistos com manifesta naturalização.
O olhar da infância limpa as cenas de obviedade judicativa ou moralizante. Sagacidade, ironia e ingenuidade moldam-se numa construção em que a inocência se realiza como perda, sensação reforçada pela ambiguidade do pai, pois não temos certeza se constrói uma redoma para suprir o filho das experiências que uma vida marginal lhe suprime ou se assegura um processo deformador capaz de transformar o pequeno príncipe em seu substituto no mundo do crime. De qualquer forma, sabemos que o chefão não suporta ser chamado de pai.
Tochtli sente orgulho de ter um pai que chefia “o  melhor bando de machos num raio de pelo menos oito quilômetros”. Com o pai aprende a não ter medo, a não ser um maricas.
A tentativa de suprir a falta de educação formal do pequeno fica a cargo de Mazatzin, um professor, cuja vida é considerada “patética” por Tochtli, que representa a incapacidade de autonomia e iniciativa de um tipo de esquerda, declamatória, culta, livresca e, ao mesmo tempo, servil, amarrada a quem pode bancá-la: estado, empresário ou bandido. Na realidade, Youcault também participa da educação, agindo em contraponto às concepções civilizadas de Mazatzin, sobre quem afirma: “os cultos sabem muitas coisas dos livros, mas não sabem nada da vida”. Prova da pedagogia paterna é a confissão de Tochtli: “Uma das coisas que aprendi com o Yolcaut é que às vezes as pessoas não viram cadáveres com uma bala. Às vezes precisam de três balas ou até de catorze. Tudo depende de onde você atira”. Outro exemplo da preocupação em transmitir narcovalores ocorre quando o pai o leva a presenciar uma sessão de tortura, poupando o filho apenas de assistir a execução do desafeto.
O México é quase invisível ao olhar do menino permanentemente recluso no palácio. No entanto, ele pode perceber a anomalia solta no ar. Sabe, assim, que o México, a exemplo da Libéria, é um país nefasto. Por trás do comentário ingênuo sobre a dificuldade na obtenção de um hipopótamo feito pelo protagonista, uma outra camada irônica e crítica desnuda o narrador no interior da personagem, a falsa ingenuidade desloca significados. Embora o texto não faça referências à realidade histórico-social, ecoa na narrativa um vento desesperançado que traz à memória a conhecida frase “Pobre México. Tão longe de Deus, tão próximo dos Estados Unidos”, atribuída a Porfírio Diaz.
Não é um livro sobre o narcotráfico, não faz um recorte policial, jornalístico, de denúncias contundentes, capazes de serem suplantadas por outras daqui a três semanas. Há denúncia da condição humana porque a violência é trabalhada como linguagem, transformada em literatura, há canais e caminhos que envolvem as situações apresentadas, exigindo uma leitura mais aprofundada. O eixo não é, como alguém pode ser induzido a crer, a infância estranha de um filho de traficante, o centro romanesco é a brutalidade de um tempo bizarro e brutal. Observe-se, por exemplo, ainda na primeira parte, a visita de um narcogovernador de estado, El Gober, que vai à casa de Yolcaut tratar dos negócios da cocaína. A cena intestina, um jantar entre amigos, termina mal. O chefão não admite comentários negativos sobre a presença do filho em uma reunião de negócios sujos. É a intimidade da vida marginal, o afeto apodrecido que lateja como ferida na reação paterna. A real negociação envolve hipopótamos anões da Libéria, a trapaça reformula o olhar infantil: “às vezes o México é um país nefasto, mas às vezes também é um país magnífico”.
As poucas páginas do texto revelam muito mais do que aparentam. A inocente crueldade de Tchotli expõe a violência como semente instalada na construção da subjetividade do núcleo familiar de traficantes. Por essa razão a ironia dói, incomoda, arranca o leitor da zona de conforto: “Eu acho que os franceses são pessoas boas porque inventaram a guilhotina” é uma observação que condensa um afiado pensamento sobre a morte. Na segunda parte, a lâmina da morte surge novamente em uma comparação entre morrer na guilhotina ou a facões, para reaparecer na última parte com a valorização grotesca e sangrenta do sabre, considerado superior à guilhotina: “A vantagem dos sabres comparados com as guilhotinas é que com os sabres você também pode cortar braços, pernas, narizes, orelhas, mãos ou o que quiser. Além disso, você pode cortar pessoas ao meio. Já as guilhotinas só podem cortar cabeças”. A lógica e o pragmatismo da exposição traduzem a perversão da infância.
Outros cortes abrem diversas linhas de leitura. A suposta virtude do pai – não vender drogas a mexicanos – reelabora de modo grotesco a questão do nacionalismo. Os tigres do zoológico não são apenas exóticos, mas destruidores de evidências, consumidores de corpos inimigos. A diretora do zoológico, suicidada, revela apenas um método de extermínio contemporâneo.
O grotesco é uma das linhas de construção da narrativa. Tchotli, entusiasta dos franceses que cortavam ritualisticamente as cabeças dos reis, não entende a degola de uma pessoa comum, “Mostraram uma foto da cabeça na tevê e o penteado dela era mesmo horroroso” resume tudo o que pensa sobre a decapitação de um chefe de polícia. Sórdido ou patético?
O narrador aponta o fosso entre a literatura e o tempo, numa incursão metalinguística: “E nos livros não aparecem as coisas do presente, só as do passado e as do futuro. Esse é um grande defeito dos livros. Alguém devia inventar um livro que dissesse o que está acontecendo neste momento, enquanto você lê”. Os olhos do menino não percebem a escrita como o resultado de todo um processo às vezes longo e complexo, mas os olhos do narrador sabem do hiato, da ferida temporal entre o texto e o momento.
Na segunda parte, o narrador desenvolve um processo de nomeação de personagens de modo cômico: surgem as personagens liberianas John Kennedy Johnson e Martin Luther King Taylor; os nomes escolhidos para o casal de hipopótamos anões são Luís XVI e Maria Antonieta. Os animais não sobrevivem, mas na última parte Tochtli recebe jubiloso as cabeças empalhadas dos hipopótamos anões.
Há muitos aspectos interessantes no livro: a traição de Mazatzin e o seu triste destino, a descoberta da mentira de Yolcaut, a morte do periquito. Minha intenção, contudo,  não é recontar a história, mas expor a descoberta de um texto de alta qualidade, forte, doloroso, instigante e muito bem trabalhado.
Há uma passagem de Nietzsche em “Além do bem e do mal” que me parece apropriada para uma aproximação ao narrador de Festa no Covil: “Por fim se considere que mesmo o homem de conhecimento, ao obrigar seu espírito a conhecer, contra o pendor do espírito e também, com frequência, os desejos de seu coração – isto é, a dizer Não, onde ele gostaria de aprovar, amar, adorar -, atua como um artista e transfigurador da crueldade; tomar as coisas de modo radical e profundo já é uma violação, um querer-magoar a vontade fundamental do espírito, que incessantemente busca a aparência e a superfície – em todo querer-conhecer já existe uma gosta de crueldade”. A infância nele é o que não se constitui, o que foge, ler o mundo, ingressar nele se dá como exercício de crueldade, um ato que descola de Tochtli o narrador que ele é da criança que poderia ser, transformando-o assim em narrador-personagem esquizofrênico.


Livro: Festa no Covil
Autor: VILLALOBOS, Juan Pablo
Tradutor: MORONI, Andreia
Posfácio: Adam Thirwell
Editora: Companhia das Letras
Número de páginas: 96
Ano: 2012

Arrebentação



















            

            "O tempo é um vestígio de eternidade" - Santo Agostinho


O mar é minha pele
salgada e leve.
Azul e alada,
a água pulsa
em onda aguda,
espiralada,
breve.

Em meus olhos insondáveis
algas  negras anunciam
novas ondas sem água;
vulpinas e velozes
me alagam e me largam
na pele arenosa do fundo.

Sonho surfar o invisível.
Pulo ousadia no oceano,
sinto o impulso suicida
de lançar meu nome contra a tsunami,
a desmedida violência vazia
do tempo
e sua matilha de minutos e milênios.


O mar foi meu berço,
também será meu túmulo.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Dissipação

Adriana Varejão


   



















   José Antônio Cavalcanti


O que me foge é o que me falta:
o desfazer-se dos disfarces
da face falsa,
a ferocidade de pêndulos
e espelhos,
a fuga de bússolas
e mapas imaginários.

Esvaimento e vento,
meu pensamento.
Opacidade e anacronia,
minha poesia.

terça-feira, 15 de maio de 2012

FAUNOSFERA




Rony Bellinho
























 
           
1. Fauno em várzea noturna
    fortuna infausta
    o amor: funda afasia
                      corpos em urnas
    carnes, licores, bruma.


2. Faunos e ninfetas,
    galeria de infâmias
    nos lupercais lupanares da Lapa.


3. Sombras demoníacas nos muros,
    vítimas nas esquinas,
    tapetes afegãos na varanda.


4. Dinofaunos furtam a ninfetas
    fragrâncias clandestinas
    sob a lua míope e devassa.























5. Um fauno verte absinto pelos cornos
    como a lua absorve em secreta órbita,
    no cobre de crateras macedônias,
    o rubro licor de virgens tessálicas.


6. Noturna sereia,
    no cabaré da Lapa,
    não cabe
    a indecisa nudez.


7. Peças
    saltam ao chão
    e desenham um pecado de cada vez.


8. Neste recinto oracular
    em vermelho soalho mofado
    blusas batas burkas
                                        bêbadas
    profanadas.




























9. Manual de instalação de desatinos,
    regras de abuso, senhas de violação:
    vírus no código da carne feita maldição.


10. Ruínas urbanas as avenidas vênus
      plenas de ícones egípcios, bíblicos, suburbandos.
      Mover-se na parte rasurada dos mapas:
      uma odisséia de perversão e sant(C)idade.


11. Eromágicos movimentos:
      bacantes, ninfas e hetairas,
      um balé de pólen e vento.


12. Entrar e sair de becos, bocas, grutas.
      Invadir a cena, a festa, a fescenina
      cerimônia da câmara íntima feminina.


13. Pã aposentou navalha e avena;
      exilado dos cenários bucólicos das colinas cariocas
      (e fugitivo de penitenciária espartana)
      inferniza damas em (in)cômodos Tiradentes.





























14. Cosmonáufrago, demônio da garrafa,
      incendeia de cachaça e carícias os corpos
      caravelas de amantes anônimas e insensatas.


15. A plenos pulmões, fauno de camisa amarela,
      no soviete dionisíarcos da Lapa, recita
      a cento e cinqüenta milhões de ninfálicas
      a desgrama amorosa para o milênio do caos.


16. Paixão de fauno é selo no ventre;
      impregna os monossílabos do gozo
      com o fogo da fúria e da intensidade
      e crava o agora no sempre.




























17. O amor, lâmina incandescente,
      rasura, risco, rabisco traiçoeiro,
      jaula e algema nas quais a alma
      do fauno jaz sob danoso domínio.


18. Dos negros montes pubianos
      o fálico ser aceso vê
      a grande rota das caravanas.


19. O tempo inclemente colheu o calor.
      O fauno, no meio da malandragem,
      sem flauta e sem cavaquinho, decanta
      a fraude amorosa, a erofágica libação.




























20. Torcer, retorcer, distorcer,
      conjugar o corpo crepuscopular
      no grau grisalho da queda.


21. Ninfetas-manequins sem afeto
      em sépias lilases e magentas
      mãos hábeis na flor e no furto
      simulam caos, orgasmo e adeus.
 

domingo, 13 de maio de 2012

Páginas da zona de sombras

Fotomontagem do fotógrafo belga Ben Goossens
IX
Alcoolirismo linguístico

Vinha eu caminhando pelas ruas de Pilares quando quase tropeço num gato. Não sei o que eu iria pensar sobre o fato (ainda mais que abdiquei o pensamento, humilhado por Hegel e sua corja). Acontece que me surgiu em um poste um texto do qual sobraram apenas as palavras “já não”. Fiquei em pânico: acaso ou aviso? destino ou rasura urbana? Percebi, então, que havia atravessado uma fronteira sem marcas, estabelecida apenas pela temporalidade. Um gosto azedo na boca me trouxe à memória a locução ”ainda não”, velha fórmula de resistência depois que percebi a vizinhança da grande dama sem rosto. “Ainda” é um advérbio de defesa, o último refúgio da batalha que se sabe perdida: “não” é advérbio de nocaute. De mãos dadas, estas duas palavras ensaiam uma tímida esperança como se unidas adiassem ou evitassem o irremediável. Mas no poste, ao lado do resultado do jogo do bicho, “já não” me lançou um olhar terrível, circunstância de impossibilidade, o sentido mais pleno do desespero, algo que nenhuma gramática consegue expressar. Dizem os doutos, aqueles que acreditam na existência de advérbio, que é “palavra invariável que funciona como um modificador de um verbo, um adjetivo, um outro advérbio, exprimindo circunstância de n tipos”. Essa fórmula enrijecida dissolveu-se provavelmente nas seis cervejas que, sozinho, enviei para o meu hipotálamo. “Modificador”! Causou-me risos a neutralidade científica, tanto pode ser uma referência à hecatombe quanto a ação de um surfista, ao movimento de uma pulga no poema de John Donne ou no pescoço da Gesusha, alegria dos homens. Pensei na circunstância de lugar, fiquei mais tonto do que já estava. Percebi que não sei o que é lugar, que não tenho lugar, que não vou a lugar algum e que em nenhum lugar posso pespegar qualquer circunstância. Ainda fiz uma engenharia demencial: lugar fechado, aberto, cheio, vazio, dentro, fora, destruído, paradisíaco, lugar a que nunca se foi, lugar da infância... Ou seja, aqui, ali, lá, cá, acolá, toda a quadrilha dos dêiticos são trapos, remendos da linguagem. Lugares só existem em sua totalidade, senão viram ruínas ou fantasmas. Não obstante, voltei ao “já não”, cuspi-lhe na cara, acusei-o de uma sonoridade ridícula (sempre achei um absurdo o nome “Japão” associado a um país que não merece esse som bárbaro e pesado). Voltei trôpego, atravessei a fronteira do impossível e fui tomar mais meia dúzia de cervejas dominicais.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Fresta

René Magritte




FRESTA





Uma vírgula suspensa

pensa

– entre o nada e o antes –

o adiante.




domingo, 6 de maio de 2012

Trançado Blanchot

Ives Tanguy -  Indefinido



TrAnÇaDo BlAnChOt


Linhas normais: Maurice Blanchot, “A literatura e o direito à morte”. In: A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 310-311.
Linhas em itálico: interferências parentéticas de José Antônio Cavalcanti


A palavra me dá o que ela significa, mas primeiro o suprime. Para que eu possa dizer:
(O aniquilamento é um processo incompleto de desnomeação, inconclusivo gesto de)
essa mulher, é preciso que de uma maneira ou de outra eu lhe retire sua realidade de
(supressão na minha pele e na minha memória da mulher que sublinhou as palavras)
carne e osso, que a torne ausente e a aniquile. A palavra me dá o ser, mas ele me
(com caneta vermelha e beijos, antes de abrir as mãos para lançar os búzios como quem)
chegará privado de ser. Ela é a ausência desse ser, seu nada, o que resta dele quando
(lança maldições durante a tempestade. Seus passos sobre tacos apodrecidos galopam)
perdeu o ser, isto é, o único fato que ele não é. Desse ponto de vista, falar é um direito
(na margem suspeita do sem-corpo, carne de papel e sangue, carne de sílaba e sonho)
estranho. Hegel, nesse ponto o amigo e próximo de Hölderlin, num texto anterior a A
(ou infâmia. Seus passos são golpes que me fazem desacontecer, desfazem-me o ser,)
fenomenologia escreveu: “O primeiro ato, com o qual Adão se tornou senhor dos
(desestabilizam o movimento dos olhos. Agora a ausência ainda guarda o perfume da)
animais, foi lhes impor um nome, isto é, aniquilá-los na existência (como existentes).”
(instabilidade, o gesto instaurador de um mundo antiadâmico. Nele, esvaziado e opaco,)
Hegel quer dizer que, a partir desse instante, o gato cessa de ser um gato unicamente
(retiro os nomes das coisas e dos seres, suprimo conexões e rumos, inverto sentidos,)
real para se tornar também uma ideia. O sentido da palavra exige, portanto, como
(invento cidades fantasmas e ruínas afetivas, inscrições que marcam a rota da retirada)
preâmbulo qualquer palavra, uma espécie de imensa hecatombe, um prévio dilúvio,
(na qual vou despindo a mulher que foge de lógica e destino, vou devassando os seus)
mergulhando num mar completo toda a criação. Deus havia criado os seres, mas o
(mamilos, reduzindo o rosto a silêncio, desmanchando memória em ideia morta, lixo)
homem teve de aniquilá-los. Foi então que ganharam sentido para ele, e ele os criou, por
(existencial, sobre o qual, como ratos, meus dedos vasculham partes de horizontes e)
sua vez, a partir dessa morte em que tinha desaparecido; só que, em vez de seres e,
(finalidades, provas do tempo anterior ao nosso mútuo desabamento. Não encontro os)
como dizemos, existentes, só houve o ser, e o homem foi condenado a só poder se
(gestos amorosos, a alegria, as palavras com sua crosta de automatismo e vileza, apenas)
aproximar e viver das coisas pelo sentido que lhes dava. Ele se viu prisioneiro no dia, e
(linhas em que o mundo inteiro desaparece entre as pernas da mulher que partiu furiosa)
soube que esse dia não podia findar, pois o próprio fim era luz, já que era do fim dos
(e disposta a mergulhar em mares sem luz, linhas de aniquilamento em que todas as)
seres que vinha sua significação, que é ser.
(palavras desaparecem em ondas invisíveis.)