Vinha eu caminhando pelas ruas de Pilares quando quase tropeço num
gato. Não sei o que eu iria pensar sobre o fato (ainda mais que abdiquei
o pensamento, humilhado por Hegel e sua corja). Acontece que me surgiu
em um poste um texto do qual sobraram apenas as palavras “já não”.
Fiquei em pânico: acaso ou aviso? destino ou rasura urbana? Percebi,
então, que havia atravessado uma fronteira sem marcas, estabelecida
apenas pela temporalidade. Um gosto azedo na boca me trouxe à memória a
locução ”ainda não”, velha fórmula de resistência depois que percebi a
vizinhança da grande dama sem rosto. “Ainda” é um advérbio de defesa, o
último refúgio da batalha que se sabe perdida: “não” é advérbio de
nocaute. De mãos dadas, estas duas palavras ensaiam uma tímida esperança
como se unidas adiassem ou evitassem o irremediável. Mas no poste, ao
lado do resultado do jogo do bicho, “já não” me lançou um olhar
terrível, circunstância de impossibilidade, o sentido mais pleno do
desespero, algo que nenhuma gramática consegue expressar. Dizem os
doutos, aqueles que acreditam na existência de advérbio, que é “palavra
invariável que funciona como um modificador de um verbo, um adjetivo, um
outro advérbio, exprimindo circunstância de n tipos”. Essa fórmula
enrijecida dissolveu-se provavelmente nas seis cervejas que, sozinho,
enviei para o meu hipotálamo. “Modificador”! Causou-me risos a
neutralidade científica, tanto pode ser uma referência à hecatombe
quanto a ação de um surfista, ao movimento de uma pulga no poema de John
Donne ou no pescoço da Gesusha, alegria dos homens. Pensei na
circunstância de lugar, fiquei mais tonto do que já estava. Percebi que
não sei o que é lugar, que não tenho lugar, que não vou a lugar algum e
que em nenhum lugar posso pespegar qualquer circunstância. Ainda fiz uma
engenharia demencial: lugar fechado, aberto, cheio, vazio, dentro,
fora, destruído, paradisíaco, lugar a que nunca se foi, lugar da
infância... Ou seja, aqui, ali, lá, cá, acolá, toda a quadrilha dos
dêiticos são trapos, remendos da linguagem. Lugares só existem em sua
totalidade, senão viram ruínas ou fantasmas. Não obstante, voltei ao “já
não”, cuspi-lhe na cara, acusei-o de uma sonoridade ridícula (sempre
achei um absurdo o nome “Japão” associado a um país que não merece esse
som bárbaro e pesado). Voltei trôpego, atravessei a fronteira do
impossível e fui tomar mais meia dúzia de cervejas dominicais.
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