quinta-feira, 17 de maio de 2012

Festa no covil, de Juan Pablo Villalobos




A sagração da falsa inocência


     José Antônio Cavalcanti

 

 A literatura mexicana é um território que praticamente desconheço. Li a prosa enxuta de Juan Rulfo (da qual  gosto muito) e Carlos Fuentes (de quem só gostei da novela Aura), além de poemas de  Juan José Tablada e alguns livros de  Octávio Paz  (Transblanco e os textos críticos,  estes quase obrigatórios em nossos cursos universitários nas décadas finais do século passado).  Muito recente é o contato com a obra de Guillermo Arriaga, Mario Bellatin, David Toscana, entre outros. À nova geração de ficcionista mexicanos de primeira linha vem somar-se Juan Pablo Villalobos com a novela de estreia Festa no covil, lançada em 2010 pela editora espanhola Anagrama e publicada em fevereiro deste ano pela Companhia das Letras com tradução de Andreia Moroni revista pelo autor.

Nascido em 1973, em Guadalajara, o autor vive atualmente com a esposa brasileira (a tradutora do livro) e os dois filhos em Campinas, onde prepara com calma os outros dois volumes da trilogia do qual Festa no covil, sobre a infância, é o início. O segundo, Si viviéramos en un lugar normal, em torno da adolescência, sairá nos próximos meses. O terceiro, tomando por eixo a velhice, ainda está em projeto.
As três partes da novela apresentam uma realidade violenta descrita pelos olhos de Tochtli (coelho, na língua asteca), um menino mexicano filho de um poderoso traficante, Yolcault (serpente-cascavel). Devido ao tipo de vida paterna, o garoto vive recluso, cercado de mimos e cuidados, isolado a tal ponto que não frequenta escolas nem possui amigos da mesma idade, por isso costuma contar o reduzido número de pessoas que conhece, cerca de quinze. Preenche a solidão com experiências estranhas, como colecionar chapéus, assistir a filmes de samurais, apreciar palavras exóticas e ler dicionários. Um de seus caprichos é incluir no minizoológico do palácio-fortaleza onde mora um hipopótamo anão da Libéria.
Adam Thirlwell, no posfácio, após considerar que a narcoliteratura “trata de chefões do tráfico, armas e mulheres. De uma cultura política corrupta e asquerosa” (cujo melhor exemplo entre nos é o romance de Paulo Lins, “Cidade de Deus”), valoriza Festa no Covil por considerá-lo um desvio da categoria pulp da narcoliteratura. Embora seja uma narrativa sobre a vida de um filho de poderoso chefão do tráfico, cercado de bandidos e encerrado numa fortaleza, o autor fez uma clara opção pelo caráter experimental ao colocar um menino como narrador. Ao empregar tal recurso, a narrativa ganhou uma liberdade que permitiu  investir na linguagem e no rigor literário, afastando o texto dos vícios e cacoetes da linguagem documental, jornalística, verista.
Logo no primeiro parágrafo da narrativa aparecem cinco palavras que estabelecem um modo de visão particular: sórdido, nefasto, pulcro, patético, fulminante, usadas ao longo do texto como comentários recorrentes a situações observadas pelo protagonista, uma espécie de modalizadores narrativos.
A relação com o pai é hiperintensificada pela ausência da figura materna. Yolcault o admira, chama-o de gênio, faz tudo para agradá-lo, mas o insere nos paradigmas da violência: a cultura machista, na qual não se deve chorar nem demonstrar sentimentos, e o fascínio em relação aos atos criminosos, vistos com manifesta naturalização.
O olhar da infância limpa as cenas de obviedade judicativa ou moralizante. Sagacidade, ironia e ingenuidade moldam-se numa construção em que a inocência se realiza como perda, sensação reforçada pela ambiguidade do pai, pois não temos certeza se constrói uma redoma para suprir o filho das experiências que uma vida marginal lhe suprime ou se assegura um processo deformador capaz de transformar o pequeno príncipe em seu substituto no mundo do crime. De qualquer forma, sabemos que o chefão não suporta ser chamado de pai.
Tochtli sente orgulho de ter um pai que chefia “o  melhor bando de machos num raio de pelo menos oito quilômetros”. Com o pai aprende a não ter medo, a não ser um maricas.
A tentativa de suprir a falta de educação formal do pequeno fica a cargo de Mazatzin, um professor, cuja vida é considerada “patética” por Tochtli, que representa a incapacidade de autonomia e iniciativa de um tipo de esquerda, declamatória, culta, livresca e, ao mesmo tempo, servil, amarrada a quem pode bancá-la: estado, empresário ou bandido. Na realidade, Youcault também participa da educação, agindo em contraponto às concepções civilizadas de Mazatzin, sobre quem afirma: “os cultos sabem muitas coisas dos livros, mas não sabem nada da vida”. Prova da pedagogia paterna é a confissão de Tochtli: “Uma das coisas que aprendi com o Yolcaut é que às vezes as pessoas não viram cadáveres com uma bala. Às vezes precisam de três balas ou até de catorze. Tudo depende de onde você atira”. Outro exemplo da preocupação em transmitir narcovalores ocorre quando o pai o leva a presenciar uma sessão de tortura, poupando o filho apenas de assistir a execução do desafeto.
O México é quase invisível ao olhar do menino permanentemente recluso no palácio. No entanto, ele pode perceber a anomalia solta no ar. Sabe, assim, que o México, a exemplo da Libéria, é um país nefasto. Por trás do comentário ingênuo sobre a dificuldade na obtenção de um hipopótamo feito pelo protagonista, uma outra camada irônica e crítica desnuda o narrador no interior da personagem, a falsa ingenuidade desloca significados. Embora o texto não faça referências à realidade histórico-social, ecoa na narrativa um vento desesperançado que traz à memória a conhecida frase “Pobre México. Tão longe de Deus, tão próximo dos Estados Unidos”, atribuída a Porfírio Diaz.
Não é um livro sobre o narcotráfico, não faz um recorte policial, jornalístico, de denúncias contundentes, capazes de serem suplantadas por outras daqui a três semanas. Há denúncia da condição humana porque a violência é trabalhada como linguagem, transformada em literatura, há canais e caminhos que envolvem as situações apresentadas, exigindo uma leitura mais aprofundada. O eixo não é, como alguém pode ser induzido a crer, a infância estranha de um filho de traficante, o centro romanesco é a brutalidade de um tempo bizarro e brutal. Observe-se, por exemplo, ainda na primeira parte, a visita de um narcogovernador de estado, El Gober, que vai à casa de Yolcaut tratar dos negócios da cocaína. A cena intestina, um jantar entre amigos, termina mal. O chefão não admite comentários negativos sobre a presença do filho em uma reunião de negócios sujos. É a intimidade da vida marginal, o afeto apodrecido que lateja como ferida na reação paterna. A real negociação envolve hipopótamos anões da Libéria, a trapaça reformula o olhar infantil: “às vezes o México é um país nefasto, mas às vezes também é um país magnífico”.
As poucas páginas do texto revelam muito mais do que aparentam. A inocente crueldade de Tchotli expõe a violência como semente instalada na construção da subjetividade do núcleo familiar de traficantes. Por essa razão a ironia dói, incomoda, arranca o leitor da zona de conforto: “Eu acho que os franceses são pessoas boas porque inventaram a guilhotina” é uma observação que condensa um afiado pensamento sobre a morte. Na segunda parte, a lâmina da morte surge novamente em uma comparação entre morrer na guilhotina ou a facões, para reaparecer na última parte com a valorização grotesca e sangrenta do sabre, considerado superior à guilhotina: “A vantagem dos sabres comparados com as guilhotinas é que com os sabres você também pode cortar braços, pernas, narizes, orelhas, mãos ou o que quiser. Além disso, você pode cortar pessoas ao meio. Já as guilhotinas só podem cortar cabeças”. A lógica e o pragmatismo da exposição traduzem a perversão da infância.
Outros cortes abrem diversas linhas de leitura. A suposta virtude do pai – não vender drogas a mexicanos – reelabora de modo grotesco a questão do nacionalismo. Os tigres do zoológico não são apenas exóticos, mas destruidores de evidências, consumidores de corpos inimigos. A diretora do zoológico, suicidada, revela apenas um método de extermínio contemporâneo.
O grotesco é uma das linhas de construção da narrativa. Tchotli, entusiasta dos franceses que cortavam ritualisticamente as cabeças dos reis, não entende a degola de uma pessoa comum, “Mostraram uma foto da cabeça na tevê e o penteado dela era mesmo horroroso” resume tudo o que pensa sobre a decapitação de um chefe de polícia. Sórdido ou patético?
O narrador aponta o fosso entre a literatura e o tempo, numa incursão metalinguística: “E nos livros não aparecem as coisas do presente, só as do passado e as do futuro. Esse é um grande defeito dos livros. Alguém devia inventar um livro que dissesse o que está acontecendo neste momento, enquanto você lê”. Os olhos do menino não percebem a escrita como o resultado de todo um processo às vezes longo e complexo, mas os olhos do narrador sabem do hiato, da ferida temporal entre o texto e o momento.
Na segunda parte, o narrador desenvolve um processo de nomeação de personagens de modo cômico: surgem as personagens liberianas John Kennedy Johnson e Martin Luther King Taylor; os nomes escolhidos para o casal de hipopótamos anões são Luís XVI e Maria Antonieta. Os animais não sobrevivem, mas na última parte Tochtli recebe jubiloso as cabeças empalhadas dos hipopótamos anões.
Há muitos aspectos interessantes no livro: a traição de Mazatzin e o seu triste destino, a descoberta da mentira de Yolcaut, a morte do periquito. Minha intenção, contudo,  não é recontar a história, mas expor a descoberta de um texto de alta qualidade, forte, doloroso, instigante e muito bem trabalhado.
Há uma passagem de Nietzsche em “Além do bem e do mal” que me parece apropriada para uma aproximação ao narrador de Festa no Covil: “Por fim se considere que mesmo o homem de conhecimento, ao obrigar seu espírito a conhecer, contra o pendor do espírito e também, com frequência, os desejos de seu coração – isto é, a dizer Não, onde ele gostaria de aprovar, amar, adorar -, atua como um artista e transfigurador da crueldade; tomar as coisas de modo radical e profundo já é uma violação, um querer-magoar a vontade fundamental do espírito, que incessantemente busca a aparência e a superfície – em todo querer-conhecer já existe uma gosta de crueldade”. A infância nele é o que não se constitui, o que foge, ler o mundo, ingressar nele se dá como exercício de crueldade, um ato que descola de Tochtli o narrador que ele é da criança que poderia ser, transformando-o assim em narrador-personagem esquizofrênico.


Livro: Festa no Covil
Autor: VILLALOBOS, Juan Pablo
Tradutor: MORONI, Andreia
Posfácio: Adam Thirwell
Editora: Companhia das Letras
Número de páginas: 96
Ano: 2012

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