segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Poesia e filosofia, de Antonio Cicero






Afinidades conflitivas de duas velhas senhoras

I

     Houve, quando ambas ainda existiam plenamente no vigor de um tempo ainda não transformado em moeda, uma rusga entre poesia e filosofia. A tradição lançou sobre Platão a responsabilidade por acirrar a desavença entre filósofos e poetas. Todos devem se lembrar de que em A República, no Livro X, o discípulo de Sócrates lançou um anátema sobre os poetas, expulsando-os da pólis ideal, com exceção dos autores de “hinos aos deuses e encômios aos varões honestos e nada mais”.
     A benevolência com o laudatório comprova que o receio de Platão não se voltava contra toda forma poética, mas especialmente contra aquela poesia por ele considerada “mimética”, forma destruidora da inteligência, responsável por fazer com que o prazer e a dor assumissem o controle da cidade em detrimento da lei e do princípio tido como o melhor para comunidade.
     O filósofo ateniense afirmou que a poesia mimética “imita homens entregues a ações forçadas ou voluntárias, e que, em consequência de as terem praticado, pensam ser felizes ou infelizes, afligindo-se ou regozijando-se em todas essas circunstâncias”. O poeta, assim, instauraria na alma dos cidadãos um mau governo, inflamando paixões, despertando a parte irracional, alimentando fantasias e gerando descontrole e turbulência. Era o mundo sensível atropelando o mundo inteligível, a ilusão impedindo a nôesis, sem a qual o Bem é inalcançável e a humanidade permanecerá retida ad infinitum na zona de sombras onde se atolou.
     Com isso não se esgota a visão platônica, de extraordinária complexidade. Basta observar que no diálogo Fedro, uma análise do Belo, o autor, ao formular a lei de Adastreia, reguladora do retorno ao mundo das almas que não conseguiram fugir à doxa, devolve aquelas mais próximas da libertação a “um homem destinado a ser amigo da sabedoria e da beleza ou cultor das Musas e do amor”, ambos no mesmo plano, portanto, acima de reis, guerreiros, políticos, comerciantes etc. Tanto o filósofo quanto o poeta possuem, então, almas com maior capacidade de captar o reflexo das ideias que contemplaram em existências anteriores.
     Importa também observar que o anátema sobre a poesia foi lançado por um autor que recorreu ao longo de seus textos à tradição poética grega da qual se revela profundo conhecedor. Além disso, a construção da dialética platônica aproxima-se em muitos momentos da linguagem poética. Isso jogo mais lenha na fogueira e nos faz evitar visões ligeiras e pre/conceituosas sobre as ideias platônicas.
     Maior deve ser o cuidado quando se sabe também que Platão não concedia grande importância à escrita, apesar dos numerosos diálogos e cartas que chegaram até nós. Isso pode ser observado na passagem de Fedro em que Sócrates critica a invenção da escrita, obra de um demônio egípcio, Teute, que a teria apresentado  ao rei Tamuz como um remédio para o esquecimento e a ignorância: “Confiante na escrita, será por meios externos, com a ajuda de caracteres estranhos, não no seu próprio íntimo e graças a eles mesmos, que passarão a despertar suas reminiscências. Não descobriste o remédio para a memória, mas apenas para a lembrança. O que ofereces aos que estudam é simples aparência do saber, não a própria realidade”.
     A poesia,  a arte em geral na formulação platônica, capta a ausência, o nada e constrói-se sob o vazio; dele faz sua morada e dele, somente dele, do não lugar da arte, pode pro-duzir, no sentido atribuído ao termo por Platão em O banquete e recuperado por Heidegger: “Todo deixar-viger o que passa e procede do não vigente para a vigência é ποίησις, é pro-dução”.   
     A criação é o hiato entre o nada e o criado, entre o não existir e o vir-ao-mundo. Aquilo que é gerado já não está no momento da própria geração, apesar de carregá-lo para sempre sob a forma do esquecimento. Na fenda criadora vige a inapreensibilidade da existência, fluxo contínuo e simultâneo de vida e morte.
     Agamben opera uma suspensão do tensionamento matricial da obra em Heidegger, instância entre ser e não ser que aparece pronta, acabada, fixada na finitude que a informa como um mundo fechado. A posição sustentada por uma longa tradição filosófica, aos olhos do filósofo italiano, reduz a obra apenas à sua superfície visível, perdendo o que escapa à apreensão imediata, ou seja, a própria arte. O que evita o esgotamento da obra é a percepção de que:

                      O ato de criação não é, na realidade, segundo a instigante concepção corrente, um
                              processo  que caminha da potência para o ato para nele se esgotar, mas contém no
                              seu  centro  um  ato de descriação  [grifo do autor], no  qual o que foi e o que não
                              foi acabam  restituídos  à sua unidade originária na mente de Deus, e o  que podia
                              não ser e foi se dissipa no que podia ser e não foi.


       Alberto Pucheu, em ensaio sobre Estâncias, expôs com bastante propriedade o desvio agambeniano em relação ao produzir da obra de arte.

                   Se (...) a tradição fazia  com  que a  criação  fosse compreendida enquanto  a                       
                             passagem do não-ser ao ser, do informe à forma, da potência ao ato, do velado ao
                             desvelado, considerando  a   obra   como   pronta,  acabada,  esgotada, o   filósofo
                             afirmaria  que a  obra  de  arte  oferece  no ser a  afluência do  não ser, na forma a
                             afluência do informe, no ato a afluência da  potência, no desvelado a afluência do
                             velado, fazendo com que, no  retorno  constante  ao de onde veio privilegiado, ela
                             seja sempre, inconclusiva, inacabável, inesgotável...

     Para Heidegger a pro-dução e o pro-duzir devem ser percebidos mediante a recuperação de sua significação para os gregos. Desse modo, não nomeia apenas os processos relativos ao artesanato e às formas poéticas e artísticas, mas, principalmente,  a ϕύσιϛ [physis], sua forma máxima, pois independe de algo exterior a ela, já que porta em si mesma o eclodir da pro-dução. A matriz originária não estabelece, portanto, distinções entre o que foi criado.
    Ao questionar o significado da técnica e ao evocar a essência grega da causalidade, o autor de Ser e tempo aclara o conceito de pro-dução: 

                  O deixar-viger  concerne  à vigência  daquilo que, na pro-dução  e no  pro-duzir,
                             chega a  aparecer  e  apresentar-se. A  pro-dução  conduz  do  encobrimento  para 
                             o  desencobrimento. Só  se dá no sentido próprio  de uma  pro-dução, enquanto  e 
                             na  medida   em   que  alguma   coisa   encoberta  chega  ao  des-encobrir-se. Este 
                             chegar  repousa   e   oscila   no   processo   que  chamamos  de  desencobrimento.
                             Para  tal, os  gregos   possuíam   a   palavra    ὰλήθεια   [aletheia]. Os  romanos  a 
                             traduziram   por  veritas. Nós  dizemos   “verdade”  e  a   entendemos  geralmente
                             como o correto de uma representação.

    Após o filósofo constatar que a essência da técnica não é um simples meio, um outro olhar a lança, então, no âmbito do des-encobrimento, ou seja, da aletheia. Assim, a palavra grega Τεχνικόν refere-se ao que pertence a τέχνη de dupla maneira: tanto ao fazer da habilidade artesanal quanto ao fazer da grande arte e das belas-artes. A τέχνη pertence à ποίησιϛ. Até a época de Platão, τέχνη e έπιστήμη [episteme] eram palavras utilizadas para designar o conhecimento em seu sentido mais amplo.
    As ideias heideggerianas apontam para a rica possibilidade aberta pela ruptura das fronteiras demarcatórias do conhecimento, das linhas limítrofes entre técnica, arte e pensamento. Na busca da essência da técnica, vislumbra-se o originário da arte, concebida como o desencobrimento que leva a verdade ao fulgor de sua plena vigência.
A palavra técnica, usada para referência à técnica e à criação artística, reunia num único des-encobrir uma infinidade de desdobramentos. Por isso, Heidegger diz que as artes não surgiram de um campo determinado da criação, não se originavam do artístico.

                         Mas, então, como era a  arte?  Talvez  somente por  poucos anos, embora  anos             
                            sublimes? Por que a arte  tinha o nome  simples e singelo de τέχνη? Porque era
                             um   des-encobrir   pro-dutor  e   pertencia   à   ποίησιϛ. O  último   des-velo,  que 
                             atravessa  toda arte do belo, era ποίησιϛ, era poesia.

     Quase ao final do ensaio “A questão da técnica”, o autor aponta para o vigor do poético no desvelamento da verdade:

                         É o poético  que leva a verdade ao  esplendor  superlativo  que, no Fedro, Platão
                             chama de τό έκϕανέστατον, “o que sai a brilhar da forma superlativa”. O poético
                             atravessa, com  seu vigor, toda arte, todo desencobrimento do que vige na beleza.
                                      
     O ensaio de Heidegger retoma e sintetiza reflexões apresentadas em A origem da obra de arte, em que o autor já afirmava que a essência da arte guarda o originário. Após analisar a relação entre arte, artista e obra, constata que a arte só pode ser apreendida da obra, apreensão que se dá como virtualidade, pois o que é a arte permanece constante opacidade. O caráter de coisa das obras não facilita a aproximação porque a arte é o que escapa às coisas e à própria obra, esta última é, na verdade, forma simbólica na qual a arte anuncia a sua presença e fuga simultâneas. A partir da análise da reprodução pictórica de um par de sapatos de camponês por Van Gogh, o autor afirma que “a essência da arte seria então o pôr-se-em-obra da verdade do ente”, ou seja, escapa à coisalidade que a constitui para abrir-se como um mundo para nós.
   Concebida a criação como um produzir, torna-se impossível distinguir entre produção artística e não artística, ambas abrigadas no termo τέχνη, já que os gregos referiam-se indistintamente ao artesão e ao artista como τέχνιτηϛ.  As duas formas compartilham de idêntica natureza determinada pela essência da criação e por nela permanecerem retidas.
    Heidegger afirma que “o tornar-se-obra da obra é um modo do passar-a-ser e de acontecer da verdade”. A verdade guarda a duplicidade de ser passagem: “A verdade é não verdade, na medida em que lhe pertence o domínio de proveniência do ainda-não-(des)-ocultado, no sentido da ocultação”. Na verdade pulsa a tensão entre o negativo e o positivo: “A verdade é o combate original no qual, de cada vez a seu modo, é conquistado o aberto, no qual tudo assoma e a partir do qual se retrai tudo o que se mostra e se erige como ente”. Entendido o nada como a negação do ente e vendo-se neste aquilo que está disponível e aparece no estar-aí da obra, pode-se admitir que a verdade  advém do nada.
    A exemplo do ensaio “A questão da técnica”, Heidegger concede grande relevância à poesia no processo de desocultação da verdade, entendida como um acontecimento que se dá mediante um processo radicado na poeticidade, caminho que o leva a declarar que “Toda a arte [grifo do autor] , enquanto deixar-acontecer da adveniência da verdade do ente como tal, é na sua essência Poesia [grifo do autor]”).
    Para justificar o primado do poético no terreno das artes, o filósofo formula uma concepção de linguagem.

                             A linguagem não é apenas    e   não é em primeiro lugar  – uma expressão oral e
                             escrita  do que importa  comunicar. Não transporta apenas em palavras e  frases o
                             patente e  o latente visado  como tal, mas  a linguagem é  o  que primeiro  traz  ao
                             aberto o ente enquanto ente.

     Na reflexão heideggeriana de linguagem, a poesia ocupa um lugar especial:

                             A própria linguagem é Poesia em sentido essencial. Mas, porque a linguagem é o
                             acontecimento  em  que, para  o  homem, o  ente como  ente se abre, a  poesia, a          
                             Poesia em  sentido  estrito, é a  Poesia mais  original, no  sentido  do  essencial. A
                             linguagem não  é, por  isso, Poesia, por ser a poesia primordial  (Urpoesie), mas a
                             poesia acontece na  linguagem, porque esta  guarda  a essência original da Poesia.
                                     
     O vigor do poético imantiza a prosa a partir do século XIX e causa a indistinção das fronteiras clássicas, ultrapassando as marcas de empréstimos mútuos para inscrever a criação no interior da junção e fratura da linguagem. A poeticidade constitui-se no centro do processo irradiador. A prosa passou a ser compreendida como uma forma que perdera a eficácia. O laço estreito entre prosa e representação, ao ser rompido, colocou a nu a insuficiência de seus recursos. A prosa era um discurso-simulacro-do-real. Buscou, então, no poético não apenas a sonoridade, mas a liberdade, a poiesis, a invenção, o instrumental necessário à produção de um discurso desreferencializado em relação ao real ao qual caberia a ela somente transcrever, recodificando-o em literatura. A poesia permitiu a prosa instituir-se verdadeiramente como prosa, efetivamente ficcionalizar-se. Foi necessário a vida morrer na prosa para que a prosa pudesse renascer.
     Se os modos de assumir o poema são revolvidos pelo surgimento do verso livre, do poema em prosa e da constelação gráfica, a prosa também organiza novos modos na contramão do representacional, reinventando-se como forma poética. Portanto, constrói-se um caminho de mão dupla para configurar na criação literária a vigência do indiscernível. Não se trata de auferir ao texto literário a propriedade conceitual em que o texto filosófico guarda as fronteiras de seu domínio, mas de avançar rumo ao que surge da vizinhança, do voltar-se da prosa poética para a prosa teórica e vice-versa. Trata-se de desguarnecer fronteiras, deixar o texto exposto ao precário de sua natureza, exposto como linguagem, que é fratura e salto simultâneos.
     Heidegger aponta exatamente para uma zona de confluência entre poesia e pensamento, sob a sombra da linguagem, embora vá apenas a determinado ponto, o limite do próprio de cada esfera:

                            Tanto  a  poesia   como  o  pensamento  movimentam-se   no  elemento  do  dizer.
                             Pensando  a  poesia, já  nos vemos  no  mesmo elemento  em que se movimenta o
                             pensamento. Aqui   não   é  possível   decidir   se  a  poesia  é   propriamente   um
                             pensamento  ou  se  o pensamento  é  propriamente  poesia. Fica   obscuro  o  que
                             determina a  sua  relação  mais própria e a partir de onde isso  que chamamos sem
                             hesitar  de  próprio  surge  propriamente. No  entanto, qualquer  que seja  o  modo
                             em que  nos vem à  mente  poesia  e pensamento, um  mesmo elemento já sempre
                             está a  nos  alimentar, quer lhe  prestemos atenção ou não. Esse elemento é a saga
                             do dizer.
         
     Guarda, assim, o filósofo as marcas segregadoras na distância mantida pelo próprio do pensamento e da poesia, cuja ultrapassagem não arrisca, preferindo estabelecer na vizinhança uma propriedade de trocas enriquecedoras. Ainda que Heidegger resvale numa mudança de rumo que torna o seu pensamento impensável sem o poético, insiste em guarnecer as fronteiras seculares da separação, aderindo à distinção hölderliana e revelando uma dívida ao hegelianismo:

                             Mas pelo fato de a  poesia, em  comparação  com o  pensamento, estar de modo
                             bem  diverso  e privilegiado a serviço  da  linguagem, nosso  encontro que medita
                             sobre a  filosofia  é  necessariamente  levado  a discutir a  relação  entre  pensar  e
                             poetar. Entre  ambos, pensar  e  poetar, impera   um   oculto    parentesco   porque
                             ambos, a serviço  da  linguagem, intervêm  por ela e  por ela  se  sacrificam. Entre
                             ambos, entretanto, se  abre  ao  mesmo   tempo   um    abismo, pois  “moram   nas
                             montanhas mais separadas”.


II


     Não é muito comum encontrarmos autores que transitem pelas duas áreas com a mesma desenvoltura. Antonio Cicero faz parte do seleto grupo para o qual a poesia não significa o abandono da filosofia. Prova viva dessa afirmação é o lançamento simultâneo de dois livros, Porventura, de poemas, e Poesia e filosofia, um conjunto de pequenos ensaios sobre o parentesco entre os dois discursos.  
     Antonio Cicero, oriundo de família de intelectuais. Possui sólida formação. Fugindo ao clima opressivo da ditadura, conclui o curso de filosofia na Universidade de Londres e fez pós-graduação na Universidade Georgetown, nos EUA.. Conhece grego e latim, o que lhe dá uma boa visão dos textos clássicos, tanto dos filosóficos quanto dos poéticos. Por outro lado, lida bem com as formas da contemporaneidade: tornou-se um letrista importante, lançou cd com leitura de seus textos, participou do filme Tabu, de Júlio Bressane, mantém o blog Acontecimentos, espécie de antologia pessoal propiciada pela tecnologia,  além de ser figura muito requisitada para eventos nos quais a cultura é o centro das atenções.
     De sua produção anterior, vale a pena mencionar O mundo desde o fim (1995) e Finalidades sem fim (2005), ambos voltados para a reflexão, e Guardar (1996) e A cidade e os livros (2002), livros de poesia.
     O autor deixa bem claro na introdução à Poesia e filosofia o ângulo a partir do qual tece as suas ideias: “penso que a poesia e a filosofia são atividades humanas inteiramente diferentes uma da outra”. Tal posição, aparentemente óbvia, serve para marcar um distanciamento da corrente contemporânea que busca uma aproximação entre as duas linguagens, processo iniciado no primeiro romantismo alemão e que encontra em Giorgio Agamben e Alberto Pucheu argutos pensadores de novas possibilidades.
     Admite Cicero a existência de um filósofo que jamais tenha escrito uma linha; toma Sócrates para exemplificar a tese, o que me parece estranho, pois o mentor de Platão teria elaborado, refinado e criado métodos e modos dialéticos de filosofar, limitando-se apenas a deixá-los banhados em pura oralidade. No entanto, não compreendi a razão pela qual não admite a existência de um indivíduo capaz de ser efetivamente poeta sem obra. Ainda mais se pensarmos que a poesia só existe em fuga, como impossibilidade, melhor, como potência da linguagem que se materializa no poema sempre como falta.
     Uma característica comum à filosofia e à poesia é não possuírem nenhuma utilidade prática, a primeira por privilegiar à abstração, a segunda por também corresponder à imersão em território imaginário. Outra característica, responsável pela marginalidade de ambas na sociedade contemporânea, é a despreocupação com a temporalidade numa época de aceleração incontrolável do tempo. A transformação do tempo em mercadoria eliminou a noção de tempo livre, a fruição de autonomia, o espaço de movimentação da subjetividade, de transformação interna, o ócio criativo, a margem reflexiva, enfim, expurgou o tempo similar ao do demônio do meio-dia, o filtro interno em que o mundo se realimenta e se reinventa. O princípio do desempenho corresponde ao processo de instrumentalização do ser humano, sua apropriação pelo reino espetacularizado e produtivista do imediato. Ora, o poema não rende, não produz nada que já não esteja nele encerrado. O valor do poema não é semelhante ao da acumulação de capital. Autotélica linguagem, vale em si mesma. Nesse sentido, tanto a poesia quanto a filosofia rompem com a linha de montagem e o consequente utilitarismo. Temos, então, um paradoxo: não há espaço para ambas numa cultura cada vez mais chapada, googlada, digitalizada, instantânea, por outro lado, nunca foram tão necessárias.
     Antonio Cicero toma emprestado o título de um livro de Carlos Drummond de Andrade – A vida passada a limpo – para exemplificar alguns aspectos do trabalho poético. O poema advém de uma tomada de decisão ou de algum acaso inicial. O autor deixa de fora a possibilidade de possessão, ou seja, de o poema assaltar o poeta, invadi-lo, obrigá-lo a dar-lhe forma. Qualquer que seja o caminho, todavia, o trabalho envolve um complexo processo de escolhas; título, extensão, métrica ou não, versos rimados ou brancos, forma buscada na tradição ou proposta experimental etc. Isso no plano macro, digamos assim, porque o poema exige, na realidade, uma escolha a cada palavra. Fora a lapidação, a reescritura, às vezes a completa transformação textual. Cada mudança no poema implica uma mudança de todo o universo. Na depuração do texto, muitos universos são suprimidos pela eternidade. Acontece que um poeta não é apenas o que faz versos ou poemas sem versos, mas o arquiteto de uma determinada poética, cria, assim, o barco, o rumo e o sistema de navegação em que se movimenta.
    Não acredito, como Cicero, que o fim da vida de um poeta seja virar poesia, poeta não possui fim propriamente, é aquele que se lança ao inalcançável, o portador da recusa à limitação da vida e da linguagem. Não há poesia sem risco, sem a possibilidade do caminho de Hölderlin. Certamente há uma muito  arraigada visão de poesia como zona de conforto, abrigo, autoajuda, melíflua musicalidade, terapia, aquilo que vulgarmente denominamos perfumaria. Mais ainda: não há um caminho, receita, certificado de garantia. A fruição de um único poema revela modos diversos de o leitor ideal fazer valer o tempo livre,  investindo numa “leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira, reflexiva e intuitiva, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e não linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingênua e informada”.
    “Um poema não se faz com ideias, mas com palavras”, a resposta de Mallarmé a Degas, que acreditava que por possuir muitas ideias poderia convertê-las em poemas, é exemplar na demarcação de territórios alheios, mas me parece insuficiente para impedir a percepção do texto poético como uma estrutura extremamente porosa aos ventos que sopram de outros campos do conhecimento. O em-si do poema, a sua monumentalização, talvez seja uma forma de mantê-lo intocado, num estado de pureza que não corresponde ao terreno das artes, avesso à organização de materiais em prateleiras arrumadas, rotuladas, submetidas à padronização científica ocasionalmente impostas por pensadores tentam aos artistas. A frase de Mallarmé mapeia o centro nervoso da produção poética, a palavra, é verdade, mas não existe algo tão fugidio quanto a apreensão do significado dessa palavra, um conceito no qual se cruzam caminhos diversos e nos constitui como sujeitos.
    No quarto ensaio do livro, o autor faz uma distinção entre “pensar o mundo” e “pensar sobre o mundo” de extrema importância para compreender o jogo de separação e aproximação entre poesia e filosofia. Cicero explora a diversidade sintática para refinar o pensamento sobre a questão. Para ele, a presença da preposição após o verbo pensar, construção mais usual, corresponde ao pensamento discursivo ou dianoético, segundo a classificação aristotélica, já a supressão do conector seria uma forma do pensamento intuitivo e noético. Isso significa que a cisão trazida ao enunciado pela preposição, cria a possibilidade do pensamento filosófico pleno ao transformar o mundo em uma “totalidade” a ser pensada pelo sujeito. Sem a preposição, o pensamento rompe a segregação e passa a fazer parte também do mundo. Nas palavras do autor: “a abolição da preposição sugere a abolição da separação e da mediação entre o pensamento e a coisa pensada. É como se o pensamento não ficasse sobre, isto é, acima ou, de algum modo, fora do mundo, para pensá-lo”. Portanto, há um pensamento solto, informe, apropriado por todos, e há um pensamento formalizado, preso ao rigor e às exigências da filosofia. Pensar o mundo é uma das possibilidades da poesia, como demonstra o autor ao final do ensaio com uma análise do poema “O rio”, de Manuel Bandeira, e a exposição do poema Nuvens, de Jorge Luis Borges. Aliás, um dos pontos altos do livro é o uso de excelente repertório de poemas magistralmente utilizados na defesa das concepções do autor.
     O quarto ensaio prepara o leitor para a percepção da natureza desigual das nuvens em que se movem poetas e filósofos. Cicero explicita as diferenças: “Os assuntos do poeta não são tão genéricos e abstratos quanto os do filósofo”. Antecipa possível objeção daqueles que não acreditam na sua defesa de separação tão radical, por isso não acredita que os poetas abordem de modo figurativo e implícito os assuntos tratados pelos filósofos. Entende que é justamente quando mais parece se aproximar do universo filosófico que a poesia dele se afasta. Toma da Ode I.xi, de Horácio, um dos mais tradicionais motivos poéticos, o carpe diem, como exemplo de comprovação de sua tese. Acrescenta que, em termos filosóficos, não há absolutamente nenhuma novidade na ode horaciana. Isso não implica a supressão de seu caráter de obra-prima, serve para comprovar que a filosofia não é o “ponto de chegada” do poema, apenas um dos elementos integrantes de sua composição. A perfeição e a beleza da ode são propiciadas por outros recursos.
     Para tornar mais claro o seu ponto de vista, o autor enfatiza: “Sustento que a poesia enquanto poesia é inteiramente diferente da filosofia enquanto filosofia”. Para acrescentar: “Não é que não haja poemas que contenham teses filosóficas ou textos filosóficos que contenham trechos poéticos. É que o que torna um poema admirável enquanto poesia não é o que torna um texto filosófico admirável enquanto filosofia”. 
     Considero um raciocínio quase irretocável, só me pergunto se realmente não há nenhuma fenda, nenhuma fissura pela qual seja possível a quebra dessa rigidez, do caminho único e impermeável de ambas, ainda mais que são dimensões da linguagem, forma contaminada em sua essência, propriedade de impureza. Não haverá em alguma falha da linguagem um verso que seja um conceito, um pensamento no ritmo encantatório do poema, um vazamento de palavras a misturar de modo incontrolável poesia e filosofia?
     Outra ode de Horácio (III.xxx), na qual o poeta latino exalta a perenidade do poema,
permite ao autor de Guardar, valendo-se de oposição foucaultiana, propor outra distinção entre o texto poético e o texto filosófico: “enquanto, de maneira geral, o poema sendo contemplado por si próprio, funciona como um monumento, um texto filosófico, sendo lido em vista da tese que afirma, funciona como um documento” (grifo do autor).
     Antonio Cicero observa a não existência em língua portuguesa de antônimo para a palavra “poesia”. Alguns equivocadamente, empregam prosa, quando o mais pertinente é o emprego de expressões “não poesia” e “não poema”. A prosa não se contrapõe à poesia ou ao poema, mas ao verso, fato explicado pela etimologia:

                          “Prosa”, do vocábulo latino “prorsus” e, em última instância, de  provorsus que      
                          quer  dizer  “em frente”, “em  linha  reta” é o discurso  que segue  em  frente, sem
                          retornar. “Verso”, do vocábulo latino “versus”, particípio passado substantivado de
                          vertere”, que quer dizer “voltar”, “retornar”, é o discurso que retorna.

     Na verdade, tal diferença guarda na escrita as marcas da cultura oral primária, na qual não existiam gêneros literários, pois a palavra literária deriva de “letra”. Não obstante, havia a diferença entre aquilo que se reitera e aquilo que não se reitera. Isso explica as formas distintas de epos - επος,  enunciado reiterado, transformado em memória, e mythos -  μύθος, , o enunciado não reiterado, originalmente  com o significado de “fala”. Assim, na cultura não letrada o verso já é um padrão sonoro recorrente, enquanto a prosa é apenas ocorrência. A prevalência do verso nos textos da antiguidade seguramente deve-se à extraordinária dependência da memória, face à dificuldade de produção e circulação de textos escritos.

     O autor não compartilha da crítica agambeniana à cisão da palavra e da consequente busca de uma suposta totalidade originária perdida. Eis como Agambem apresenta a questão logo na introdução do livro Estâncias:

                        De acordo com uma concepção que está só implicitamente contida na crítica platônica
                        da poesia, mas que na  idade  moderna  adquiriu  um caráter  hegemônico, a  cisão da
                        palavra é interpretada no sentido de que a poesia possui o seu objeto sem o conhecer, e
                        de que a filosofia o conhece sem o possuir. A palavra  ocidental  está, assim, dividida
                        entre  uma  palavra  inconsciente  e  como  que  caída  do  céu, que goza do objeto do    
                        conhecimento  representando-o  na  forma bela, e uma palavra que tem para si toda a
                        seriedade e toda a consciência, mas que não goza do seu objeto porque não o consegue
                        representar”.


     Para reforçar a exclusão mútua dos dois campos do conhecimento, Cicero recorre a figura de Lucrécio, destituído da condição de filósofo por faltar-lhe originalidade, mas em plena condição de grande poeta e brilhante divulgador da filosofia de Epicuro.  A questão da originalidade, tanto em poesia quanto em filosofia, aponta para um pântano, mais hostil ainda no território filosófico, pois os poetas moem e remoem temas imemoriais, livres que estão da lida com ideias, porém os amantes do saber  movimentam-se em possibilidades bem mais estreitas. Talvez, por esse prisma, se os poetas tornaram-se invisíveis, os filósofos tenham sido extintos.
     A finalidade da obra filosófica é a manifestação de uma proposição, tese, ou doutrina filosófica, assim como a da poesia é a obra poética, embora esta possa conter proposições, como um dos elementos integrantes de sua constituição. Como os enunciados poéticos não constituem proposições, mesmo aqueles situados mais próximos do caráter proposicional (como as manifestações de ars poética), o fato de serem eventualmente contraditórios não os desqualifica. Alguns têm na própria contradição a própria razão de ser.
     O ensaísta valoriza a desfetichização completa de todos os recursos poéticos efetuada pelas vanguardas do século XX que derrubaram os limites das convenções métricas e dos recursos retóricos tidos até então como condições necessárias e suficientes para a produção de um poema. A irrupção do verso livre não acarretou a eliminação das formas anteriores, pois a ação da vanguarda “não foi o fechamento de portas abertas, mas a abertura de portas fechadas; não foi a renúncia, mas a desprovincianização ou cosmopolitização da poesia”. Trata-se, portanto, da contribuição milionária de todas as possibilidades estéticas. Tal movimento liberou a poesia dos limites das aparências acidentais e das contingências históricas, da submissão à camisa de força das convenções poéticas.
    A proposta iconoclasta das vanguardas trouxe o “make it new” poundiano para a linha de frente da estética. É bem verdade que a fúria demolidora ajudou a reconfigurar o cenário das artes, principalmente do ponto de vista cognitivo, ao revelar que “simplesmente não há – jamais houve – condição necessária ou suficiente para a produção de um poema”.
     Sobre o culto à novidade também incide o peso do reino das mercadorias, mas a crítica de Antonio Cicero não avança no campos das relações de produção.
     Caso a novidade fosse critério válido, uma vez descobertas novas possibilidades, todas as anteriores estariam relegadas ao esquecimento. No entanto, as obras de Homero, Dante e Camões ainda exercem enorme fascínio sobre leitores contemporâneos. 
     Se a poesia é o que escapa ao poema, escapa também a qualquer tradução, segundo Robert Frost. Apesar de a poesia ser uma arte em fuga constante, traduzir poemas pode propiciar uma certa aproximação entre o leitor sem domínio da língua de origem e a versão original. Há certamente outra questão normalmente não levada em consideração: inúmeras vezes uma tradução nos atinge tão profundamente que, quando aprendemos a ler o texto na língua-fonte, não conseguimos nos desvencilhar do primeiro olhar sob a luz da língua-alvo.
     Cicero lê a filiação dos poetas às musas não como simples valorização da memória, mas como verdadeira declaração de autonomia estética. Os poetas, confessando-se ligados ao plano divino, conseguiram alto grau de liberdade para circular por todos os caminhos do discurso.
     Platão, em Íon, atribui a Sócrates palavras que conferem aos poetas a propriedade de empregarem um discurso sem amarras: “porque o poeta é coisa leve, e alada, e sagrada, e não pode poetar até que se torne inspirado e fora de si, e a razão não esteja mais presente nele”. A passagem, todavia, critica a incapacidade dos poetas, pois o discurso por eles proferidos viria dos deuses, não possuindo a originalidade daqueles produzidos pela razão, criados pelos seres humanos. Apesar disso, assinala, por outro lado, a ampla possibilidade da poesia, fora da zona de controle da cidade.  
     O autor conclui os ensaios reafirmando a rigidez dicotômica de sua tese: mais que uma diferença, há uma oposição complementar entre poesia e filosofia. O último período do livro explicita a natureza dessa complementaridade:

                          (...) esta  [a poesia]  constitui a afirmação radical e imanente  do mundo fenomenal,
                          imediato, aleatório finito, aquela [a filosofia] é o núcleo do empreendimento moderno   
                          de crítica radical e sistemática das ilusões e das ideologias que pretendem congelar ou
                          cercear a vida e, consequentemente, congelar e cercear a própria poesia.


     Resta saber se a poesia precisa de tutela, de defesa, de outro discurso que, sob a fantasia de combater ilusões e ideologias, na verdade muitas vezes as justifica. A investigação do autor, formulada sob uma ótica kantiana, é realizada de modo esplêndido, com profundo conhecimento de causa.
     Confesso que li com muito proveito as reflexões do filósofo e poeta, tanto que esta resenha me saiu muito extensa. O tema guarda, por sua própria natureza, um caráter inconclusivo, característica que protege a riqueza inesgotável de um campo proteico, formado e informado por matéria em fuga, em incandescência inesgotável. Não há, felizmente, o ponto final de uma certeza, nada foi resolvido porque não há nada a se resolver, mas a ser revolvido. Justamente por isso saímos da leitura mais sedentos e enriquecidos.
     Continuo a acreditar que a poesia está mais próxima de uma forma de  energia do que da ideia de monumento e que a diferença entre os dois discursos é que a filosofia é um não sei e a poesia um sei lá!


Livro: Poesia e filosofia
Autor: Antonio Cicero 
Editora: Civilização Brasileira
Páginas: 142.
Preço: R$ 29,90