sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Pleura





azinhavre
nas placas
da cartilagem hialina
brônquios abaixo
peso acima do limite
das palavras
presas em pulmões
bolsas de ar
envenenado
logo acima
do diafragma
líquidos
infiltrados
secreção
de noites
dissolutas
hemoptise
em páginas túrgidas
enfisema
semântico
nebulização
cria nuvens
de palavras
terminadas em –ite
thriller
a bula
de antibióticos
filme
de efeitos colaterais
em 3D
drágeas
de antiestética
falta de ar
em chapa de raio-X

na falta de tango argentino
Paulinho da Viola na veia


quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O curso da Semântica



Sob a ossatura de qualquer discurso
a zona escura onde o sentido se desfigura.

Tempos acelerados




















     But who can live for long
     In an euphoric dream
          - W. H. Auden

drenagem em ponto máximo
faz a alma saltar
fora do corpo
via oral ou na veia
as válvulas
desreguladas
paradas cardiorrespiratórias
a todo volume
a flor fenece
nunca mais
o último baile
a pátria dos milagres
os tempos do ouro
migraram

ontem
os fogos de artifício
abriam o ano
(como são tristes
os anos
que precisam
de circo e espetáculos
para serem inaugurados)
hoje
quase sem pulso
a multidão
como loucos controlados
andando em círculo
em hospício desativado
pessoas que se desistem
em urnas
como corpos
em caixão




Sexo webcam



Esfíncter, clitóris,
não, Dóris, não são botões
de controle remoto.


Dístico isotônico

Kasimir Malevich



















Entre adrenalina e naftalina
distância mínima.


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

a.7



sete minutos Jacó ser vil esperando por ela mas veio o de cicatriz na testa medir terreno fazer reconhecimento dos mecanismos de defesa o suburbano centurião negro escandindo ameaças o guardião venenoso da pequena puta principesca puxou do estojo dezenas de relógios mido tissot orient mondaine technos casio rolex ordenados no veludo como se fossem um pelotão de fuzilamento então era esse o ofício a técnica de sobrevivência do inimigo a astuciosa tática de conquista as armas do império por isso o volume à altura do lado esquerdo da cintura tudo teatro a besta viera farejar pontos fracos viera descobrir que Tétis segurou o falso Aquiles pela pica ao banhá-lo no rio Estige sim nada bobo o espião infiltrado na sala quase sem móveis suas narinas dilatadas seus olhos contraídos eram pura felonia seu suor caía do rosto mal barbeado sobre o cordão de ouro onde São Jorge se afogava seu hálito de ave de rapina empesteava até os pensamentos tudo brilhava nos relógios um galo qualquer marca o que realmente era necessário ele negava uma pistola glock 380 e um pente de balas



a.6




escadas paredes portas janelas assoalho teto nunca mais os mesmos pois não era um casal de tarde de domingo em visita furtiva percebera desde o início nos olhos amêndoas havia âncoras a acenar demorada estadia percebera a língua lambendo os lábios como se dissesse “ego te removebo, ego te humiliabo, ego tibi multas neces impendi praecipiam” por que se apoderar de uma alma de mil remendos para removê-la como o suor de corpo febril se nenhuma escada alcança a altura do desejo por que fazer alguém sofrer humilhações em praça pública enquanto descasca uma laranja com requintes de cortesã homicida por que matar alguém em câmara lenta se o filme não será exibido em lugar algum a não ser no banheiro imundo entre água espuma e esperma uma corrente de ar fria ingressara na casa as palavras saíam pesadas e úmidas em frases que já não chegavam a qualquer destino como os livros escritos para cupins sobre a mesa como o de Guilherme de Tours aberto em página infamemente antecipatória do encontro inesperado os poemas levados por uma bicicleta lilás para o lixão da cidade uma corrente de ar vinda das terras baixas da acídia e da divagação contaminara todo o trabalho trazendo paralisia regurgitamento pestilência  


O que escapa ao escuro

Tela do pintor espanhol Dino Valls





















Caem fora da blusa
dois pomos na linha turva
entre estrelas em brasa
e breu,
presas entre pressa e pressão
as aves latejam auroras
e voam paradas
para um céu inalcançável
por palavras.


domingo, 26 de janeiro de 2014

Todos os verbetes à solta

Mosaico de Pompeia





















O que eu queria
te dizer
fugiu
assim que você
atravessou a porta
a única linguagem
que importa
rolou pelo chão
de A a Z.


sábado, 25 de janeiro de 2014

Os apóstatas dançam nas praças

















Ao perceber
que ninguém
se livrava
dos fones
soldados
aos ouvidos,
ninguém se empolgava
com a baba da verdade
a escorrer
do canto da boca
possessa
de versículos
fora de contexto,
o  heresiarca
(com pequena arca
carregada de dólares)
pegou um táxi
para o outro mundo.


A hora mais próxima

















Tantas urnas
de se guardar sêmen
abertas
como fraturas expostas
ao cair da noite
entre carros de polícia
e luzes
que debruam a praia
de urgência e sombras.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Osteopirado

"Engraving In The Femur Of T", trabalho da artista romena Marian Capraru




















O fêmur mofado
solta da cartilagem
uma cartilha
de desintegração.

Na colônia de ossos
onde há pouco
uma pele envolvia
a urna do corpo
alguém se anuncia:
my name is Bones,
James Bones.




quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Cartão de crédulo











Zumbis
Fidelizados
Feudalismo
Reciclado
Almas
Clonadas
Em liquidação
De dogmas
Sem fundos
Vida
Negativada
Pântano
Em promoção

A senha
Acende a cobiça
Na cabeça dos infiéis.




Os dias felizes erraram o código postal

La valse, Camille Claudel














Perto é fora.
Pouco importa
distância
se o alvo
nunca na pira.

Perturbação
aberta
a cem metros
de nova
lição de abismo,
mais uma palavra
e seria possível
outra caligrafia.

O paraíso
vem
sempre
que
não estou.


Terça-feira magra

James Turrel
















Vai-se a terça
esticada em esteiras.
O que nela aconteceu
em esferas fechadas
de muros sem memória
para sempre lacrado.
Flutua a noite em música,
distantes as palavras
para sempre silenciadas.
A terça que se vai
evanescente, esvoaça
como um pássaro
que se apaga
no céu escuro.


terça-feira, 21 de janeiro de 2014

As belas letras mortas, mortinhas mesmo

A única criatura do mundo que se interessa por minha poesia, meu desafeto histórico, Zantonc, enviou-me da Turquia, onde conspira contra o governo, um poema com o intuito de vergastar o meu obscuro trabalho, lançando contra mim uma série de acusações infundadas disfarçadas de crítica generalizada à litechatura de atualidades. Outra hora darei a resposta apropriada.



Escultura do artista italiano Matteo Pugliese



























As belas letras mortas, mortinhas mesmo


Milhares de palavras,
gel versalhada,
contos do vigário,
ensaios em aramaico,
romandesmanches
peniconoclásticos,
remi$$ões
em páginas protocolopiadas,
fazemos a sua tese
a cem reais por lauda,
citações refogadas
em panelas de google,
QI interferências
em orelhas, prefácios,
novas coleções primavera-verão,
coincidências estilístico-
testiculares,
evacuação de regras
com ou sem flatulência,
nunca-antes-na-literatura,
ai-como-sou-foda,
gênese infindável de gênios,
nenhuma ideia.
E não me venham
com a frase maldita
de Mallarmé a Degas;
a poesia não é feita de palavras,
mas de vazios.


segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Floral

 Butchart Gardens, Victoria, British Columbia.


Gérberas, jacintos,
gerânios, goivos, glicínias,
girassóis, gardênias.


Entreforapoema - versão 2014

Basquiat






























Vou fazer um poema
não vou fazer um poema
poemas não são falsos
fetos

Vou fazer um poema
não vou fazer um poema
poemas não são fátuos
fórceps

Vou fazer um poema
não vou fazer um poema
poemas não são fármacos
infaustos

poemas não rendem
poemas não se vendem
poemas não se rendem


domingo, 19 de janeiro de 2014

Semi-haicai

                                                  "In free fall", de Dave-Bischoff-Mood


Há que se cair
sem se livrar
da leveza.


sábado, 18 de janeiro de 2014

Haicai



Falta uma letra
falsa em falso testamento.
Minha herança é vento.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

a.5

Anselm Kiefer, Merkaba, 2011



a.5

de volta à escada para abraçar o vazio bicicleta e donos instalados nos vizinhos antipáticos rádio a todo volume e crianças insuportáveis os gritos histéricos dava para se ver beijos abraços palavras risos banhados em saudade talvez hipocrisia raio X através de velhas paredes como seria a intrusa fora do raio dos pneus sem que varetas de alumínio geometrizassem rosto de olhos amêndoas sem os pedais machucando os seios o guidão enfiado entre pescoço e testa as correntes algemavam o olhar do desejo a uma marcha suicida ao mundo do outro lado das rodas de bicicleta monark tropical cp aro 26 freio inglês lilás meio descascada selim alto fita flamenguista de cada lado bandejinha na frente retrovisor só do lado esquerdo levada por atleta mma ela carregava o cadeado e pequena caixa ressurrecta Pandora viera espalhar todos os males casa afora tomar de assalto alma sem sistema de defesa sem refúgio não é necessário imitar Leopoldo María Panero exilar-se em manicômio seguir caminho Robert Walser o mundo já é um hospício no qual alta e morte formam uma única palavra



quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Despejo




Quando fui expulso do Estácio, em 1975, era a remoção de todo um bairro para a maravilha do Metrô. E fomos todos para Antares, Urucânia, Paciência e a puta que pariu, em casas falsas inspiradas em acampamentos palestinos. Os administradores da cidade sempre ofereceram espelhos e miçangas, além de um conjunto de frases feitas que nunca chegaram à última sílaba. O progresso é irrefreável, mas o desrespeito às pessoas é inevitável? Irrefreável e inquestionável formam mesmo uma rima estranha. Por exemplo, rimam com o morro do Bumba, casas sobre aterro sanitário? Quem desapropria o faz em benefício de quem? Progresso para quem? O que é progresso? Ampliação da mais-valia? Bantustões para turistas, aluguel de laje no Vidigal? Formação de nômade-lupemsinato para eleições viciadas? Ingresso automático em facções criminosas, já que a esquerda desistiu de lutar? As cidades cada vez mais um gigantesco balcão de negócios onde a população só merece respeito quando aumenta o faturamento de seus verdadeiros donos, sempre acompanhados pelos hediondos cães de guarda.

Fiz esse poema em homenagem a meu amigo Maurício, da favela de Antares que morreu em confronto com outra gangue e eu sequer me lembro do ano, e a todas as pessoas que já tiveram a porta de casa marcada para demolição.

Despejo

Nosso lar
não é mais nosso
logo um shopping
ignóbil
colosso

nossos móveis
nossos ossos
no caminhão de entulho

a copa do mundo é nossa
por que não sentimos orgulho?