domingo, 6 de maio de 2012

Trançado Blanchot

Ives Tanguy -  Indefinido



TrAnÇaDo BlAnChOt


Linhas normais: Maurice Blanchot, “A literatura e o direito à morte”. In: A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 310-311.
Linhas em itálico: interferências parentéticas de José Antônio Cavalcanti


A palavra me dá o que ela significa, mas primeiro o suprime. Para que eu possa dizer:
(O aniquilamento é um processo incompleto de desnomeação, inconclusivo gesto de)
essa mulher, é preciso que de uma maneira ou de outra eu lhe retire sua realidade de
(supressão na minha pele e na minha memória da mulher que sublinhou as palavras)
carne e osso, que a torne ausente e a aniquile. A palavra me dá o ser, mas ele me
(com caneta vermelha e beijos, antes de abrir as mãos para lançar os búzios como quem)
chegará privado de ser. Ela é a ausência desse ser, seu nada, o que resta dele quando
(lança maldições durante a tempestade. Seus passos sobre tacos apodrecidos galopam)
perdeu o ser, isto é, o único fato que ele não é. Desse ponto de vista, falar é um direito
(na margem suspeita do sem-corpo, carne de papel e sangue, carne de sílaba e sonho)
estranho. Hegel, nesse ponto o amigo e próximo de Hölderlin, num texto anterior a A
(ou infâmia. Seus passos são golpes que me fazem desacontecer, desfazem-me o ser,)
fenomenologia escreveu: “O primeiro ato, com o qual Adão se tornou senhor dos
(desestabilizam o movimento dos olhos. Agora a ausência ainda guarda o perfume da)
animais, foi lhes impor um nome, isto é, aniquilá-los na existência (como existentes).”
(instabilidade, o gesto instaurador de um mundo antiadâmico. Nele, esvaziado e opaco,)
Hegel quer dizer que, a partir desse instante, o gato cessa de ser um gato unicamente
(retiro os nomes das coisas e dos seres, suprimo conexões e rumos, inverto sentidos,)
real para se tornar também uma ideia. O sentido da palavra exige, portanto, como
(invento cidades fantasmas e ruínas afetivas, inscrições que marcam a rota da retirada)
preâmbulo qualquer palavra, uma espécie de imensa hecatombe, um prévio dilúvio,
(na qual vou despindo a mulher que foge de lógica e destino, vou devassando os seus)
mergulhando num mar completo toda a criação. Deus havia criado os seres, mas o
(mamilos, reduzindo o rosto a silêncio, desmanchando memória em ideia morta, lixo)
homem teve de aniquilá-los. Foi então que ganharam sentido para ele, e ele os criou, por
(existencial, sobre o qual, como ratos, meus dedos vasculham partes de horizontes e)
sua vez, a partir dessa morte em que tinha desaparecido; só que, em vez de seres e,
(finalidades, provas do tempo anterior ao nosso mútuo desabamento. Não encontro os)
como dizemos, existentes, só houve o ser, e o homem foi condenado a só poder se
(gestos amorosos, a alegria, as palavras com sua crosta de automatismo e vileza, apenas)
aproximar e viver das coisas pelo sentido que lhes dava. Ele se viu prisioneiro no dia, e
(linhas em que o mundo inteiro desaparece entre as pernas da mulher que partiu furiosa)
soube que esse dia não podia findar, pois o próprio fim era luz, já que era do fim dos
(e disposta a mergulhar em mares sem luz, linhas de aniquilamento em que todas as)
seres que vinha sua significação, que é ser.
(palavras desaparecem em ondas invisíveis.)

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