José Antônio Cavalcanti
Antes que eu me vá, precisava dizer algo. O mundo vai acabar daqui a alguns meses, e antes que a lua despenque suas crateras sobre a nossa insensatez, antes que um nômade meteoro arremesse como um alucinado suas rochas incandescentes contra uma fazenda de Uberlândia, em Minas Gerais, eu precisava dizer. No entanto, tudo ficará numa das formas do pretérito, aquela expurgada de qualquer gramática por referir-se a ações não realizadas, que algum gaiato rotulou de pretérito mal passado. Tento arrancar expressões exatas, todo o vocabulário submerso da não escrita com sua crosta de impurezas e maravilhas. Uma matilha rancorosa, ancorada em algum território absconso, lança um ataque de mísseis à minha memória. Piso em imagens e afetos renegados, fotografo as cenas extintas de amoroso enlace: cacto e esponja, diamante e vinho, serenidade e turbulência. Sob o vidro espatifado do retrato, tudo o que vejo somos nós, na velha banheira, dois corpos exaustos, envelhecidos, afogados por toneladas de indefinições. Vou lançando a torto e a direito todas as desconexões possíveis. Imperiosas as disjunções, as dislogias, as portas fechadas, o esvaziamento de toda carga emocional, a blindagem como antessala do autoaniquilamento. Talvez o trabalho tornasse possível a ilusão de um caminho. Mas desisti de buscas. Vivo sob o fascínio da minha ruína. Vou me largando em suportes inócuos da inexistência, fantasma virtual digitalizando pedras e dramas. Posso ouvir meus olhos, pernas, mãos, pau, coxas, cabelos, todas as partes incapazes de um centro, na galeria de um museu de assombros ou como trilha de ópera absurda. Toda palavra perdida remete a você; ouço o tremor da sua voz quando corto os fios da rede de explicações, desfaço os ângulos de proximidade e contato, inviabilizo tangências, destruo a lógica de formalismos e conveniências, vandalizo as cidades de ternura que construí como um louco para você. Dessa vez não precisarei de atos extremos, a morte já instalou o seu programa na minha alma. Vou partir antes do fim do mundo, é fato. Descobri que o silêncio é a única linguagem capaz de expressar o mundo sem a sua presença. Precisava dizer algo, mas já estou de saída. Gostaria de ficar e descobrir o que preciso tanto dizer, mas a clepsidra é uma déspota a sorver com volúpia todos os afetos.
No silêncio os afetos loucamente desfalecem-se... e o mundo chega ao seu final.
ResponderExcluirAbraço, Célia.
Muito interessante este texto. Por si só abrange significados paralelos, que juntos formam um misto de pena, medo e sentimentos que produzem uma catarse singular. Parabéns professor ! Robson - Pedro II SCIII - 1311
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