sábado, 24 de março de 2012

Roberto Bolaño: uma literatura nômade





    José Antônio Cavalcanti

Roberto Bolaño, além de atrair uma legião crescente de leitores, tornou-se uma referência para todos os autores jovens (e nem tão jovens assim), tomados de assalto por uma escrita dotada de forte pulsação rítmica, com personagens à deriva, mas que arrastam na caminhada às escuras todas as leituras possíveis. Seus textos incorporam experiências pessoais à construção de uma realidade sem glamour, sem a presença da luz de um caminho, porém fonte de persistente inquietação e estranheza. As técnicas narrativas, o exílio, a escolha do lado esquerdo do mundo, a reutilização de personagens e cenários contribuem para a construção de uma escrita nômade, em que tudo circula para inevitavelmente desaguar no vazio, no deserto de sentidos situado no México, no Chile, em Barcelona, em qualquer lugar ou em lugar algum.
Chamadas telefônicas, o primeiro livro de contos de Bolaño, publicado originalmente em 1997 e só agora lançado no Brasil, guarda em seus textos breves a escrita de urgência como enfrentamento da morte. Ao antecipar temas, personagens e recursos narrativos explorados de modo intenso em obra posteriores, o livro funciona como um cartão de visitas do universo do autor.
Os quatorze contos são divididos em três partes – Chamadas telefônicas, Detetives e Vida de Anne Moore, todas encerradas com narrativas homônimas.
Na parte inicial, a própria literatura é colocada em primeiro plano, recurso de metalinguagem recorrente na produção do escritor chileno, mas num viés que privilegia a zona de sombra da escrita, os perdedores heroicos, os escritores fracassados.
O conto de abertura do volume, “Sensini”, incide sobre um escritor argentino exilado na Espanha especializado na caça a concursos literários por enxergar neles uma forma de sobrevivência. A narrativa estrutura-se sobre elementos autobiográficos. Bolaño, ainda anônimo, também participou de diversos concursos; num deles, o 1º Prêmio Alfambra de Contos, conheceu o autor argentino Antonio di Benedetto (1922-86), a quem tomou como modelo para construir Luis Antonio Sensini. No prefácio a Monsieu Pain, relembrando essa época, Bolaño referiu-se ironicamente à perseguição de “prêmios búfalos que um pele-vermelha tinha que caçar”.
Em “Henri Simon Leprince”, ambientado na França durante e depois da Segunda Guerra, encontramos um escritor fracassado, cuja invisibilidade, apesar de uma atuação digna e corajosa na Resistência, surge como propriedade irremovível de sua existência. A marginalidade completa do anonimato, a rejeição de público e crítica, a repulsa de seus pares enunciam a solução fatal: “ele deve desaparecer, ser um escritor secreto, fazer com que sua literatura não reproduza seu rosto”.
Dedicada a Enrique Vila-Matas, “Enrique Martin” aborda o caminho que leva um poeta “à ruína, à loucura, a morte”, como nos avisa o narrador em primeira pessoa logo no início:  Arturo Belano, alter ego de Bolaño, protagonista, ao lado de Ulises Lima, de Os detetives selvagens. A literatura surge como o espaço do inalcançável. Enrique Martin, poeta extremamente medíocre, apesar da tenacidade cega de seu dedicação, não consegue um modo de realização estética. Uma trajetória na qual a poesia não assegure cumplicidade produz o progressivo enlouquecimento e o suicídio do poeta.
A ironia e a política literária são usadas com excelente resultado em “Uma aventura literária”. A história expõe uma tensão entre A e B. A, famoso, tem dinheiro é lido; B, um escritor desconhecido, publica seus textos em revistas de público inexpressivo. B transpira ressentimento. Consegue publicar um livro em que critica com ironia a obra de A. Este reage de modo incompreensível, faz elogios ao novo autor e contribui para transformar o livro em sucesso de vendas. Assim, surge a necessidade da construção de uma cadeia de raciocínios elaborados pelo protagonista para justificar a ação inesperada daquele que fora, na verdade, alvo de uma escrita rancorosa.
As idas e vindas de um casal separado sustentam o conto que dá título ao livro, “Chamadas telefônicas”. O narrador onisciente permite a construção de sentidos diversos para a história. A separação e o reencontro de um casal são feitos por telefone. O homem não consegue ajudar a mulher a enfrentar a depressão e a tendência ao suicídio. B, o ex, sonha com um boneco de neve andando pelo deserto. Condição irremediável das personagens de Bolaño, todas entregues a uma andança interminável rumo ao desconhecido. O desfecho da história, com a revelação sobre a morte da antiga companheira, revela as propriedades tomadas pelo autor à narrativa policial, antecipando, assim, o próximo bloco narrativo.
A segunda parte do livro, sem perder o apelo a recorrentes referências literárias, acentua a propensão a um realismo cru, visceral (não foi à toa que em Os detetives selvagens,  o narrador inventou o “real-visceralismo”) e violento, com personagens mergulhados em situações absurdas, na zona sombria do submundo e da ruína existencial. “O verme” trata de história da amizade entre um velho e um jovem (novamente Arturo Belano) em fuga dos compromissos escolares para navegar entre livros e sessões de filmes europeus ou mexicanos, alguns recontados no texto, explicitando a dívida do autor com a narrativa cinematográfica concentrada na ação contínua. O título sugere, na metáfora pespegada ao velho, um ambiente de desolação, espaço de migração, perda, decadência e violência. Lugar originário do “verme” e do avô de Arturo Belano, Santa Teresa (nome fictício de Ciudad Juárez), em Sonora, onde ocorrem vários assassinatos de mulheres descritos no romance 2666, considerado a sua melhor obra, já aparece na ficção do autor de Noturno do Chile.
Em “A neve”, Rogelio Estrada, filho de comunistas chilenos, exilado em Moscou, assiste à decomposição do regime soviético. Relaciona-se com a máfia russa por intermédio de Misha Pavlov, gangster da pesada e leitor refinado, numa curiosa e insólita mistura de banditismo e literatura. Rogelio apaixona-se por uma saltadora, amante do chefe. O ato de matá-lo não o livra do submundo, torna-o apenas subordinado a um novo capo.
O narrador de “Outro conto russo”, transformado posteriormente em personagem de 2666, o professor de filosofia Amalfitano, reproduz com um humor negro a história de um soldado espanhol em ação no front russo durante a Segunda Guerra salvo da morte, mas não do sofrimento, de maneira insólita.
Em “William Burns” o protagonista homônimo assassina um sujeito inocente movido pelo medo e pela denúncia das duas mulheres com quem vivia, ambas ameaçadas por um desconhecido.
A estrutura dramática do conto Detetives”, diálogo cínico e absurdo sobre a impossibilidade de se justificar o injustificável, constrói um clima asfixiante em que dois policiais relembram os dias sombrios da ditadura chilena. Autobiográfico no limite da catarse, o texto transfigura a passagem de Bolaño, novamente transformado em Arturo Belano, pelos cárceres de Pinochet, dos quais foi salvo, segundo ele mesmo confessou, pela interferência de dois amigos de infância transformados em agentes da repressão.
A terceira parte reúne quatro histórias protagonizadas por mulheres. “Colegas de cela” traça a trajetória de um homem e de uma mulher vítimas políticas no mesmo período mas em países diferentes: Chile e Espanha. A pequena, morena e bonita Sofía vive à deriva, entregue a amantes voláteis e a uma indefinição constante. Melancólico e pungente, a banalidade de sucessivos desencontros desenha a vida como energia que se perde no vazio.
“Clara” conta a história de uma mulher cujo único ato notável na vida foi a conquista do segundo lugar num concurso de beleza. Depois, tudo cai numa rotina depressiva e embrutecedora, e ela passa a andar em círculos no território sombrio da realidade. O narrador destila toda a sua ferocidade: “Quando a vi, demorei a reconhecê-la. Tinha engordado e seu rosto, apesar da maquiagem, exibia o estrago, mais que do tempo, das frustrações, coisa que me surpreendeu, pois no fundo nunca acreditei que Clara aspirasse a nada. E se você não aspira a nada, com que pode estar frustrado?”.
“Aqui estou eu, Joanna Silvestri, trinta e sete anos, atriz pornô, prostrada na Clínica Os Trapézios, de Nîmes, vendo as tardes passar e ouvindo as histórias de um detetive chileno”, assim começa o relato de decadência “Joana Silvestri”. A personagem narra com muita naturalidade a um interlocutor, do qual sabemos apenas que é chileno e não se considera detetive, experiências da vida amorosa e profissional ambientadas na Califórnia.
As fendas e elipses do texto de Bolaño permitem associá-lo à teoria do iceberg, de Ernest Hemingwat: “Se um escritor de prosa sabe o bastante sobre o assunto do qual está falando, ele pode omitir coisas que sabe e o leitor, se o escritor está escrevendo de forma verdadeira o bastante, sentirá essas coisas com tanta força como se o escritor as tivesse afirmado. A dignidade do movimento de um iceberg existe porque apenas um oitavo dele está acima d’água. Um escritor que omite coisas porque não as conhece apenas cria lugares vazios na sua escrita”.  
“Vida de Anne Moore” conta a história da protagonista desde o nascimento, em 1948, até o seu desaparecimento. A narrativa tece um caminho sem grandeza, expondo com crueza uma vida em que encontros e desencontros não formulam qualquer rumo. Anne Moore, ainda que presa a um caótico deslocamento de parceiros e lugares, sucumbe à banalidade do vazio, desaparece num vácuo existencial.
O labirinto de Bolaño não corresponde à representação geométrica borgeana de uma percepção metafísica, mas desenha uma rede caótica e inextrincável na qual a existência expele a vida como destroços, gestos fraturados da irrealização, O deserto onde todas as personagens se perdem só pode ser atravessado pela escrita como gesto urgente de rasura e resistência. O hiper-realismo em Bolaño impregna as letras do discurso de fisicalidade e tom vitalista, sem nunca abandonar a envenenada estética da palavra. Por isso o século XXI, ao menos em seu início, é cada vez mais Bolaño.


Chamadas Telefônicas,
de Roberto Bolaño.
Tradução de Eduardo Brandão
Editora Companhia das Letras
212 páginas.
R$ 39,00

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