segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Sinais de fumaça





Essa história me foi contada por um velho lápis à beira da morte.

“Há muito tempo atrás, durante uma revolução na escrita, um nobre e presunçoso til apaixonou-se por uma vírgula desconhecida. Obcecado pelas pernas curvas da bailarina da linguagem, o til atrevido rompeu com os melhores amigos da alta sociedade: os acentos grave, agudo e circunflexo, além das aspas, irmãs siamesas. Seu amor por aquela criatura da classe baixa,  que vivia misturada a tipos inferiores, como pontos, travessões, hifens e reticências, transformou-o num pária a exemplo do velho companheiro trema, banido por decreto a exílio eterno.

Apesar de viverem em espaços diferentes, a paixão apagou as distâncias; peles arrepiaram-se, bocas selaram promessas, sonoridades do gozo vazaram rios noturnos. Mas o coração sempre oculta um saco de veneno em um dos ventrículos. A vírgula passou a cobrar do til mais presença em sua vida, queria sentir o fino perfume de suas palavras, a cabeleira em ondas do jovem aristocrata pulsando sobre os seus seios ofegantes. O til, com voz fanhosa e enfadonha,  sempre alegava excesso de trabalho ou problemas na mucosa nasal que quase impediam a respiração.

Alguns meses transcorreram pesados, perdidos, a proximidade fazia água, o til raramente aparecia. Até que, numa esplêndida madrugada de outono, apareceu todo animado na linha onde a vírgula morava. Ao chegar contemplou de queixo caído a cena que o deixou irremediavelmente amargurado: um ponto movia-se como minúsculo demônio por cima da vírgula adorada.”


Um comentário:

  1. A cada visita que faço em seu blog, ternurizo-me pela vontade de aprender... Envolvente o seu conto de hoje, principalmente a quem, como eu, se intromete ao nosso complicado vernáculo!
    Abraço, Célia.

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