quinta-feira, 31 de março de 2011

INVENTO

Não me lembro de quando é esse poema. Provavelmente da década de 90. Espero que agrade a algum leitor.

Adriana Varejão

                           
              José Antônio Cavalcanti



Tensionadas ao infinito

as janelas despencam

e a noite furta lanternas

ao céu.



Noturna procissão

de pássaros de jade

sobrevoa

o mármore da ansiedade.



Correnteza intangível

mergulha o destino

no inevitável.



A manhã é um gesto distante:

um relógio quebrado

no porão de uma igreja.



Um telhado em chamas

retém a chuva;

temporal de perdas

desabando imagens

e granizo.



Nada deterá o rosto

e o seu esforço

em inventar-se,

o grito ao ver-se,

o doer-se.



POLIORAMA

Damien Hirst


          José Antônio Cavalcanti





I


guardou do jornal notícias remotas entre goles de um vinho vagabundo era inverno apesar do sol a noite roía saudades ratazana imóvel em um canto do olhar esse calidoscópio no qual a vida flutua gestos e acontecimentos esse deformador de fragrâncias incapaz de sintaxe por não conectar o visível à lógica de um sentido poço névoa abismo o olhar cegueira ensandecida filtro podre odre vazada moedas falsas nada



II


de muvuca rave micareta balada da apoteótica pulsação imperial do neoliberalismo em suas formas lúdicas mantinha distância festa é a loucura silenciosa o gesto sem coreografia a babalorixá com um charuto na xana inscrição do corpo no livro de registros clandestinos no subterrâneo do shopping-sex fora de anestésica exibição de juventude eterna amor a rugas à escultura temporal antiplástico o humano em seus podres



III


irritava-se com Montale Cecília Borges Ponge concretistas Cruz e Sousa Drummond Bandeira Cabral Murilo Mendes Lorca Rimbaud Baudelaire Laforgue beats já não podia ler o que antes amara a poesia morava em teclas só os circuitos permitiam trânsito de poemas uma forma pós-moderna de contrabando e dilúvio percebia que seus versos eram um cemitério textual a poesia é algo que nunca aconteceu apenas uma possibilidade de acontecimento algo que está por nascer um além da língua morta que falamos



IV


escrita nenhuma o abrigaria nômade de textos pirata de mundos desconhecidos exilara-se em internet quarto floresta cela caverna (o que Batman fazia com túnica platônica?) o pavor desenhava espirais em sua testa suava pleonasmos e versos ruins a falta de palavras murchava as maçãs do rosto os textos não-escritos perdidos inconclusos iam deformando os dedos curvando a coluna o não cumprimento da promessa de poesia apodreceu lentamente a alma 

terça-feira, 29 de março de 2011

CESSOU A CHUVA

René Magritte



















A noite,

em silêncio,

secou a tarde

estendida na rua.


Descerro os olhos

e desenho ausências

na calçada da página.


Em sala sombria,

sem acesso a teu corpo selvagem,

observo a muda passagem de cometas

sem cauda,

sem coroa,

sem brilho.

Deixam um sulco invisível

à sombra de estrelas inclementes.


Dou adeuses às palavras

que emergem atônitas

do centro da página.

Revoltadas, me indagam:

- realidade ou pesadelo?


Invento evasivas

com um pássaro de azul e açúcar

no olhar.

Engesso sentimentos

em clichês de nonsense.

Ah, exímio artesão de coisas mortas!


As palavras zombam do meu estro.

Atiram-me vírgulas e acentos.

Dizem-me pilhérias,

impropérios.


Rancorosas,

roubam-me a caneta

e se escrevem.