1 - Introdução
A crítica
tem sido unânime em
considerar Recordações do escrivão Isaías Caminha um romance
destituído de equilíbrio, opinião corroborada pelo próprio Lima Barreto em
carta a Gonzaga Duque:
um
livro desigual, propositalmente mal feito, brutal, por vezes, mas
sincero sempre. Espero muito nele para escandalizar e desagradar (...)
hás de ver que a tela que manchei tenciona dizer aquilo que os simples
fatos não dizem, segundo o nosso Taine (apud Barbosa, 1981, p. 162).
sincero sempre. Espero muito nele para escandalizar e desagradar (...)
hás de ver que a tela que manchei tenciona dizer aquilo que os simples
fatos não dizem, segundo o nosso Taine (apud Barbosa, 1981, p. 162).
No entanto, a compreensão desse desequilíbrio
deliberado ocorre de modo diverso no autor e na crítica. Aquele, segundo os
seus próprios termos, vê a literatura como a possibilidade de desalienação na formação da consciência, tomando-a claramente não apenas como
complemento ao real, ornamento, constatação de sua lacunosa percepção, mas espaço
de discussão dos principais problemas do tempo e de construção da linguagem capaz de expressá-los. Já a preocupação desta é de outra ordem, exclusivamente
atenta à organicidade da obra literária, posição expressa com clareza na
objeção fundamental levantada por José Veríssimo:
Há
nele, porém, um defeito grave, julgo-o
ao menos, para o qual
chamo a sua atenção, o seu excessivo personalismo, pessoalíssimo, e,
o que é pior, sente demais que o é (apud Barbosa, 1981, p. 179).
chamo a sua atenção, o seu excessivo personalismo, pessoalíssimo, e,
o que é pior, sente demais que o é (apud Barbosa, 1981, p. 179).
O duplo diagnóstico do mal que enfraquece o
livro reduz-se, na verdade, a apenas um: o personalismo, causa dos
desequilíbrios ao longo da obra do autor. A sua tradução literária dá-se sob um
olhar que conforma os objetos à natureza de seus desejos, imprimindo ao mundo
uma força centrípeta, pois os acontecimentos são puxados por uma vontade que
move o olhar sobre o real e conduz o sujeito à impotência ao não conseguir a
plena realização da dupla perspectiva romântica: a certeza de predestinação, de
julgar-se superiormente dotado, e a cobrança de uma estrutura social perfeita.
O percurso do protagonista situa-se no
centro da retina, constituindo-se o olhar em metáfora da apreensão do real. Sua
irrupção no romance Recordações do
escrivão Isaías Caminha surge impregnada com uma luz intensa voltada para a
topologia social onde se fraciona e fratura a humanidade. Em Lima Barreto , como
veremos mais adiante, esse balé classificatório, essa inserção na hierarquia
social, apresenta uma complexidade que salta aos olhos, principalmente por
colocar em discussão o espaço dos sem-lugar, dos excluídos, da margem. Sua obra
padecerá dessa antinomia: é literatura de
fora, porque incorpora pequena parte do universo dos sem-lugar, situando-o
na proximidade de crônica social, ensaio e jornalismo: e é uma literatura de dentro, por existir no
interior de relações linguísticas trabalhadas com fins estéticos; pouco
importam os aspectos factuais, históricos e sociais ao processo narrativo, se não estiverem submetidos ao processo ficcional.
O percurso de Isaías Caminha é,
inicialmente, determinado por um olhar
para cima, voltado para um plano superior que remete à concepção extremamente
idealizada da existência, ingênua o suficiente para acreditar no mérito
individual como moeda de trânsito rumo à ascensão social. Tal olhar corresponde
a um estado pleno, repleto de humanidade, natural (na acepção rousseauniana),
sem a perversão operada pelos mecanismos de cooptação ou rejeição social. Um céu ao alcance do talento é o fio condutor do jovem interiorano esperançoso ao ventre feroz da metrópole. Deslocar-se,
assim, só se justifica, obviamente, pela
crença absoluta na qualidade do movimento que se dá por excesso, por
transbordamento das capacidades individuais, cujo afloramento e a consequente
consciência provocaram a sua expulsão do meio provinciano, onde se tornara um
sem-lugar.
A mudança de locus converte olhar para
cima em olhar para baixo.
Esmagado ao peso da perversa engenharia social urbana, Isaías nega,
gradativamente, a qualidade de sua apreensão crítica ao ganhar um lugar na
redação do jornal onde ocupará as modestas funções de contínuo. O sujeito perde
a consciência de si, transforma-se em objeto, muda o foco de sua visão: se
contempla a realidade, é sob o prisma do menos, da subtração, da falta, espaço
próprio ao recalque e ao rancor. O ponto máximo de sua dominação consiste em ver
o mundo pelos olhos de. Degradado ao máximo, perde a consciência, desconstrói o
universo de referências, pensamentos e ideais, assumindo a leitura feita pela
ordem dominante como algo natural.
Claro está que tal classificação visa
tão-somente a entender o percurso de Isaías Caminha, pois o olhar é obrigado a
conformar-se ao real, ao incessante movimento, ao devir, assumindo toda a sua
complexidade.
O protagonista é capaz de manter certa
margem de independência, mesmo sob dominação, por isso esse olhar para baixo está eivado de
contradições. Quando o diretor do jornal, Ricardo Loberant (trata-se, na
realidade, de Edmundo Bittencourt, dono do jornal “Correio da Manhã”, modelo de
“O Globo” no romance), finalmente passa a enxergá-lo, Isaías Caminha denota uma
arguta recepção, atento à sua anterior inexistência, à sua não visibilidade.
Constata, com tristeza, que a classe dominante é incapaz de enxergar a
humanidade, a sensibilidade e a inteligência dos oprimidos. Aliás, é o olhar
dominante que perverte o universo dos indivíduos em massa, soldando múltiplas
existências no todo uniforme e anódino que envolve termos como
"povo", "multidão", "população" e correlatos. A
classe dominante lê o mundo como a sua casa, o olhar dela é, portanto,
domesticador, tendendo a transformar todos numa abstração amorfa, numa
inarticulação humana. Isaías Caminha não é ninguém. Ninguém o vê. Sua
humanidade não existe, pois dependendo da visão e esta, por sua vez,
necessitando de uma posição social, não pode ser visto.
Incorporado à redação do jornal como um
"igual", Isaías Caminha passa a viver, na parte final da narrativa,
sob o influxo do "intimismo à sombra do poder", categoria lukacsiana
retomada por Carlos Nelson Coutinho (1974, p. 4). Tal conceituação revela o
mecanismo de cooptação dos intelectuais, uma das mais fortes denúncias contidas
no romance. O processo de dominação das inteligências consiste em colocá-las a
serviço do olhar dominante ou, na pior das hipóteses, neutralizá-las com cargos
ou favores. Isso é possível pela presença, ainda seguindo as formulações
arquitetadas no ensaio citado, da "via prussiana" no desenvolvimento
do capitalismo brasileiro, caminho caracterizado pela conciliação com o atraso,
evidentemente representado pela especificidade da formação econômica
brasileira: sistema de exploração colonial, sustentado por um modo de produção
escravista, forma particular do capitalismo como um sistema universal.
Entre as particularidades da nossa formação
destaca-se a figura do agregado. Sua importância reside no lugar que ocupa na
estrutura social, uma posição intermediária entre o elemento servil e o
trabalhador assalariado. Sua existência assinala a presença de uma categoria
sem uma função precisa no interior da organização produtiva. A falta de precisão
implica no engendramento de uma relação de dependência paternalista, capaz de
dar corpo e vida a um contingente de seres divididos em tarefas correlatas:
moleques de recados, capangas, comensais, domésticos, etc., todos, no fundo,
seres deslocados, intrusos, destituídos de um espaço próprio, misto de animal
doméstico, trabalhador de mil e uma utilidades e parente remoto.
Quando é apontada a importância concedida
na obra limabarretiana à figura excêntrica, torna-se necessário examinar a excentricidade
não apenas na sua significação intrinsecamente literária, mas investigar que
tipo de relações sociais expressa. A excentricidade, mais do que um traço de
herói problemático, parece recobrir um universo coletivo. À falta de formas
consistentes e eficazes de reversão da situação em que se encontram, os
excluídos tendem a assinalar uma resistência desordenada e caótica através da
construção de uma diferença que se faz no vazio, visando a quebrar o
ordenamento burguês do mundo no terreno da individualidade.
Tanto o excêntrico quanto o agregado
constituem-se (isso quando não se fundem) em elementos marginais, cuja
lateralidade expõe tensões entre mundos distintos. Isaías Caminha, tão
deslocado quanto Policarpo Quaresma, é o romance do fracasso exemplar da
meritocracia, a narrativa do apagamento de qualquer mudança de rumo. O mito da
ascensão social por meio da arte desmonta-se com a transformação do êxito em
conformismo e abdicação do vigor do caminho original.
2 – A inversão do olhar
Recordações
do escrivão Isaías Caminha pode ser dividido, sem risco de queda em
esquematismos, em duas partes: na primeira, o autor traça o percurso de um
jovem oriundo do interior, disposto a tentar a sorte na metrópole, e o desenho
esboçado é dotado de grande acuidade, mostrando o seu progressivo
entrelaçamento na atmosfera social e urbana; na segunda parte, há um mergulho
no microcosmo de uma redação de jornal, vista como um espelho onde estão
projetadas as imagens dos problemas característicos da estrutura social
brasileira. É justamente na passagem da primeira para a segunda parte que o
autor perde o fio da meada. Não propriamente pelo tom panfletário atribuído à
última parte, mas pela mudança operada no foco narrativo:
Tão logo Isaías
ingressa no jornal,
o romancista altera inteiramente
o seu foco narrativo, praticamente abandonando o personagem e
concentrando-se na apresentação dos bastidores do jornal
(Coutinho, 1974, p. 29).
o seu foco narrativo, praticamente abandonando o personagem e
concentrando-se na apresentação dos bastidores do jornal
(Coutinho, 1974, p. 29).
O fato de ter sido lido por parte
da crítica como um mero roman à clef
muito contribuiu para um certo descaso, como se a única preocupação do autor
fosse escandalizar a sociedade.
O jornalismo, aliás, não serviu somente de tema a uma de suas obras:
Nos romances de Lima
Barreto, há, sem dúvida, muito de crônica:
ambientes, cenas quotidianas, tipos de café, de jornal, da vida
burocrática, às vezes só mencionados ou esboçados, naquela linguagem
fluente e desambiciosa que se sói atribuir ao gênero (Bosi, 1969, p. 95).
ambientes, cenas quotidianas, tipos de café, de jornal, da vida
burocrática, às vezes só mencionados ou esboçados, naquela linguagem
fluente e desambiciosa que se sói atribuir ao gênero (Bosi, 1969, p. 95).
Seguindo a
estrutura narrativa da obra, abordaremos as duas partes separadamente.
2.1 – Um
olhar sobre a cidade
O primeiro capítulo do romance
apresenta uma visão sobre o saber totalmente idealista, chegando a confundir-se
com essência divina: “– Sabendo, ficávamos de alguma maneira sagrados,
deificados...” (p. 35).
Essa visão supervalorizadora do conhecimento aparece como a
possibilidade, de outro lado, de redenção do protagonista, estigmatizado pela
pobreza e por ser mulato: “Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do
meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo de
minha cor” (p. 41).
O conhecimento é concebido sob a forma do estereótipo vigente à época: a
figura do doutor, do bacharel, símbolo maior de uma cultura eminentemente
ornamental e decorativa, representada através de detalhes meramente protocolares:
diplomas, anéis, sobrecasacas e cartolas. Inicia-se, portanto, a narrativa sob
a égide da paródia, voltada diretamente contra um dos desmazelos brasileiros, o
predomínio da verbosidade, do aparato verbal, do monumentalismo enciclopédico
sempre como uma das formas pomposas de exibição do poder. Guarda a introdução
da narrativa elementos que já apontam para a determinação dos próximos passos.
A decepção advinda do abismo entre o sonho e a realidade começa logo na
viagem, por ocasião de uma parada. Isaías Caminha toma contacto com a
discriminação racial, apesar de ainda ser incapaz de perceber a origem do
tratamento desigual. Sofre duplamente: pela discriminação e pela angústia em
tentar desvendar a origem e o significado desse ato. Nessa passagem fica
patente o contraste entre o temperamento hipersensível do protagonista, suas
ambições e a mesquinhez do mundo. De um lado, um “rapazola alourado”,
prontamente atendido; de outro, um mulato, desprezado, apesar de todos os seus
predicados: “eu sentia que a minha fisionomia era animada pelos meus olhos
castanhos, que brilhavam doces e ternos nas arcadas superciliares profundas,
traço de sagacidade que herdei de meu pai” (p. 45).
Se o seu olhar guarda doçura e sagacidade, seu primeiro companheiro no novo
ambiente – o penumbroso Laje da Silva (Paschoal Segreto, empresário famoso no
começo do século XX) – encontra resistências, pois: “o seu olhar cauteloso, perscrutador
e sagaz, junto ao seu ar bonacheirão e simplório, provocavam-me desencontrados
sentimentos de confiança e desconfiança” (p. 48).
Ainda é pelo olhar que o narrador apresenta a figura de Raul Gusmão:
“Falava e não nos olhava quase; errava os olhos – os olhos pequeninos dentro de
umas órbitas quase circulares a lembrar vagamente uma raça qualquer de suíno”
(p. 50).
Os olhos, aliás, são o “traço físico, por assim dizer obsedante” (Proença,
1976, 64) em Lima Barreto.
Através deles o narrador expressa toda a gama de sentimentos,
alinhando-se à tradicional interpretação que os considera como espelhos, fiéis
reprodutores da alma, entendimento que se coaduna perfeitamente com a
preocupação do autor sobre a sinceridade, colocada num lugar de honra entre as
virtudes.
Ainda sobre a figura de Raul Gusmão (nome cifrado de João do Rio) note-se
o uso de um dos recursos expressivos de Lima Barreto na composição de
personagens construídos de modo grotesco: a deformação mediante a animalização
dos seres, processo nitidamente expressionista. Assim, o jornalista é visto
como “uma desencontrada mistura de porco e de símio adiantado” (p. 12).
Não é apenas sobre as criaturas que o narrador volta-se demolidoramente.
As instituições revelam-se também como destituídas de profundidade e interesse
pelos problemas nacionais. A desconstrução do universo político faz-se desde a
demonstração da irracionalidade de um tipo popular cooptado pelos poderosos – o
Chico Nove-Dedos, capanga do Senador Carvalho -, a exemplos dos numerosos
capoeiras envolvidos num sistema que os protegia e perseguia, simultaneamente,
até a exposição de uma galeria de políticos oportunistas e vazios. As palavras
com as quais descreve uma sessão na Câmara dos Deputados são magistrais:
Parecia que as palavras de
Fagot lhe morriam nos lábios: movia
a boca e gesticulava como um doido furioso. Os colegas desapegados
da sua eloquência dividiam-se em grupos. À esquerda, lá ao longe,
quase na minha frente, alguns viam cartões postais; um outro, sob os
meus pés, isolado, no burburinho, escrevia febrilmente, erguendo,
de quando em quando, a caneta para pensar; uma roda de três,
à esquerda e ao fundo, conversava sorrindo: ao fundo, ainda, mas um
pouco à direita, um deputado gordo, com o calor que com o
correr do dia se fizera forte, roncava perceptivelmente. Fagot
falou cerca de meia hora; e, quando deixou a tribuna, o
a boca e gesticulava como um doido furioso. Os colegas desapegados
da sua eloquência dividiam-se em grupos. À esquerda, lá ao longe,
quase na minha frente, alguns viam cartões postais; um outro, sob os
meus pés, isolado, no burburinho, escrevia febrilmente, erguendo,
de quando em quando, a caneta para pensar; uma roda de três,
à esquerda e ao fundo, conversava sorrindo: ao fundo, ainda, mas um
pouco à direita, um deputado gordo, com o calor que com o
correr do dia se fizera forte, roncava perceptivelmente. Fagot
falou cerca de meia hora; e, quando deixou a tribuna, o
presidente já era um terceiro deputado, um velho com
pince-nez de aros de ouro (p. 13).
pince-nez de aros de ouro (p. 13).
Após o discurso de Fagot (Pandiá Calógeras) soa como de um cômico
grotesco a entrada de Isaías nas dependências da Câmara com a cabeça cheia de
nomes de reis assírios, de faraós, de filósofos gregos, de generais romanos, de
romancistas e grandes personalidades de nossa história.
À imprensa e à Câmara dos Deputados,
junta-se outra instituição: o exército, diante do qual Lima Barreto sempre
adotou uma postura crítica em função da crescente influência que esta
instituição veio a desfrutar na República. Ela formulou e impôs uma concepção
de Positivismo que possuía um caráter seletivo, elitista, contra a qual Lima
Barreto veio a se chocarr, apesar de seu namoro com a corrente de Auguste
Comte. O bonapartismo positivista republicano afasta profundamente o exército
do autor de Policarpo Quaresma, alimentando ainda mais o seu antimilitarismo. A
passagem de um desfile militar serve para a formulação de discurso revelador da
existência de dois Brasis:
Os oficiais
muito cheios de si,
arrogantes, apurando a sua elegância
militar; e as praças bambas, moles e trôpegas arrastando o passo
sem amor, sem convicção, indiferentemente, passivamente, tendo as
carabinas mortíferas com as baionetas caladas, sobre os ombros,
militar; e as praças bambas, moles e trôpegas arrastando o passo
sem amor, sem convicção, indiferentemente, passivamente, tendo as
carabinas mortíferas com as baionetas caladas, sobre os ombros,
como um instrumento de
castigo. Os oficiais pareceram-me
de
um país e as praças de outro (p. 14).
um país e as praças de outro (p. 14).
O narrador inicia o quarto capítulo
dirigindo-se diretamente aos leitores, como se quisesse colocá-los no interior
dos meandros intestinos dos bastidores políticos com suas manobras, tráfico de poder e jogo de influências.
Frustrado em suas pretensões perante o
deputado Castro, Isaías passa pela maior humilhação ao ser preso sob a acusação
de furto, em que se mesclam preconceito de classe e discriminação racial,
devido à sua condição de mulato pobre. A cena de seu interrogatório serve para
revelar o comportamento do aparelho policial diante da questão racial e,
também, da questão social, pois o narrador acrescenta à ação do protagonista
duas outras, de natureza diversa: uma mostra um caso policial envolvendo duas
pessoas do povo; a outra expõe a subordinação da polícia à classe dominante,
num jogo de encobertamento e cumplicidade entre ela, o senador Carvalho e o
marginal Nove-dedos.
Em sua crítica à sociedade, Isaías
volta-se ainda contra a concepção literária vigente, deixando claro que o
importante é a literatura funcionar como meio de expressão das ideias
relevantes ao progresso social. Daí sua ojeriza aos literatos:
São em geral de uma lastimável limitação de ideias, cheios de
fórmulas, de receitas, só capazes de colher fatos detalhados e
impotentes para generalizar, curvados aos fortes e às ideias
vencedoras, e antigas, adstritos a um infantil fetichismo do estilo
e guiados por conceitos obsoletos e um pueril e errôneo critério
de beleza (p. 15).
fórmulas, de receitas, só capazes de colher fatos detalhados e
impotentes para generalizar, curvados aos fortes e às ideias
vencedoras, e antigas, adstritos a um infantil fetichismo do estilo
e guiados por conceitos obsoletos e um pueril e errôneo critério
de beleza (p. 15).
Nessas palavras Lima Barreto revela a
consciência do seu insulamento, de sua especificidade avessa à norma reinante.
Isaías Caminha sem emprego, longe de sua
família e da cidade natal, encontra-se só.
O encontro com Abelardo Leiva (Luiz
Edmundo, autor de O Rio de Janeiro de meu
tempo) e com Agostinho Marques (na
verdade, o advogado Pedro Ferreira do Serrado) parece encaminhar a ação
romanesca a um desdobramento progressivo, ao introduzir uma discussão de
natureza social mais ampla, confrontando formulações positivistas com ideias
anarquistas e socialistas. No entanto, opta por um estudo de caso, anunciado na
acerba crítica de Leiva à imprensa.
É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências
podem colher-lhe a força e a essencial ausência da mais elementar
moralidade, dos mais rudimentares sentimentos de justiça e honestidade!
São grandes empresas, propriedades de venturosos donos, destinadas
podem colher-lhe a força e a essencial ausência da mais elementar
moralidade, dos mais rudimentares sentimentos de justiça e honestidade!
São grandes empresas, propriedades de venturosos donos, destinadas
a lhes dar o domínio sobre as massas,
em cuja linguagem falam, e a cuja
inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os
caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus atrozes
lucros burgueses... (p. 17).
inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os
caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus atrozes
lucros burgueses... (p. 17).
2.2 – Um olhar sobre o microcosmo
A segunda parte do romance
processa-se, praticamente no interior do jornal O Globo, onde, graças à
intervenção de Ivã Gregoróvitch Rostóloff (Mario Cattaruzza) , personagem que
parece saída das páginas de Doistóievski, consegue empregar-se como contínuo. A
redução do universo narrativo, sua concentração num ambiente menor, o abandono
ao ritmo progressivo na constituição do protagonista, o voltar-se do foco
narrativo para uma constelação de personagens formadora do universo do jornal
representa a acentuação de traços expressionistas, deformadoras e caricaturais
da narrativa.
Principia por uma descrição dos
componentes da redação. Ricardo Loberant, o diretor do jornal, é apresentado
como homem “sem talento, sem pertinácia e paciência” para conseguir afirmar-se
por mérito próprio, razão pela qual recorre à paixão para conseguir seus
objetivos. O primado da vontade acentua os contornos de seu paternalismo,
expressão das relações sociais caracterizadoras da “via prussiana” ou, seguindo
outra vertente ideológica menos explorado, de um “estado patrimonial”, conforme
a conceituação desenvolvida por Sérgio Buarque de Holanda. Se o diretor do
jornal representa os interesses privados, particulares, o seu relacionamento
com o poder público faz-se mediante a diluição completa da fronteira entre o
público e o privado, transformando-se aquela numa estrutura apropriada pela
classe hegemônica. No seio de tanta desonestidade e falta de nitidez pode-se
entender a filosofia do jornal: “era só fechar os olhos e estender a mão” (p.
18).
Chama a atenção na caracterização da
personagem a total ausência de qualquer linha de pensamento. Trata-se de um “viveur” típico, enfronhado num jornal
visto apenas como mercadoria, objeto capaz de produzir ricos dividendos.
Aires d’Ávila, pseudônimo de Pacheco
Rabelo (Pedro Leão Veloso Filho, que usava o pseudônimo de Gil Vidal), é o
redator-chefe, o braço direito do diretor, descrito com traços caricaturais:
“Havia na sua marcha um grande esforço de tração e um monóculo petulante na
face imóvel não lhe diminuía o peso da figura” (p.19).
Leporace (Vicente Piragibe) torna-se
sumidade em literatura graças não a um profundo conhecimento do assunto, mas
devido à sua natureza respeitosa e serviçal diante do diretor.
Raul Gusmão, Gregoróvitch e Oliveira
(Pedro da Costa Rego), este último tido como “parvo e besta”, são introduzidos
na primeira parte da narrativa.
Extremamente sugestiva é a caracterização
de Floc (trata-se de João Itiberê da Cunha, o JIC):
entrou o fino, o elegante, o diplomático, o macio Frederico
Lourenço do Couto, com a sua linda barba perfumada e o seu grande
queixo erguido e atirado para adiante como um aríete encouraçado.
Vinha todo perfumado, de olhar lustroso, desprendendo essências,
com o peitinho da camisa a brilhar imaculadamente e um grande botão
coral ao centro, rodeado de brilhantes (p. 20).
Lourenço do Couto, com a sua linda barba perfumada e o seu grande
queixo erguido e atirado para adiante como um aríete encouraçado.
Vinha todo perfumado, de olhar lustroso, desprendendo essências,
com o peitinho da camisa a brilhar imaculadamente e um grande botão
coral ao centro, rodeado de brilhantes (p. 20).
Com tantos predicados, Floc serve para o autor implícito expor ao ridículo
determinado
tipo de
crítica literária em voga nas décadas iniciais do século passado:
A sua crítica não obedecia a nenhum sistema; não seguia escola
alguma. As suas regras estéticas eram as suas relações com o
autor, as recomendações recebidas, os títulos universitários, o nascimento e
a condição social. Elogiava nefelibatas, se eram de sua amizade,
alguma. As suas regras estéticas eram as suas relações com o
autor, as recomendações recebidas, os títulos universitários, o nascimento e
a condição social. Elogiava nefelibatas, se eram de sua amizade,
se eram ‘limpos’;
detratava se não eram. Tinha, além, dois princípios:
a aristocracia da arte e a fulminação dos nulos. Entendia, a seu modo
aristocracia da arte, isto é, arte feita pelos aristocratas como ele,
cujo pai tivera na primeira mocidade uma taverna em Barra Mansa (p. 21).
a aristocracia da arte e a fulminação dos nulos. Entendia, a seu modo
aristocracia da arte, isto é, arte feita pelos aristocratas como ele,
cujo pai tivera na primeira mocidade uma taverna em Barra Mansa (p. 21).
Também o sistema literário sofre as
consequências do desenvolvimento através da “via prussiana”. Falta-lhe
organicidade e continuidade. As obras apresentam-se desligadas dos problemas
contemporâneos. A literatura torna-se um vazio, pasto de aventureiros,
colunistas sociais e damas da sociedade, um amável e doce sorriso. O
paternalismo preside as relações entre a
crítica e o artista, corrompendo o que há de melhor. O crítico é o olhar
dominador, tradução cultural do poder, por isso elide o negro e o mulato do
plano social; quando incorpora um autor que consegue furar a teia de silêncio
(um Machado, por exemplo) o faz com uma preocupação (totalmente ausente nos
demais casos) obsessiva no “literário”: isto é, incorpora o autor, não a sua
cor. Nessa crítica não, além disso, nenhum fundamento teórico.
Além dessas personagens, há uma galeria de
tipos minúsculos: Lobo (o gramático Cândido Lago), o consultor gramatical;
Losque (provavelmente Gastão Bousquet) e Lara (para alguns, Bastos Tigres; para
outros, Antônio Sales), humoristas; Meneses, o único que estudava; Oliveira,
admirador extasiado de Ricardo Loberant; Rolim (Francisco Souto), analfabeto,
mas lindo como narciso; Costa(?); Barros(?), agente de anúncios; Adelermo
Caxias (Viriato Correia), um intelectual amaciado pela pressão do poder. Lugar
destacado ocupa Gregoróvitch:
era da artilharia.
Com o seu estilo desconjuntado e a sua violência
injuriosa, abria brechas nas linhas adversárias e dizimava-as de longe.
Estrangeiro, nada sabendo da nossa história, nem pelo estudo nem a
sentindo pelo sangue, a sua crítica e o seu ataque tinham uma violência
injuriosa, abria brechas nas linhas adversárias e dizimava-as de longe.
Estrangeiro, nada sabendo da nossa história, nem pelo estudo nem a
sentindo pelo sangue, a sua crítica e o seu ataque tinham uma violência
desmedida (p. 22)
Completa o quadro Alberto Pranzini (Giovani
Fogliani), o gerente, figura lateral, ocupado exclusivamente com os lucros.
Ao pequeno mundo do jornal acrescenta-se a
figura singular de Veiga Filho, “o
grande romancista de luxuoso vocabulário”, paródia a Coelho Neto, a quem não
perdoa a chinesice
literária.
A crítica à literatura dominante: o leve e
adocicado maneirismo social de Floc; o intenso verbalismo de Coelho Neto; e a
literatura enquanto expressão do sorriso da sociedade, acrescenta-se a crítica
à tendência predominante na linguagem da época, o exagerado apego
o um falso
purismo gramatical, entrevisto nas palavras de Lobo, o fiscal da língua:
- Brasileiro, doutor!
falou mansamente o gramático. Isto que
se
fala aqui não é língua, não é nada: é um vazadouro de imundícies.
Se Frei Luís de Souza ressuscitasse, não reconheceria a sua bela
língua nessa amálgama, nessa mistura diabólica de galicismos,
africanismos, indianismos, anglicismos, cacofonias, hiatos, colisões...
Um inferno! Ah, doutor! Não se esqueça disto: os romanos
desapareceram, mas a sua língua é estudada (p. 23).
fala aqui não é língua, não é nada: é um vazadouro de imundícies.
Se Frei Luís de Souza ressuscitasse, não reconheceria a sua bela
língua nessa amálgama, nessa mistura diabólica de galicismos,
africanismos, indianismos, anglicismos, cacofonias, hiatos, colisões...
Um inferno! Ah, doutor! Não se esqueça disto: os romanos
desapareceram, mas a sua língua é estudada (p. 23).
Uma vez introduzido no microcosmo
jornalístico, Isaías passa a conformar-se em consonância com o ambiente,
assimilando as qualidades do meio onde exerce a sua atividade. Testemunha a
manipulação da insatisfação popular através de uma campanha dirigida, no fundo,
por mesquinhos interesses pessoais. Presencia a morte de Floc, um suicídio por
impotência. A morte do crítico significa a sua ascensão no jornal. Ela o
aproxima do diretor, pego em flagrante num ambiente pouco recomendável. Essa
aproximação equivale ao apagamento completo de seu olhar, a sua absorção pela
lógica do sistema diante do qual tivera, até então, uma consciência crítica,
apesar das modestas funções subalternas. O olhar do diretor do jornal e o de
Isaías não se cruzam, são imiscíveis; um acaba por deslocar o outro,
apagando-o. Não é necessário dizer qual.
3 – Conclusão
Preso à teia do poder, Isaías Caminha
desfaz-se de seus projetos pessoais. No entanto, o processo de cooptação não é
linear e prontamente resolvido. A noção de superioridade conserva-se, apesar de
tudo, juntamente com um idealismo enfraquecido ao extremo.
Enquanto jornalista assume o império da
língua, exemplarmente vislumbrado por Barthes: “Mas a língua, como desempenho
de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente:
fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (Barthes,
s/d, p. 14).
Torna-se, portanto, uma das vozes do poder:
“...por toda parte, vozes ‘autorizadas’, que se autorizam a fazer ouvir o
discurso de todo poder: o discurso da arrogância” (Barthes, s/d, p. 11).
De sua autonomia, de sua posição fora do
sistema de dominação, converte-se em membro ativo, pois o poder dissemina-se
por toda parte: “...o poder ( a libido dominandi)
aí está, emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um
lugar fora do poder” (Barthes, s/d, p. 10).
O discurso de
Isaías Caminha é uma caligrafia em ruínas, o percurso da deserção e do
amesquinhamento: discurso de perda e supressão da individualidade. No entanto,
nos fragmentos de sua individualidade expõe as vísceras de seus sonhos, isto é,
aponta para uma outra possibilidade de encenação, um novo deslocamento de signos (menos policialescos e
pernósticos), liberados de catedralescos compêndios de raridades léxicas e de uma estilística da
futilidade. Do interdito, do lado maldito, da zona de penumbra da cidade a ardência instala no centro do olhar a lateralidade perigosa e subversiva dos fora de cena.
Rio de Janeiro, 1990.
Rio de Janeiro, 1990.
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