Iberê Camargo |
José Antônio Cavalcanti
Não, isso não vai ficar assim. Ele vai ver só. Babaca! Frouxo! Na cama que é bom mesmo, não consegue dar conta do recado. Sempre com sono, cansado ou bêbado como um porco. Rola as banhas prum lado e pro outro e principia a roncar forte e animalesco. Fim de semana inventa mil desculpas: é uma ida a São Paulo, um batizado lá em Piabetá, um casamento em Vila Rosali. Está sempre me evitando, fugindo, distante. Ah, mas ele me paga, juro por tudo que me é sagrado que esse banana vai se arrepender... Acho que está enlouquecendo. Só pode ser isso. Ontem o maluco investiu possesso contra mim, dando murros e pontapés, gritando, quebrando as coisas... Covardão! Eu queria apenas brincar de ilusão – tonta que sou. Hoje dormir com ele num mesmo leito é um ato de sacrifício. Não aturo mais o amontoado de adiposidades gemendo e babando sobre mim, sentir seu hálito de cachaça e fracasso. Difícil enxergar um homem por trás daqueles trapos. Impotente, gilete! Já não gozamos, sofremos o prazer irrealizado, e a vida... Que merda! Logo no dia do aniversário da Lena. Preciso disfarçar essa marca roxa no rosto. O estúpido rasgou até o vestido que me presenteou para que fosse estreado na festinha. Eu preciso ir, porém, assim, acho que não vou agradar muito. A Lena é tão boazinha. O marido dela é que é bacana. Não é igual a esse paspalho que aperreia a minha vida. O sem-vergonha outro dia telefonou pra mim. Gostoso. Já o senti, no hall do elevador, me comendo com os olhos. Fiquei meio constrangida porque a Lena estava falando comigo e senti um alarme no olhar dela, mas bem que fiquei satisfeita. Onde está o outro vestido?... Não, esse é horrível. Já desfilou por todas as festas nos últimos dois anos. Acho melhor transar um ar esportivo. Assim, óculos, meias berrantes, bermuda... Não sei... Hum... O marido da Lena ganha muito bem; além de motorizado, não é nenhum unha-de-fome igual ao besta do Arnaldo. A Lena nunca anda reclamando. Filho da puta do Arnaldo: me bater ainda vai, mas rasgar o meu melhor vestido. Se pelo menos não tivesse ficado a marca. Nas coxas, tudo bem, ninguém vê, mas o hematoma aqui no olho é fogo. Se o marido da Lena visse costas e coxas ostentando sinais de pancadas, o que pensaria de mim? Preciso disfarçar. Espero que o Arnaldo hoje não dê a louca de chegar mais cedo. Ele é meio maníaco. Acho que todo funcionário público chefe de seção é meio doido. A Lena é uma pessoa tão agradável. Só é muito sacana. Como é que ela descobriu que a Solange adora mulheres? Mas a Solange, logo ela... tão quietinha. Que absurdo! A Lena perguntou se eu topava fazer uma experiência com ela e a Solange. Que idéia! Fiquei sem graça, mas ela acha que só tem coragem se formos juntas. Hoje, na festa, digo sim. Puxa! Estou ficando muito liberada. Acho que estou me atrasando. Esse hematoma desgraçado. Arnaldo é um grosso. Trata as mulheres como objetos. Vai ver me confunde com os arquivos, cartões de ponto, máquinas e carimbos da sua repartição. Homem é assim mesmo: roupa lavada, passada, comidinha no tempero exato, uma babá pros filhos, uma cadelinha pra cama – eis a esposa modelo. Arnaldo é um merda. O marido da Lena não. É, nem todos os homens são iguais. O marido da Lena tem o maior tesão por mim. Preciso ir bem charmosa. Tenho que fazer presença. Ah! essa coisa asquerosa enfeando o meu rosto. Arnaldo é um grosso. A Márcia é que é esperta. Outro dia me deu um sermão: não sei aproveitar a vida, tenho só vinte e oito anos, meu corpo é joia, sou muito medrosa. O marido da Lena tem um monza cinza metálico e trabalha numa gravadora. Puxa! deve conhecer muitos artistas. Desconfio que o Arnaldo está brocha. Pronto: agora só falta encobrir o ferimento. Arnaldo é mesmo um grosso. Não sei como ainda vivemos juntos. Oito anos de hiprocrisia e conveniências... oito anos... Foi na Igreja de Santa Margarida, meu velho sonho. Que merda! O Arnaldo tem um relacionamento tão estranho com o Ângelo. São tão ligadinhos que dá até para desconfiar. Eu, hein, veado! Ele me paga! Será que esqueci a chave na gaveta da cômoda? Tenho que dar um jeitinho de marcar um encontro com o marido da Lena. Ele é tão gostoso. A Lena é tão boazinha. Arnaldo é um animal... Eu só queria acreditar que ainda estávamos vivos... Ih! Já são dez e meia.
Ótimo, Zé! Não sei o que pensar do Arnaldo!
ResponderExcluirValeu, Arquimimo.
ResponderExcluirMuito bom, parabéns. Estarei de olho...
ResponderExcluirUm abraço.
Oi José,
ResponderExcluircheguei e adorei o conto.
Esse Arnaldo é um FDP, ou será sua esposa? Tadinha da Lena boazinha, tem um marido FDP também ??
Muito bom !!
Parabéns !!
bjs
Agradeço o convite para visitar seu blog e constato que seus textos apresentam inúmeras qualidades literárias. Neste caso, o realismo correu solto! Pena ser o conto tão verossímel!! Afinal, nosso cotidiano está cheio de Arnaldos, de Lenas, de mulheres desgostosas, de maridos insatisfeitos... o que às vezes nos faz perder a esperança no ser humano.
ResponderExcluirParabéns!!
Boa tarde, irmão.
ResponderExcluirUm texto de primeira: Seco e sem rodeios. Muito bom.
Aqui na terra das mangueiras está chovendo à beça mas se estiver à fim, tem um espaço te esperando no www.bigodedomeutio.blogspot.com.
Pode publicar com a gente quando quiser, é só me mandar material pelo e-mail.
Abraços.
A pesar de que la traducción no resulta muy clara y se pierden muchos detalles, me ha encantado leer tu relato, rebosa un existencialismo en el mas puro estilo Bukowskiano. Muestras una gran calidad narrativa.
ResponderExcluirMi abrazo literario.
Anaís
Deu para entrar na cabeça da personagem... adorei o texto, magnifica criação. Cheguei aquui pelo RT da @Gisellezamboni, linda essa guria, bjsss no coração.
ResponderExcluirAdorei o conto! Adoro contos, vou começar a ler eu blog com mais regularidade. Também vou segui-lo. Fica à vontade de seguires o meu também. Parabéns. Um abraço.
ResponderExcluirUm hematoma: que poder ele tem - expos vários personagens presentes em nosso cotidiano. Adorei! Um abraço.
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