sábado, 12 de fevereiro de 2011

HEMATOMA

Iberê Camargo


José Antônio Cavalcanti  


Não, isso não vai ficar assim. Ele vai ver só.  Babaca!  Frouxo!  Na cama que é bom mesmo, não consegue dar conta do recado. Sempre com sono, cansado ou bêbado como um porco. Rola as banhas prum lado e pro outro e principia a roncar forte e animalesco. Fim de semana inventa mil desculpas: é uma ida a São Paulo, um batizado lá em Piabetá, um  casamento em Vila Rosali. Está sempre me evitando, fugindo, distante. Ah,  mas  ele  me  paga, juro por tudo que me é sagrado que esse banana vai se arrepender...  Acho  que  está  enlouquecendo.  Só pode ser isso. Ontem o maluco investiu possesso contra mim,  dando  murros e pontapés, gritando,  quebrando as coisas...  Covardão!  Eu queria apenas brincar de  ilusão – tonta que sou.  Hoje dormir com ele num mesmo leito é um ato de sacrifício.  Não  aturo mais o amontoado de adiposidades gemendo e babando sobre mim,  sentir seu hálito de  cachaça e fracasso. Difícil enxergar um homem por trás daqueles trapos. Impotente, gilete!  Já não gozamos, sofremos o prazer irrealizado, e a vida...  Que merda!  Logo no dia do aniversário da Lena. Preciso disfarçar essa marca roxa no rosto.  O estúpido  rasgou até o  vestido que me presenteou para que fosse estreado na festinha.  Eu preciso ir,  porém, assim, acho que não vou agradar muito. A Lena é tão boazinha. O marido dela é que é bacana. Não é igual a esse  paspalho  que  aperreia a minha  vida.  O  sem-vergonha  outro dia telefonou pra mim.  Gostoso. Já o senti, no hall do elevador, me comendo com os olhos. Fiquei meio constrangida porque a Lena estava falando comigo e senti um alarme no olhar dela,  mas bem que fiquei satisfeita. Onde está o outro vestido?...  Não,  esse é horrível.  Já desfilou por todas as festas  nos  últimos dois anos. Acho melhor transar um ar esportivo. Assim,  óculos,  meias berrantes,  bermuda...  Não  sei...  Hum...  O marido  da  Lena ganha muito bem;  além de motorizado,  não é  nenhum unha-de-fome igual ao besta do Arnaldo. A Lena nunca anda reclamando.  Filho da puta do Arnaldo: me bater ainda vai,  mas rasgar o meu melhor vestido.  Se pelo menos não  tivesse ficado a marca. Nas coxas, tudo bem, ninguém vê, mas o hematoma aqui no olho é fogo. Se o marido da Lena visse costas e coxas ostentando  sinais  de  pancadas,  o  que  pensaria  de mim? Preciso disfarçar. Espero que o Arnaldo hoje não dê a louca de chegar mais cedo. Ele é meio maníaco. Acho que todo funcionário público chefe de seção é meio doido. A Lena é uma pessoa tão agradável. Só é muito sacana. Como é que ela descobriu que a Solange adora mulheres?  Mas a Solange, logo ela...  tão quietinha. Que absurdo!  A Lena  perguntou se eu topava fazer uma experiência com ela e a Solange. Que idéia!  Fiquei sem graça, mas ela acha que só tem coragem se formos juntas. Hoje,  na festa,  digo sim.  Puxa!  Estou  ficando muito liberada.  Acho que estou me atrasando.  Esse hematoma desgraçado.  Arnaldo  é  um grosso. Trata as mulheres como objetos.  Vai ver me confunde com os arquivos,  cartões  de ponto, máquinas e carimbos da sua repartição. Homem é assim mesmo:  roupa lavada,  passada, comidinha no tempero exato, uma babá pros filhos, uma cadelinha pra cama  –  eis  a esposa modelo.  Arnaldo é um merda.  O marido da Lena não.  É, nem todos os homens são iguais. O marido da Lena tem o maior tesão por mim.  Preciso ir bem charmosa.  Tenho que fazer presença.  Ah!  essa coisa asquerosa enfeando o meu rosto.  Arnaldo é um grosso.  A Márcia é que é esperta.  Outro dia me deu um sermão:  não sei  aproveitar a vida,  tenho  só vinte e oito anos,  meu corpo é joia,  sou muito medrosa.  O marido da Lena tem um monza cinza metálico e trabalha numa gravadora. Puxa!  deve conhecer muitos artistas.  Desconfio que o Arnaldo está brocha.  Pronto:  agora só  falta encobrir o ferimento.  Arnaldo é mesmo um grosso. Não sei como ainda vivemos juntos.  Oito anos de hiprocrisia e conveniências... oito anos...  Foi na  Igreja de Santa Margarida,  meu velho sonho.  Que  merda!  O Arnaldo tem um relacionamento tão estranho com o Ângelo. São tão ligadinhos que dá até para desconfiar. Eu, hein, veado! Ele me paga! Será que esqueci a chave na gaveta da cômoda?  Tenho que dar um jeitinho de marcar um encontro com o marido da Lena. Ele é tão gostoso. A Lena é tão boazinha.  Arnaldo é um animal...  Eu só queria  acreditar  que  ainda  estávamos vivos...  Ih!  Já são dez e meia.

10 comentários:

  1. Ótimo, Zé! Não sei o que pensar do Arnaldo!

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  2. Oi José,
    cheguei e adorei o conto.
    Esse Arnaldo é um FDP, ou será sua esposa? Tadinha da Lena boazinha, tem um marido FDP também ??

    Muito bom !!

    Parabéns !!

    bjs

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  3. Agradeço o convite para visitar seu blog e constato que seus textos apresentam inúmeras qualidades literárias. Neste caso, o realismo correu solto! Pena ser o conto tão verossímel!! Afinal, nosso cotidiano está cheio de Arnaldos, de Lenas, de mulheres desgostosas, de maridos insatisfeitos... o que às vezes nos faz perder a esperança no ser humano.
    Parabéns!!

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  4. Boa tarde, irmão.

    Um texto de primeira: Seco e sem rodeios. Muito bom.
    Aqui na terra das mangueiras está chovendo à beça mas se estiver à fim, tem um espaço te esperando no www.bigodedomeutio.blogspot.com.

    Pode publicar com a gente quando quiser, é só me mandar material pelo e-mail.

    Abraços.

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  5. A pesar de que la traducción no resulta muy clara y se pierden muchos detalles, me ha encantado leer tu relato, rebosa un existencialismo en el mas puro estilo Bukowskiano. Muestras una gran calidad narrativa.
    Mi abrazo literario.
    Anaís

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  6. Deu para entrar na cabeça da personagem... adorei o texto, magnifica criação. Cheguei aquui pelo RT da @Gisellezamboni, linda essa guria, bjsss no coração.

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  7. Adorei o conto! Adoro contos, vou começar a ler eu blog com mais regularidade. Também vou segui-lo. Fica à vontade de seguires o meu também. Parabéns. Um abraço.

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  8. Um hematoma: que poder ele tem - expos vários personagens presentes em nosso cotidiano. Adorei! Um abraço.

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