quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O craque

Ilustração de GILMAR FRAGA



      José Antônio Cavalcanti


Até que eu estava jogando bem, já havia cabeceado uma bola na trave e obrigado o goleiro a realizar duas defesas magistrais. Passe de calcanhar, de letra, trivela, finta, drible de corpo: um repertório luxuoso. Fui considerado o melhor jogador durante os primeiros quarenta e cinco minutos. Alguns, mais generosos, atribuíam a resistência do outro time à truculência da zaga.

O zero a zero do primeiro tempo fora injusto para o futebol apresentado pela nossa equipe. Tínhamos de aproveitar os quinze minutos finais da partida para assegurar a nossa vitória, já que na etapa final o adversário voltara bem melhor. Foi aí que o Peninha fez um senhor lançamento. Ganhei do cabeça de área deles na corrida e driblei o quarto-zagueiro, deixando-o caído no gramado. O goleiro já estava vencido. Era só dar um toque para o canto direito. A bola já ia beijar as redes adversárias. Quando eu preparava a canhota, no entanto, apareceu um cara encostado na trave direita. Na mão do homem, como um mortal apito de um árbitro seguidor de estranhos regulamentos, uma pistola sete meia cinco inverteu a jogada. A perna tremeu. A bola passou zunindo por cima do travessão. O desgraçado, ainda com o corpanzil encostado na trave direita, guardou a arma na cintura e correu para o bolo formado por repórteres e fotógrafos.

A revolta da torcida desabou sobre a minha cabeça. O Maracanã inteiro passou a me vaiar. Torcidas organizadas e desorganizadas urravam desespero. Vozes madureiras, jacarepaguás, copacabanas, tijucas, ilhas, baixadas, todo um dicionário de xingamentos, uma sinfonia de insultos - o múltiplo canto dos excluídos, agora expulsos também da alegria redentora de um título, único bem a ser exibido e carregado pela maioria nos bares, nos becos e nas ruas da cidade.

Os jogadores do meu time começaram a me hostilizar, evitando passar a bola para mim. A zaga do outro time cismou de baixar o sarrafo nas poucas vezes em que consegui tentar algo mais ousado. O juiz aproveitou uma dividida (quase arrebentaram o meu tornozelo) e me sapecou um cartão amarelo. Os comentaristas insuflavam o ódio da massa. Um repórter, ansioso por aumentar a audiência de sua emissora, informou, com uma entonação pausada e maldosa, a minha presença, no dia anterior ao da partida, na casa do goleiro adversário, e o resultado do nosso encontro tinha ficado claro naquele lance. A torcida não perdoou: o estádio veio abaixo. Praias, favelas, subúrbios, zona norte, zona sul: todo o Rio de Janeiro explodiu: de raiva, os nossos torcedores; de prazer zombeteiro; todos os outros, entregues à explosão de contentamento, deboche, piadas, canções infames, zombarias, insultos...

O técnico retirou-me de campo, maldizendo a hora em que me tinha escalado. Fui obrigado a sair às carreiras, evitando a chuva de pedras, latas de cerveja e outros objetos despejados sobre mim das arquibancadas e da geral. Vários jornalistas tentaram me seguir na boca do túnel, queriam saber se eram verdadeiras as informações de que um dirigente do outro clube teria encarregado o goleiro de me oferecer uma vultosa quantia para evitar gols. Consegui escapulir. Tranquei-me no vestiário, suportando o olhar de desprezo do Geraldão, o roupeiro, e de outros funcionários do clube.

O jogo acabou. O time entrou no vestiário. Não perdemos; mas o empate nos eliminou da decisão do campeonato. Ninguém me dirigiu uma palavra de conforto ou esboçou a menor tentativa de crítica. O nojo e a revolta surda eram visíveis. Foram embora sem o bicho que antes consideravam no papo. Talvez o clube também não pagasse os salários atrasados.

Por um rádio de pilha, ouvi um comentarista arrasar a baderna no futebol, a corrupção entre cartolas, jogadores e empresários. E eu era o pivô de tudo - símbolo da degradação do futebol. Ninguém percebera um cara encostado na trave direita me apontando uma pistola. A multidão revoltada me esperava na saída. A polícia garantia, com precariedade, a segurança da minha família, pois torcedores exaltados rondavam a minha residência e tinham até atirado pedras na minha mulher, totalmente avessa ao futebol, quando brincava com as crianças no jardim.

Minha explicação foi motivo de piada. Ninguém vira o homem com uma sete meia cinco encostado na trave direita da outra equipe. Houve riso, ironia, indignação. Tornei-me um exemplo de noitadas, bebedeiras, orgias. Seguramente, eu havia entrado sob o efeito de alguma droga em campo. Como me deixaram escapar do exame antidoping? Tudo isso, levianamente disseminado pela mídia, multiplicava o meu desespero. Como tudo pôde acontecer? Como explicar esse pesadelo? Nenhuma emissora apresentou uma imagem capaz de dar veracidade à minha história. Nenhuma foto. Nenhuma testemunha. Nenhuma pista, por mínima que fosse.

Agora vou esperar muitas horas até que os ânimos esfriem. Amanhã evitarei os amigos, não lerei os jornais. E pensar que, ainda ontem, eu era considerado uma das revelações do campeonato.

Já é madrugada e amargura. Ninguém mais no estacionamento, apenas eu e quatro pms. Não, há mais alguém. Sim, o carro de algum retardatário só agora está saindo; passa lentamente bem ao meu lado. Ao volante, o homem da sete meia cinco me manda um beijo.


2 comentários:

  1. ... e pensar que isso não acontece apenas em "contos literários"... CORRUPÇÃO corre solta também em campo e nos clubes de futebol e outros esportes em geral!!!
    [ ] Célia.

    ResponderExcluir
  2. Maravilhoso!

    Não sei se é conto ou realidade. Fundem-se na mesma estória que todos nós já sabemos e impotentes calamos.

    Parabéns, Zantoc!

    Beijos

    Mirze

    ResponderExcluir