Três músicos, Clóvis Graciano |
José Antônio Cavalcanti
Mais duas, pensou. O apartamento repleto de ruídos, abria-se a um corre-corre insuportável. Corpos misturados anexaram o corredor e as escadas à sala apertada e insatisfeita. Mãos esvoaçavam ágeis, aumentando o espaço, dissimulando, velozes e vorazes. Crianças modelos, problemas, prodígios, bonitas, doentes, honra e vergonha dos pais, meus filhinhos e minhas filhinhas, queridinhos, gracinhas, levados, coisinhas doces, capetinhas, ingratos, anjos barulhentos e desdentados apunhalavam olhares sequiosos no bolo e seus cúmplices.
Medo de fotografia. Medo dos pais. Medo.
O apartamento confeitado, transformado em vitrina, mostra das virtudes familiares. Trabalho e beleza pendurados nas paredes, no teto, no peito orgulhoso dos pais da aniversariante – bichinho murcho, assustado em cima de um banco, estonteado pelas gargalhadas riscando o ar da sala, pela música ensurdecedora, pelo atropelo. Parada, desaprendendo palavras, era uma boneca trabalhada em laços e rendas, vestida em nuvens povoadas de animaizinhos mimosos; uma princesa fotografada em torre medieval.
As paredes elásticas incorporavam novos contingentes de parabéns e presentes. Trovões esganiçados desequilibravam-se em lábios maternos alvejando ordem e respeito (respeito?). Inútil. O chão engolia bombas e brigadeiros destroçados, guaraná, glacê, cerveja, fora o bate-pé da pirraça. Gritos e exclamações transbordavam, manchando a mobília de espanto.
Três anos. A aniversariante, à margem da comemoração, contemplava desanimada pequenos embrulhos em papel colorido, coroados com laços de cores vivas. Três anos. O pai sumira no meio de bandejas, copos e garrafas. A mãe trafegava afoitamente entre os convidados. A vó cozinhava-se ao forno. Três anos. Nos seus ouvidos ressoavam “meu filho é isso, meu filho é aquilo”. Palavras misteriosas – balé, judô, natação, piano, inglês, informática – eram pespegadas às crianças, ampliando-lhes o ser. Assemelhavam-se a crachás, marcas registradas de prosperidade. Pompa e circunstância. Campeonato carnavalesco de maravilhas e virtudes: o filho mais alto, o filho mais gordo, a filha mais inteligente, o mais rápido, o que mija mais longe, o que cospe mais alto...
Três anos. A aniversariante assustada com o mundo. Num canto murmuravam algo a seu respeito: “ –Coitada! Não cresceu nada!” Noutra rodinha achavam o bolo de mau gosto e os doces mal feitos. Alguém recordava outro aniversário com buffet, palhaços e uma bandinha.
Três anos. A aniversariante é um confeito a ser devorado. Todos os olhos cravados na transparência do seu rosto; setas do mundo a desvendar-lhe a natureza humana. A garotinha vislumbrava nesgas de carinho, fiapos de ternura tremulando no meio da festa. Transitava leveza por colos e colos, luminosa e fluida. Galgava pernas desconhecidas. Ganhava beijos imprevistos e beijos programados. Elogios ensaiados, forçados, sinceros. Afagos espontâneos ou formais. Só não compreendia que a festa não lhe pertencia.
Três anos. A aniversariante assustada com o mundo. Num canto murmuravam algo a seu respeito: “ –Coitada! Não cresceu nada!” Noutra rodinha achavam o bolo de mau gosto e os doces mal feitos. Alguém recordava outro aniversário com buffet, palhaços e uma bandinha.
Três anos. A aniversariante é um confeito a ser devorado. Todos os olhos cravados na transparência do seu rosto; setas do mundo a desvendar-lhe a natureza humana. A garotinha vislumbrava nesgas de carinho, fiapos de ternura tremulando no meio da festa. Transitava leveza por colos e colos, luminosa e fluida. Galgava pernas desconhecidas. Ganhava beijos imprevistos e beijos programados. Elogios ensaiados, forçados, sinceros. Afagos espontâneos ou formais. Só não compreendia que a festa não lhe pertencia.
Mais duas, pensou. Onde caberiam? O apartamento apinhado de gente, um calor insuportável, uma música infantil enfadonha, uma zona. Ao seu lado uma mulher berrava: “– Cláudio! Clááááudio!!”, enquanto a espuma derramava-se pela estante. A mulher bebeu um gole, apertou a orelha do filho, torceu-a com toda a força, tomou outro gole, e largou o Cláudio, trocando a sua orelha por um salgadinho.
Mais três. Não. Tinham saído e voltado. Melhor desistir daquele improfícuo exercício. Sentiu a mãe do Cláudio olhar fixo nos seus olhos. Abaixou-se para cochichar algo com o filho, aproveitando o momento para ampliar o decote, desprotegendo seios morenos e maduros. Sorriu para ele, vulgar e acessível, as formas um tanto excessivas talvez. Mas, ainda assim, era uma mulher encantadora. O filho escapulira para uma brincadeira de super-heróis. Olhou-o de soslaio, promissora.
O pai da aniversariante, muito mais ocupado num minucioso estudo de líquidos liberadores, brigava com a máquina fotográfica, realizando a proeza de estragar quase todas as fotos, podando grandes áreas da filha, decepando cabeças, descobrindo ângulos inéditos e climas irretratáveis. Só a mãe esfalfava-se em vão, ao perceber o desconforto da filha, doida para tudo acabar logo. Por isso, certamente, apressou os parabéns.
O ritual foi exemplar. A massa compacta dos convidados ao redor da mesa. As crianças dando cotoveladas e pisando umas nas outras, impacientes. Os pais de olho no bolo, na aniversariante, vigiando-se. Vela acesa, luz apagada, cantoria, alegria geral. Uma, duas, três vezes. Em cada apagar das luzes, a mãe do Cláudio serpenteava a seu lado, roçando-se.
Livre das obrigações paternas, distribuídos doces e bolos, recolhidos os presentes, o aniversário começou. A hedionda música infantil substituída por uma execrável canção de amor, a mãe do Cláudio chegou-se toda para ele, morna e viscosa, abrindo um leque de ardis e fingimento. Ele, no entanto, observava uma coleção mal conservada de José de Alencar, distraído e bêbado. Não recusava mais nenhum copo, bebia mecanicamente, vendo a aniversariante brincar com outras meninas, dona de uma alegria inimaginável momentos atrás. Olhava-a como quem examina atentamente um quadro que jamais pintará, uma mulher que jamais possuirá, um emprego que nunca será seu. Teria feito igual? Afogado a sua casa de parentes e amigos, estrangulado o prazer, sufocado a vontade de correr, pular, cantar, entulhado cadeiras e sofá de mexericos, futricas de candidatos a pai do ano, mãe exemplar, déspotas impiedosos dos filhos? Talvez. Não, não era juiz, nem podia... Privado de descobrir, restava-lhe morder um quibe e entornar cerveja na roupa, pensando no que fazer com a mulher ao lado.
– Você é amigo do Célio?
A pergunta perturbou-o. Célio? Que Célio? Não conhecia ninguém com aquele nome, entretanto, talvez fosse o pai da aniversariante.
Ela gozou o seu constrangimento, comprazendo-se com a sua vantagem. Falsamente alarmada, golpeou-o mais forte:
– Não vá me dizer que não conhece o Célio?!
Claro, já percebera o jogo, a trama primária a revelar-lhe trabalho de amadora. Resolvera aceitar regras viciadas e adaptar-se mansamente, guardando o seu veneno para lances certeiros e mortais. Evitou encará-la quando, diante do seu ar surpreso, ela sorriu triunfante e segredou-lhe, tocando de leve as suas orelhas com lábios sedentos de gozo:
– Célio é o pai da Dinah, a aniversariante.
Em vão esperou explicações. Ele manteve-se nirvânico, desventrando a família pendurada na parede. Imaginando-se chefe de família, pai, marido, feitor de sonhos e destinos. Daria tudo para estrangular a mulher intrometida, pegajosa, crivando-o de perguntas idiotas. Queria lá saber de Célio! Mirou-a feroz e respondeu com mansidão:
– Não conheço nenhum Célio, nenhuma Dinah, ninguém. Para ser sincero sequer me conheço. Ninguém conhece ninguém. Não conheço você. Você não me conhece. Não existe nenhum conhecimento.
Ela tirou outro salgadinho de uma bandeja semideserta. Mordeu-o cheia de glamour, ajeitando com a mão esquerda a alça do soutien. Riu tranquila e satisfeita. Aquela conversa prometia muito. Encostou-se nele e falou baixinho:
– Penetra! Hein... Pensa que me engana, seu malandrinho. Penetra!
Suas palavras recendiam cumplicidade. Uma cumplicidade longa, morena e igual em todas as sílabas. O corpo prolongava a entonação daquelas palavras, ampliando-lhes o sentido, abrindo e travando promessas. Uma cumplicidade sem complacência: exigente, autoritária, possessiva.
Àquela hora a maioria das crianças já havia sido despachada. Algumas, todavia, permaneciam ativas, esquecidas de sono e cansaço. Não obstante, a festa transformara-se num círculo imenso, no qual feixes de energia interligavam os seres. Conversas cifradas, piadas, casos, façanhas, cantadas, feitos e fatos regados a batida, vinho, cerveja ou cachaça faziam do pequeno apartamento uma encruzilhada, ponto de tangência onde almas peregrinas, egressas do tédio e da desesperança, cruzavam e descruzavam caminhos. E isso acendia frações de resistência. Ainda que os encontros fossem construções de descompassos e incertezas. Mesmo que as pessoas se encontrassem apenas para um duelo, uma esgrima de misérias e ausência. Um ponto onde se projetava uma arquitetura de conflitos, prenúncio de inevitável solidão.
– Você está redondamente enganada. Não sou penetra. Apenas estou aqui. Mas não ingressei. Estou fora, entende? Estou aqui e estou fora.
– Bancando o filósofo, hein... Malandrinho! Você , para quem não está, já bebeu um pouquinho, né? Por favor, não fique zangado. Não me interprete mal. Para mim você está aqui e isso é o que importa. Nós dois estamos, conversamos, nos divertimos aqui e agora. Nós nos encontramos. Isso não é maravilhoso?
– Maravilhoso? Mas eu nem sei o seu nome. Não, absolutamente, não nos encontramos, apenas nos enganamos. Não conversamos – encadeamos sons desordenados, ilógicos, providos de farpas, cadeia ilusória de sentidos. Presos a graus cada vez maiores de cegueira, circulamos vazios e atados aos grilhões de frases desconexas, absurdamente prolixos e pedantes. Bebemos, comemos; sequer nos divertimos.
Ela procurou o Cláudio com olhos desatentos. Rápida e faceira, atrapalhava-o. Provocante e fácil, deixava-o desarmado, escravizado a uma psicologia livresca e protocolar, a enquadrar personalidades em tipos humanos, despercebido do rio caudaloso da existência, fértil em descobertas e diferenças. A imprevista capacidade de absorção criava-lhe embaraços. Definitivamente, vulgaridade revelava-se tão-somente sinônimo de algo imponderável, indefinível. Étimo modificado por um lodo deformador, filtro de olhos decadentes, alfinetando rótulos, provando juízos e valores nas pessoas à revelia de vítimas e ciência. Deselegante e atabalhoada, vista num relance, exorbitava fronteiras de compreensão, minava certezas.
Irresoluto e desconcertado, ele segurava com dificuldade um copo cheio de vinho há mais de meia hora, escorando uma parede oscilante. Achava que a aniversariante pendurada na parede poderia trazer a assinatura de Rubens. O fotógrafo caprichara. Talvez a mãe houvesse gasto vinte e quatro horas para arrumar os cachos, o vestidinho branco com rendas azuis. Fitinhas. A posição certa. O ar certo. O olhar certo. A luz. O ambiente. O tamanho. O preço.
– Tentando me enrolar, hein... seu malandrinho! Vai ver que você não é nem penetra. Então não somos nada, nada valemos, mas você bebe, come, conversa. Só não existe. Ou será que a bebida tem a capacidade de torná-lo vazio? Há pessoas que gostam de posar de vazias. Constroem-se vítimas, alvos eternos da infelicidade e da angústia. Algumas buscam até fundamentos, leem livros complicadíssimos, conhecem teorias da dor e do sofrimento, forjando explicações esfarrapadas para males inexistentes. Vazio não é quem se esvazia? Isso não é ser vítima do próprio crime?
Como é que ela podia conciliar tanto, abrir-se banal e invulgar. Droga. Mais um malandrinho daqueles, salivoso, e perderia a cabeça. Tornou-se mais fechado, impermeável. As pessoas oscilavam bojudas e graves. A aniversariante fazia oitenta anos. O pai fotografara animais em extinção num baile sem dança, sem máscara, sem motivo. Não podia aceitar acusações. Ela investia-se de poderes divinos. Grosseira e leviana, tentava incriminá-lo, recitando um discurso de assistente social de baixo calibre. Lutava por derrubá-lo rapidamente, colocando suas ideias no terreno do subproduto alcoólico. Ágil fêmea morena, senhora de formas em molde de cobiça. Morna matrona, tepidez do desejo nascendo irrefreável. Aranha pequena colhendo em teia tão frágil uma construção sem vigas, sem alicerces. Animal vulgar enxameando a cabeça de milhares de malandrinhos repugnantes, qualificativos lançados a um mar sem fundo. Ele segurava um copo inexplicavelmente cheio de vinho vagabundo. Agarrara-se a uma vagabunda, mãe de um vagabundinho, numa festa vagabunda, numa vida vagabunda. Não, não estava tonto. O vinho não poderia derrubá-lo. Um penetra nunca é derrubado, apenas enxotado pela família, pelos amigos da casa, pelos outros penetras. Ouvia o ritmo nervoso da música. Percebia os movimentos rápidos de dançarinos improvisados. Insuportáveis, agora, eram aqueles olhos tépidos injetando sobressaltos na sua alma. A proximidade de carnes. O contato de peles. O entrecruzar de hálitos. Dedos tocando-se mágicos.
Ela gritara pelo Cláudio bem alto. O garoto veio cabisbaixo, sonolento. Segurou o filho no colo, depois de limpar a boca com um guardanapo de papel e de tomar o último gole. Imponente e fútil, esperou pacientemente por ele. Percorreu todo o seu corpo com os olhos ansiosos. O filho pesava muito em braços enfraquecidos. A festa era algo distante, sem qualquer ligação com ela. Um rumor de vozes do outro lado do planeta Terra. Uma aldeia perdida numa selva comemorando ritos milenares: o plantio e a colheita, a fecundidade da terra, a perpetuidade da vida. A festa era um simples penetra em quem gostaria de abrigar o seu corpo, incrustar os seus pensamentos. Mas ele armava muros. Repelira com palavras veementes aquilo que afirmava com olhos de cão faminto. E agora, desguarnecida de trunfos, empunhava espadas no olhar, ameaçadora, terrível. Despojada de lógicas e razões, concentrava-se toda em seus contornos, densa, repleta, transbordante.
Ele perdia todas as folhas com a ventania soprando forte e inflexível. A lacuna dentro dos seus atos não se extinguiria. O vazio não bateria em retirada. A dor e a solidão permaneceriam acesas. Nenhuma comunicação. Nenhuma mensagem. Nenhum chamado o salvaria.
– Vamos?
A pergunta tirou-o daquela zona de turbulência, clareando a sala e as pessoas. Tomou-lhe o filho e carregou-o cuidadosamente. Uma gosma escorreu por seu ombro direito. Sentira o tênis emplastrado de doces. Suava. A quentura daquele corpinho molhava a sua camisa.
Quando entraram no elevador, ele observou que ela tinha as mãos ocupadas; pratinhos com doces, bolo e salgados equilibravam-se como por encanto. Ela fitou-o gulosa e ordenou-lhe:
– Quinto andar.
Hum... essas festinhas são uma perdição... das dietas alimentares e mentais... Não sei bem o que é pior: os adultos ou as crianças!! Abomino-as... Melhor um restaurante e uma rodada de pizza! E, felicidades!
ResponderExcluir[ ] Célia.
Adorei!
ResponderExcluirAs crianças são imprevisíveis. Uma festa e tanto!
Beijos
Mirze