Tripthych - Studies from de Human Body - 1970 - Francis Bacon |
José Antônio Cavalcanti
Só, rosto colado à vidraça, na muda contemplação da chuva, sonhava outros tempos, pródigos em esperanças. A chuva, indiferente, caía miúda e persistente. Dona Z não via mais as sombras úmidas por trás do vidro. Seus olhos pareciam um estranho vitral projetado para o passado – um território apascentando túmulos secretos onde apodreciam grandiosos projetos de vida.
Só, como sempre estivera, mesmo ao lado daqueles que saquearam o seu corpo em busca de prazer, observava os seus cacos espalhados por cima da mobília e uma sombrinha abrindo seu colorido desanimado a um canto da sala.
Já não olhava através do vidro embaçado por sua respiração forte e ritmada. Distraída, vagava lentamente entre mesas e arquivos, guiando a matilha de sonhos encurralados no cubo geométrico da rotina.
Nos corredores, quando passava, cochichos. Diziam que ela era..., que ela fora..., que ela fizera... E não podia deixar de magoar-se com risos abafados denunciando intrigas e calúnias. No entanto, temiam-na. Sabiam dos seus grandes poderes: manejara homens, domara chefes, destruíra carreiras. Agora, ao caminhar despojada de trunfos, diminuída em seu prestígio, onde, outrora, tantas vezes desfilara arrogância, resultavam ridículas as joias espalhadas pelo corpo, a roupa forçando formas que ameaçavam se esfarelar. Sim, os seios murchos, sustentados à força da astúcia feminina, as nádegas mambembes, as pernas enxameadas de varizes, ocultas à custa de mil estratagemas, faziam ressurgir a impiedade dos inimigos, as piadas cruéis, as estórias obscenas. Sim, por trás, todos riam. Não obstante, vista de frente, Dona Z ainda impunha respeito: a ostentação de um passado em que o poder transitava por seu corpo permanecia viva nas paredes, nos documentos e na pele dos subalternos.
Só, rosto colado à vidraça, na inquietação transparente dos olhos, contemplava a chuva, líquida cortina a fechar o pano de outros tempos.
A aposentadoria ameaçava invadir os limites do seu ser. A sensação de inutilidade, de ser traste, objeto a ser abandonado, crescia. Um mal-estar horrível o descobrir-se sucata desesquecida entre máquinas, mesas, arquivos, papéis, carimbos, armários, paredes, documentos perdidos como as esperanças perdidas em tantos anos de vida. Anos de morte. Sim, de morte. Com todas as minúcias da burocracia, com todas as exigências impostas pelas necessidades e pelo absurdo. Uma morte vivida em toda a sua formalidade de assinar ponto, preencher de tédio formulários, preparar ofícios ao nada, minutar a dor de todo dia exalando solidão pelos poros. Morte semelhante à sua dissolução entre lençóis e mentiras, sob os quais o gozo era um passo rumo a um futuro melhor, cujas promessas de dinheiro e influência inflaram os olhos e aumentaram a sede de Dona Z: ex-datilógrafa inexperiente oriunda dos conselhos maternos para os perigos do mundo, consumindo-se num trabalho enfadonho, estéril, inútil, desprovido de sentido, numa ignota seção de uma empresa estatal inviabilizada pela inépcia e desinteresse.
Camaleoa, Dona Z acabou adquirindo a cor ambiente. Movendo-se orientada exclusivamente pela estratégia do êxito, assumiu os disfarces como um rosto verdadeiro e perdeu o passo. Dona Z construiu o seu status com os laços da hierarquia, enforcando neles qualquer amizade ou possibilidade de tangência. Sua posição: seu espaço de sofrer. Nele só a angústia medrou forte, densa, generosa.
Dona Z e seus planos de morar bem. Dona Z e seus planos de homem. Dona Z e a distância dos inferiores. Iludindo-se poderosa, não via que amante de chefe era assim: espécie de carro esporte, animal de estimação, coleção de selos.
Só, rosto colado à vidraça, vê na chuva a represa de lágrimas contidas graças a anos de experiência sob o controle dos relógios e das migalhas que lhe atiravam ao leito. Contudo Dona Z secou, definhou, acabou: impossível água em quem pedra, impossível vida em quem moeda. Dona Z é a menor parte de tudo aquilo que poderia ser. Suprimiu os olhos, mineralizou o sexo, amputou os sentimentos, pela ânsia, pela vontade absurda e absoluta de Poder.
À noite, pesadelos desprendiam-se do teto e caíam sobre o seu corpo envelhecido. As carnes flácidas movimentavam-se assustadas sob as cobertas. Morcegos com rostos de anjo vinham pedir-lhe o peito; animais pré-históricos intrometiam-se na vagina; nuvens de insetos tentavam arrastá-la da cama. Dona Z acordava aos gritos, acendia a luz, mas os fantasmas inundavam a noite de angústia e terror.
Pela manhã, ao entrar no elevador, seus olhos apresentavam manchas negras. Os funcionários olhavam maliciosamente. Imaginavam grandes orgias, bacanais com diretores. Não sabiam que Dona Z estava só. O corpo acabara. Acabara o poder.
Olhos eternas névoas. Vitral. Vidraça. Só, como sempre estivera. Enclausurada em triste e vão ofício, arrastava o peso das conveniências pelos sombrios corredores e escadarias intermináveis onde sombras recurvadas pastavam rotina e submissão. Dona Z transitava por perigosos desvios. Corpo fora de forma. Animal enjaulado saudoso de planos e objetivos. Não mais o cortejo dos adoradores, a magia dos gabinetes. Dona Z não compreendia mais nada. Os olhos eternas névoas. Só, rosto colado à vidraça, revia paisagens da distante inocência. Um tempo e sua promessa. Algo se partiu na mente de Dona Z. Ruído de memória fraturada. Sabor de veneno nas palavras. Feras fora de jaulas. Limo sobre a pele. A gosma. A ruína.
De nada valera agarrar-se a serviços robotizantes. Fugitiva de si mesma, transformara o trabalho em ópio e, permanentemente alheia, sobrevivia com a alma cheia de remendos e lacunas. O preenchimento correto e sem rasuras do formulário TD.1 item dois alínea b do artigo três dois quatro de vinte de abril de não existiu. Dona Z e a correspondência. Dona Z e os contínuos. Dona Z e a máquina de escrever. Dona Z e o horário. Dona Z e a dieta. Dona Z e as promoções. E os anos passam, e passam os minutos por cima das carnes molengas, e passam os meses como insetos cavando rugas, e o tempo cava túneis no desejo, e o caminho sem retorno aproxima-se do seu termo.
Dona Z ainda se aguentara segurando muletas invisíveis. Enveredara pelo terreno do conformismo. Argumentara com fervor e resignação. Apelara para todos os espíritos. Peregrinara por terreiros, centros espíritas, igrejas e templos de todas as seitas. Acendera velas com o último fogo da esperança. Tentara construir-se estóica, firme, inabalável. Vestira-se de fatalista, liberta da dor e dos prazeres do mundo. Nada.
E se todos se unirem contra ela? E se quiserem ir às forras? E se a espancarem? E se roubarem as suas joias? E se perder o emprego?
Dona Z era um açude sangrando. A incerteza corroera a precisão de sua fala. Até mesmo os gestos, rigorosamente construídos e profissionais, começaram a desmoronar. Evaporaram-se os sorrisos mecânicos, distribuídos nas ocasiões oportunas; os lânguidos olhares privativos de momentos intimistas com os chefes; a expressão austera e compenetrada de funcionária exemplar como disfarce eficaz. Suas cartas não apresentavam o mesmo grau de correção. A memória, prodígio que a todos assombrava, começara a claudicar: esquecia números de processos, trocava nomes de funcionários, errava telefones. Sua calma, proverbial na empresa, começara a decompor-se. Gesticulava nervosa, erguia a voz, irritava-se pelo motivo mais fútil. Já não chegava pontualmente às oito da manhã. Em todas as seções, os inimigos comentavam. Velhos desafetos caíam na sua pele. Rivais contavam os seus podres, impiedosas. Inimigos, inimigos por toda parte. O mundo só era habitado por cínicos e invejosos. O ser humano não valia nada. Dona Z sentia-se acuada. A humanidade não prestava.
Olhos eternas névoas. Lentes mentirosas inventando cores quentes num ambiente cinzento. Refração da luz. O côncavo e o convexo dos dias. O desvio – intransitável caminho. Sombras recurvadas pastam desânimo entre pilhas de papéis. O barulho de buzinas, máquinas e vozes humanas rege um balé de zumbis. Sinfonia do caos e do desconserto. Gigantesco coral em solidão maior. Sombras subservientes disputam um lugar ao sol. Dona Z descera aos porões da sua inquietude. Instalara a sua fábrica de dúvidas no interior de pensamentos sempre evitados. Dona Z sabia de criaturas despidas de muros, carregando futuro e solidariedade como luzes, mas não acreditava nas canções onde a vida é plenitude.
Dona Z não conseguia dormir. Desde a noite em que começara a sentir algo estranho em seu corpo – um cheiro insuportável a exalar quando se despia. Olhou-se no espelho do guarda-roupa. Mirou, remirou: nada. Aquilo prenunciava perigo. Teve a impressão de que a sua coluna fervia e uma corrente elétrica atravessava-lhe as vértebras.
Olhos eternas névoas. Dona Z, ao andar pelas seções, evitava se expor em demasia. Preferia ficar sentada em sua cadeira, ela, que adorava exibir as suas formas sedutoras por toda parte: ela, que se comprazia em despertar desejos em pobres coitados para entregar-se aos graus mais altos na hierarquia.
Todas as noites, ao despir-se, sentia o cheiro insuportável. No início, pensou existir alguma coisa estragada em casa, quem sabe algum bicho morto? Não obstante, o cheiro provinha do seu próprio corpo. Pensou em consultar um médico, assustada com a possibilidade de encontrar-se profundamente doente, contudo a vergonha tolhia a sua vontade. Talvez estivesse imaginando coisas. Cansaço ou medo, quem sabe?
Uma noite Dona Z descobriu o motivo dos seus sofrimentos. Estarrecida, não quis acreditar. Não era possível aceitar aquilo. Sua coluna, coisa espantosa!, tentava prolongar-se. O último ossinho irrompera pela carne afora, sangrando suas nádegas. Dona Z horrorizou-se. Chorou todos os seus choros. Desesperou-se nas mãos do infortúnio. Gritou aterrorizada, pulando sobre a cama, esmurrando-a, chutando-a com ódio, alucinada. Sua coluna teimava em crescer, teimava em sair do corpo e a dor ultrapassava todas as fronteiras.
Por uma chuvosa manhã carioca Dona Z passara angustiada. Após três dias de falta, ousara retornar ao serviço. Ninguém percebeu toda a tragédia que a abatia. Guardou a ferro e fogo o seu terrível segredo. Viera apressada, cabeça baixa, insegura.
À noite, inferno. Descobrira que o ossinho repartia-se em três. Uma pele já estava se formando sobre as feridas. Ela possuía, oh terror!, três pequenos rabinhos, de aproximadamente cinco centímetros cada. Além da pele, surgiam pelos em todos eles. Nua frente ao espelho, não acreditava no que via.
Olhos eternas névoas colados à vidraça, descolados do mundo. Só, como sempre estivera, Dona Z contemplava a chuva. Cada pingo era uma parte do seu ser dissolvendo-se vertiginosamente. De rainha a ruína. De todo-poderosa a nulidade. Os cabelos embranquecendo. A dentadura. Os óculos. As mãos trêmulas. O andar pausado, convalescente. A pressão. O vidrinho e as pílulas. Os três rabinhos. Asco. Medo de que todos saibam. Monstruosidade. Pânico.
Nem se despia mais. As roupas permaneciam com as joias. Vergonha e medo. Dona Z em extinção. Apenas sombra recurvada perambulando pela cela-repartição, etiquetando cadeados e ferrolhos. A Ordem comandando os nervos. A obediência ilimitada aos preceitos e regulamentos. O chefe. O subchefe. O candidato a chefe. A mulher do chefe. O filho do chefe. O pica do chefe. O chefe do chefe. Dona Z elaborava o relatório de seus tormentos, desfazendo razões, traçando um quadro sombrio: os resultados negativos eram índices de uma alma no vermelho.
Só, rosto colado à vidraça, como sempre estivera. Pelos sombrios corredores e escadarias intermináveis pastavam sombras recurvadas de rotinas. Dona Z não acreditava nas luzes semeadoras do futuro. Dona Z – sombra recurvada – viera trabalhar normalmente. O mesmo ritual. O culto ao dever. As canções metálicas das calculadoras e máquinas de escrever, a geometria anêmica dos arquivos e a assepsia de um piso quase espelho. Como artesã, teceu com habilidade as minúcias do dia, satisfez as exigências: escreveu, leu, carimbou. Às dezessete horas, depois de ter arrumado as gavetas, pegou a sua bolsa e foi ao banheiro. Pela primeira vez na vida quebraria a rotina: sairia da empresa por outra porta.
Triste fim do que nos leva "rotinas desenfreadas"... Muitas "Donas Zs"... dispersas nesse mundo!
ResponderExcluir[ ] Célia.