quinta-feira, 14 de julho de 2011

FORA DE FORMA


                
         José Antônio Cavalcanti



        Plataforma apinhada. Massa compacta  inflando  a manhã  morna  e desanimada.  Um coro enfurecido de putas que o pariu e filhos da puta faísca no ar. Contraponto a um fanhoso e rotineiro −  “a composição destinada a D.Pedro II encontra-se avariada  na  estação de Pavuna. Próximo trem saindo de Belford Roxo”.  Enevoado, olho escândalos em um jornal.
        Nem sei como entrei. Felicidade. O jornal rasgado e um  botão da camisa perdido.  Arrastado  pela  multidão  em selva escura habito.  O corpo  dissolvido em humano inferno,  o suor naufraga todas as identidades. Minhas pernas, misturadas às outras, inviabilizam caminhos. Não sei qual a mão que remete ao meu ser.  Divindade panteísta,  sou  milhares de  olhos e bocas,  salivando preces e imprecações. 
          A porta, a turma da porta. Preciso caminhar. Melhor a porta aberta, o vento no rosto, a promessa de abismo − irrecusável convite.  Cotovelos em amplas barrigas ocas e convexas, expostas à fúria da minha fuga. Pés em chinelos são vítimas inermes de  pressões  brutais  e covardes. Cabeçadas à direita e à esquerda em um mundo sem centro.  E o revide  anônimo  e certeiro percutindo nas costas. Finalmente, a porta. Posso guardar escudo e  gládio,  transformar a couraça metálica em  trapos esvoaçantes.

         Entra e sai nas estações inumeráveis – Ítaca, Magno, Lesbos, Rocha Miranda, Troia, Honório Gurgel, Pasárgada, Costa Barros, Patmos... −, repetições de espaços aguardando supressão;  núcleos  de  triagem  de  resíduos humanos onde se processa a alquímica conversão de flor em cobre e carvão. Renovação de retirantes entre o esperar e o ingressar sob a resina azul do céu.  Ratos  desmemoriados  portando  lanternas sem luz em trilhas que  conduzem  a laboratórios sinistros. Cobaias destinadas a um invento cuja fórmula  transmuta-as em ouro. Milhares de ratos munidos de ração e sonolência  invadem a manhã.
        Melhor essa emoção suburbana de perito, esse folhetim de terceira classe,  esse desafio aos deuses  da velocidade, do que a ida ao forno em confortável  abrigo, a ida ao logro  sem sombra de  perigo.  Melhor o caminho sinuoso  e  longo,  nele  vejo pés  sobre as janelas do trem. Loucos ambulantes da morte passeiam felicidade sobre os vagões.  Entre fios e  transgressão  exercitam-se  os  bailarinos do caos. O fascínio da queda  sem  anjos e paraíso.  Ao som de inaudível rap,  falseiam  passos,  apresentam  números de mágica e digitam  delírios,  infernizando a  vida  autômata do lado de lá do Grande Vidro,  onde  almas  pedestres hostilizam violinos.
        Não  hesito.  Mãos  sobre  outras   mãos-trampolins.  Pés  roçando  ombros  e   cabelos alheios. Corpo quase flutuando. Ginástica improvisada entre tapas e xingamentos. E o mundo é muito mais do que um se deixar conduzir,  um ser levado  por.  É uma  verdadeira  viagem. Agora sim, na galeria dos homens. Rito iniciático da arte kamikaze. Samurai de  sombras e suspense.  Entrego-me ao prazer de um lugar não destinado.  Invasão e  perversão do deslocar-se. Criação de um movimento real,  livre das coordenadas que empurram trajetos e percursos aos seres e,  externamente, determinam a cadência dos passos, o ritmo da respiração  e  todo  o  ritual  do  mover-se  em direção a.  Fora de lugar. A viagem enfim aventura, conquista de um mapa interior que me liberta da topografia imposta e  permite atalhos,  saltos,  precipícios. A distância é um conceito alojado no meu olhar.
        O mundo passa feroz. As casas voam. As pessoas explodem formas e cores  em  ritmo estonteante. Só nas estações  −   flechas apunhalando voos   −  entusiastas da  ordem,   inimigos da  imaginação  e  do  balé  dos homens livres,  desfilam conselhos estéreis, súplicas teatrais, intimidações bolorentas. Eles, os comensais da  hyerarchia,  os   incensadores   da  nova  ordem.
        Um tremor no corpo marca a precariedade do equilíbrio. Um calafrio, cujo epicentro aloja-se no estômago, percorre todos os membros. Fecho  os olhos incontáveis vezes,  enquanto as  mãos  seguram com  desconhecida sofreguidão qualquer reentrância metálica. O rosto tangencia placas, sinais luminosos,  postes, fios, passarelas, viadutos, tudo milimetricamente afastado.
        Sobre  a  composição,  uma  assembleia  de  apóstolos  da  loucura  traça  um  desenho inesperado e   selvagem. Californianos negros desdentados,  caubóis do morro da Lagartixa, louros carcomidos de perebas,  branquelos  heróis de  seriados  da  televisão saltam e pulam emoções  violentas  com  jubiloso  acompanhamento  de  gritos,  assobios e exclamações de “salve-se quem puder”.  Tarzans,  Rambos,  Hulks,  Robins Hoods,  exército de zés e  joões consumidos em sonhos  colonizados,  lançando  vísceras  e  músculos sobre  trilhos. Corpos mergulham por janelas rumo ao sem retorno. Quixotescos heróis  minúsculos,  pretos-forros do ‘vai fazer isso” e  “vai fazer aquilo”  subtraem espaço às notícias do mundo. Exército suburbano de  libertação  irracional. Dançarinos da  fome,  magricelas e cariados  fantasmas num salto mortal entre vagões.  Reaprendizado  cruel  do  jogo  da  amarelinha. Nos caixões metálicos operários  embalsamados  trocam  pisões,  sarros  e  cotoveladas,  permeados  por pungas e conversas. O amontoado de  seres ao gás de fábricas e escritórios. Lazer  perpétuo aos exterminadores de baixadas fluminenses estrelas.
        Também sou peregrino. O término da viagem é o santuário. Os templos impiedosos do século vinte erguem  torres monumentais a um céu despovoado de misericórdia. Só  as  viaturas da ordem, os códigos e as senhas de acesso, a  distância de gestos e trânsito. A cidade-cartão  postal por onde desliza essa carroça eletrometálica é um assustador jardim de alumínio, ferro e vidro;  paraíso  de guichês,  mendigos  e  camelôs.  A grande sucata-mor de  um país não sei qual.  Nela,  papéis  em ignota caligrafia nas mãos, autenticam passos em  Tiradentes praças,  Rio Branco avenidas, tantos e tais lugares,  andares,  salas  xis e  ipsilones. E mais:  eletrônicos  objetos  digitais sonhando  posse.  Espaços  onde  fucionários  anemizam  sorrisos  tão operacionais quanto idiotas. Contas.  Dívidas. Anúncios.  Jornais emprestados, colhidos ao chão.  Mil jogos de  ilusão povoando a vida de capoeiras e laser, engolidores de fogo e vídeos, cegos instrumentistas e  samplers, mímicos e robôs, pomadas vendedores japoneses e pistolas automáticas.
        Deslizo entre os vagões. Desligo razões. Pulo todos os degraus da insanidade. Xingo  a mãe dos passantes (farsantes?).  Tiro o pau  para fora e exibo o obelisco do pecado a cantorias protestantes e virtuoses de fim de semana.  Estou  fora  do controle oficial.  As leis  são apenas registros que me aprisionam a uma vida miserável. Não há clemência. No mundo só existe polícia.
     Repentinamente,  paralisam o movimento. Podam a floração de instintos e poesia. Plataformas interditadas.  Portas fechadas.  Agentes  de  segurança  ordenam,  mentem,  latem. Agora, uma multidão de zumbis vocifera de outras submersas plataformas:
        − Porrada!  Porrada!  Porrada!
        Os zumbis perdem a hora e o emprego,  só  não  perdem o sangue  alheio.  Precisam de uma certa dose de distração.  Enlaçam-se aos pés de seus amos. Fazem  salamaleques às autoridades e elegem, periodicamente, os seus coveiros. Os zumbis são tirânicos.
        −  Ladrão!  Veado!  Seu merda!
        A multidão adoça os meus ouvidos. Agora, entre os braços da lei, sinto-me  seguro  e protegido. Recebo uma cacetada quase na nuca,  mas estou inteiro.  Um guarda  me acerta um chute na altura dos rins.  Estou imensamente feliz!  Mais uma cotovelada, um tapa, um soco, um pontapé,  outro tapa... Sangro abundantemente pelo nariz... Outra cacetada nas costas...A lei me protege... Sou um cidadão, estou transbordando sangue e felicidade...  A multidão me abriga...  Retoma o seu lugar...  Todos recolocam-me nos trilhos...  Mais...

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