José Antônio Cavalcanti
Plataforma apinhada. Massa compacta inflando a manhã morna e desanimada. Um coro enfurecido de putas que o pariu e filhos da puta faísca no ar. Contraponto a um fanhoso e rotineiro − “a composição destinada a D.Pedro II encontra-se avariada na estação de Pavuna. Próximo trem saindo de Belford Roxo”. Enevoado, olho escândalos em um jornal.
Nem sei como entrei. Felicidade. O jornal rasgado e um botão da camisa perdido. Arrastado pela multidão em selva escura habito. O corpo dissolvido em humano inferno, o suor naufraga todas as identidades. Minhas pernas, misturadas às outras, inviabilizam caminhos. Não sei qual a mão que remete ao meu ser. Divindade panteísta, sou milhares de olhos e bocas, salivando preces e imprecações.
A porta, a turma da porta. Preciso caminhar. Melhor a porta aberta, o vento no rosto, a promessa de abismo − irrecusável convite. Cotovelos em amplas barrigas ocas e convexas, expostas à fúria da minha fuga. Pés em chinelos são vítimas inermes de pressões brutais e covardes. Cabeçadas à direita e à esquerda em um mundo sem centro. E o revide anônimo e certeiro percutindo nas costas. Finalmente, a porta. Posso guardar escudo e gládio, transformar a couraça metálica em trapos esvoaçantes.
Entra e sai nas estações inumeráveis – Ítaca, Magno, Lesbos, Rocha Miranda, Troia, Honório Gurgel, Pasárgada, Costa Barros, Patmos... −, repetições de espaços aguardando supressão; núcleos de triagem de resíduos humanos onde se processa a alquímica conversão de flor em cobre e carvão. Renovação de retirantes entre o esperar e o ingressar sob a resina azul do céu. Ratos desmemoriados portando lanternas sem luz em trilhas que conduzem a laboratórios sinistros. Cobaias destinadas a um invento cuja fórmula transmuta-as em ouro. Milhares de ratos munidos de ração e sonolência invadem a manhã.
Melhor essa emoção suburbana de perito, esse folhetim de terceira classe, esse desafio aos deuses da velocidade, do que a ida ao forno em confortável abrigo, a ida ao logro sem sombra de perigo. Melhor o caminho sinuoso e longo, nele vejo pés sobre as janelas do trem. Loucos ambulantes da morte passeiam felicidade sobre os vagões. Entre fios e transgressão exercitam-se os bailarinos do caos. O fascínio da queda sem anjos e paraíso. Ao som de inaudível rap, falseiam passos, apresentam números de mágica e digitam delírios, infernizando a vida autômata do lado de lá do Grande Vidro, onde almas pedestres hostilizam violinos.
Não hesito. Mãos sobre outras mãos-trampolins. Pés roçando ombros e cabelos alheios. Corpo quase flutuando. Ginástica improvisada entre tapas e xingamentos. E o mundo é muito mais do que um se deixar conduzir, um ser levado por. É uma verdadeira viagem. Agora sim, na galeria dos homens. Rito iniciático da arte kamikaze. Samurai de sombras e suspense. Entrego-me ao prazer de um lugar não destinado. Invasão e perversão do deslocar-se. Criação de um movimento real, livre das coordenadas que empurram trajetos e percursos aos seres e, externamente, determinam a cadência dos passos, o ritmo da respiração e todo o ritual do mover-se em direção a. Fora de lugar. A viagem enfim aventura, conquista de um mapa interior que me liberta da topografia imposta e permite atalhos, saltos, precipícios. A distância é um conceito alojado no meu olhar.
O mundo passa feroz. As casas voam. As pessoas explodem formas e cores em ritmo estonteante. Só nas estações − flechas apunhalando voos − entusiastas da ordem, inimigos da imaginação e do balé dos homens livres, desfilam conselhos estéreis, súplicas teatrais, intimidações bolorentas. Eles, os comensais da hyerarchia, os incensadores da nova ordem.
Um tremor no corpo marca a precariedade do equilíbrio. Um calafrio, cujo epicentro aloja-se no estômago, percorre todos os membros. Fecho os olhos incontáveis vezes, enquanto as mãos seguram com desconhecida sofreguidão qualquer reentrância metálica. O rosto tangencia placas, sinais luminosos, postes, fios, passarelas, viadutos, tudo milimetricamente afastado.
Sobre a composição, uma assembleia de apóstolos da loucura traça um desenho inesperado e selvagem. Californianos negros desdentados, caubóis do morro da Lagartixa, louros carcomidos de perebas, branquelos heróis de seriados da televisão saltam e pulam emoções violentas com jubiloso acompanhamento de gritos, assobios e exclamações de “salve-se quem puder”. Tarzans, Rambos, Hulks, Robins Hoods, exército de zés e joões consumidos em sonhos colonizados, lançando vísceras e músculos sobre trilhos. Corpos mergulham por janelas rumo ao sem retorno. Quixotescos heróis minúsculos, pretos-forros do ‘vai fazer isso” e “vai fazer aquilo” subtraem espaço às notícias do mundo. Exército suburbano de libertação irracional. Dançarinos da fome, magricelas e cariados fantasmas num salto mortal entre vagões. Reaprendizado cruel do jogo da amarelinha. Nos caixões metálicos operários embalsamados trocam pisões, sarros e cotoveladas, permeados por pungas e conversas. O amontoado de seres ao gás de fábricas e escritórios. Lazer perpétuo aos exterminadores de baixadas fluminenses estrelas.
Também sou peregrino. O término da viagem é o santuário. Os templos impiedosos do século vinte erguem torres monumentais a um céu despovoado de misericórdia. Só as viaturas da ordem, os códigos e as senhas de acesso, a distância de gestos e trânsito. A cidade-cartão postal por onde desliza essa carroça eletrometálica é um assustador jardim de alumínio, ferro e vidro; paraíso de guichês, mendigos e camelôs. A grande sucata-mor de um país não sei qual. Nela, papéis em ignota caligrafia nas mãos, autenticam passos em Tiradentes praças, Rio Branco avenidas, tantos e tais lugares, andares, salas xis e ipsilones. E mais: eletrônicos objetos digitais sonhando posse. Espaços onde fucionários anemizam sorrisos tão operacionais quanto idiotas. Contas. Dívidas. Anúncios. Jornais emprestados, colhidos ao chão. Mil jogos de ilusão povoando a vida de capoeiras e laser, engolidores de fogo e vídeos, cegos instrumentistas e samplers, mímicos e robôs, pomadas vendedores japoneses e pistolas automáticas.
Deslizo entre os vagões. Desligo razões. Pulo todos os degraus da insanidade. Xingo a mãe dos passantes (farsantes?). Tiro o pau para fora e exibo o obelisco do pecado a cantorias protestantes e virtuoses de fim de semana. Estou fora do controle oficial. As leis são apenas registros que me aprisionam a uma vida miserável. Não há clemência. No mundo só existe polícia.
Repentinamente, paralisam o movimento. Podam a floração de instintos e poesia. Plataformas interditadas. Portas fechadas. Agentes de segurança ordenam, mentem, latem. Agora, uma multidão de zumbis vocifera de outras submersas plataformas:
− Porrada! Porrada! Porrada!
Os zumbis perdem a hora e o emprego, só não perdem o sangue alheio. Precisam de uma certa dose de distração. Enlaçam-se aos pés de seus amos. Fazem salamaleques às autoridades e elegem, periodicamente, os seus coveiros. Os zumbis são tirânicos.
− Ladrão! Veado! Seu merda!
A multidão adoça os meus ouvidos. Agora, entre os braços da lei, sinto-me seguro e protegido. Recebo uma cacetada quase na nuca, mas estou inteiro. Um guarda me acerta um chute na altura dos rins. Estou imensamente feliz! Mais uma cotovelada, um tapa, um soco, um pontapé, outro tapa... Sangro abundantemente pelo nariz... Outra cacetada nas costas...A lei me protege... Sou um cidadão, estou transbordando sangue e felicidade... A multidão me abriga... Retoma o seu lugar... Todos recolocam-me nos trilhos... Mais...
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