segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Dia de compras



     
O cara veio correndo em desabalada carreira. Na pressa de fugir, ou de chegar, esbarrou na mulher de lenço na cabeça e derrubou as suas compras. A mulher não pôde conter o desespero e começou a chorar copiosamente por causa de sua impotência face a avidez de dezenas de mãos disputando latas de sardinha, de salsicha, bananas, sacos de açúcar, detergente, sabão em pó, goiabada e tantas coisas espalhadas por cima da caixa de ovos, esmagados no afã de todos em pegar os alimentos e artigos de limpeza.

O cara já estava longe, dobrando uma esquina bem distante. A mulher tentou argumentar com o gerente. O gerente deu a entender que não tinha nada a ver com aquela história, portanto não o amolasse. A mulher recomeçou a chorar e a discutir em termos violentos com o homem intransigente. Formou-se um bolo ao redor dos dois, do que se aproveitou um molequinho franzino para roubar a bolsa da queixosa com alguns trocados remanescentes. O desespero da mulher alcançou proporções explosivas. Era lavadeira, mulher de um trabalhador da construção civil e tinha cinco filhos. Insistia no seu direito em pegar tudo que constava na nota da caixa número cinco em suas mãos trêmulas. O gerente, nervoso com o escândalo, não arredava pé de sua intolerância.

Meia hora depois, a mulher já estava novamente com o carrinho cheio na fila. Queria que a empacotadora arrumasse tudo nas sacolas com rapidez porque ela não iria pagar outra vez e já se atrasara demais. O gerente disse que ia sim. Ela disse que ia não. O pessoal da fila protestou por ela ter ido direto à caixa número cinco. Justificou-se dizendo que não ia pagar, uma vez que as suas compras foram derrubadas, fizeram um arrasa-arrasa e, depois disso, um pivete tinha arrancado a sua bolsa. Alguns sorrisos irônicos e descrentes apareceram na fila. O gerente impediu que a menina empacotasse as compras da mulher de lenço na cabeça. Ela recomeçou a chorar. Implorou ao gerente, disse que o marido era muito ignorante, se ela chegasse em casa sem as compras e sem o dinheiro, ele iria falar que ela estava mentindo, que tinha outro homem. O gerente não tinha nada com isso. O pessoal da fila da caixa número cinco não tinha nada com isso. O vespeiro humano começou a vaiar a mulher. Uma marafona corpulenta passou-lhe à frente no peito. A mulher de lenço na cabeça quis reclamar daquele atrevimento, porém o gigolô da marafona corpulenta deu-lhe uma porrada na nuca e a mulher caiu estatelada no chão brilhante do supermercado. As filas uniram-se em aplausos e piadas. Um engraçadinho quis tirar chinfra de gostoso e tentou ajudar a mulher, mas a segurança da casa já estava a postos e imobilizou o rapaz, retirando-o do meio do tumulto. Depois de descartar-se do intrujão, a segurança pegou a mulher de lenço na cabeça, que perdera as compras devido a um esbarrão fortuito, fora surrupiada por um pivete e esmurrada pelo macho da nega corpulenta, e arrastou-a para fora do supermercado. O gerente aproveitou a ocasião para fazer uma imperdível oferta-relâmpago, estratégia que lhe permitiu chamar um camburão estacionado a poucos metros sem despertar grande interesse dos clientes. Ele conversou demoradamente com um pm. A mulher de lenço na cabeça tentou explicar a sua situação. Os pms não quiseram papo. Um, de bigodinho fino, passou-lhe uma rasteira e o outro, de óculos, mandou-a parar de palhaçada. O terceiro veio por trás e segurou a mulher de lenço na cabeça, colocando-a próxima à traseira do veículo, enquanto o de bigodinho fino abria a porta. A mulher começou a se apavorar e a protestar inocência, mas de nada lhe valeu. O de bigodinho deu-lhe um ruidoso telefone que sangrou os ouvidos, e o que tinha saído por último meteu-lhe um pontapé nas costas tão violento que jogou-a dentro do camburão. Os três acabaram o serviço, cumprimentaram a segurança do supermercado e receberam tapinhas do gerente.

4 comentários:

  1. ... que horror!! É a lei do mais forte? Fiquei revoltada e constrangida com a mulher de lenço na cabeça! :(

    [ ] Célia

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  2. O que é que falta aqui? A mulher de lenço na cabeça acabar na cama do Hospital, entre a vida e a morte, sim essa , mais segura, o último reduto da condição humana. Nascemos, é certo , mas mais tarde ou mais cedo quase todos lá vamos parar. O caminho até lá é k pode fazer toda a diferença.

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  3. Revolta, mas são cenas da desumanidade e violência que assola o país. Os fracos sempre pagam mais caro. E o marido vai continuar a agressão.

    Texto impressionante!

    Beijos

    Mirze

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  4. Boa tarde.Muito bom, excelente o seu texto!
    Que absurdo!Não se pode nem mais protestar com verdade, clamar pelos seus direitos, que ocorre tremenda injustiça!
    O interesse de alguns fere totalmente o direito de muitos, e o descaso, esse, corre solto!
    Um beijo, e fique com Deus!

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