quarta-feira, 14 de setembro de 2011

TEORIAS DO AFUNDAMENTO

Vladimir Kush


     José Antônio Cavalcanti

1 -  “Que absurdo pensar que um homem deve ocupar um lugar na vida, que absurdo, e no entanto muitos jovens acreditam que devem lutar para conseguir um espaço no mundo, espaço este que não existe porque todos os homens estão fora de lugar, mas só o velho tem consciência e por isso pode sentir-se feliz ao ficar fora do mundo, afundando cada dia mais no seu atraente abismo próprio.” – Enrique Vila-Matas,  em A viagem vertical.

2 – “Os novos estudos da neuropoética comprovam que o cérebro é dotado de uma cavidade próxima ao diencéfalo capaz de realizar as sinapses entre os neurotransmissores de fuga e abandono. O processo, ainda obscuro, promove uma irradiação azul do lado esquerdo da cabeça, provocando a perda da vontade de viver e um mergulho catatônico no vazio. A fenda sináptica abre-se desmesuradamente e nela a química dos encontros desaba todas as certezas. Em alguns indivíduos, o hipotálamo apresenta intumescência de dúvidas e perplexidade.” -  Dr. Philipp D. Salthouse, neuropoeta da University of Massachusetts.

3 – “No’mais,. Musa, no’mais que a lira tenho
       Destemperada e a voz enrouquecida.
       E não do canto, mas de ver que venho
       Cantar a gente surda e endurecida.
       O favor com que mais se acende o engenho
       Não no dá a pátria, não, que está metida
       No gosto da cobiça e na rudeza
       Duma austera, apagada e vil tristeza.” – Luís de Camões, em Os lusíadas.

4 – “Milímetro a milímetro nesse corpo transatlântico naufrago Titanic entre lençóis e camadas geológicas. Magma é a dissolução do meu caminho na tua pele tatuada de seres inúteis. Afundo no meio dessa fauna estranha, deslocando rochas e cidades, desabando afetos e palavras. O epicentro é pura demência quando não há mais liga e carícia. A terra se move para o abismo. O que nos abala inaugura o deserto”. - Dr. Raymundo O. Tavares, geólogo da Université Paris-Sorbonne IV.

5 – “Nenhuma palavra
       profunda.
       Fundo é o que nos foge,
       O mundo é superfície
       a face fina e fugaz não do fundo,
       mas do breve e do mínimo.
       o milímetro do nosso limite.” – Zantonc, pseudopoeta brasileiro.

6 – "Um inseto cava
      cava sem alarme
      perfurando a terra
      sem achar escape.

      Que fazer, exausto,
      em país bloqueado,
      enlace de noite
      raiz e minério?

      Eis que o labirinto
      (oh razão, mistério)
      presto se desata:

      em verde, sozinha,
      antieuclidiana,
      uma orquídea forma-se." – “Áporo”, de Carlos Drummond de Andrade

7 – "Com a lâmpada do Sonho desce aflito
      e sobe aos mundos mais imponderáveis,
      vai abafando as queixas implacáveis,
      da alma o profundo e soluçado grito.

      Ânsias, Desejos, tudo a fogo escrito
      sente, em redor nos astros inefáveis.
      Cava nas fundas eras insondáveis
      o cavador do trágico Infinito.

      E quanto mais pelo Infinito cava
      mais o Infinito se transforma em lava
      e o cavador se perde nas distâncias...

      Alto levanta a lâmpada do Sonho
      e com seu vulto pálido e tristonho
      cava os abismos das eternas ânsias!" – “Cavador do infinito”, Cruz e Sousa

8 – “Como os chistes e o cômico, o humor tem algo de liberador a seu respeito, mas possui também qualquer coisa de grandeza e elevação, que faltam às outras duas maneiras de obter prazer da atividade intelectual. Essa grandeza reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter prazer. Esse último aspecto constitui um elemento inteiramente essencial do humor.” - Sigmund Freud, em "O humor"..

9 – “O afundamento é uma depressão produzida pela movimentação tectônica das camadas mnemônicas da minha hipersensibilidade erótica. Parte da memória recupera territórios de felicidade, enquanto a outra parte, mais extensa, exibe imagens de devastação e palavras amargas. O humor, em caso de abalos sísmicos, é um tênue casaco incapaz de segurar as ondas venenosas de uma radiação letal proveniente de balões infláveis. O afundamento lida com massas, volumes, áreas e sólidos capazes de fazer um corpo atravessar a consciência para projetar-se como sombra no vazio do outro lado da fronteira. Há vários níveis de afundamento, mas os superiores são aqueles denominados travessias, aqueles que nos esvaziam de tudo o que fomos e nos reinventam nas formas do impossível. Afundar no chão, no mar, no deserto, inaugurar o caminho para o aberto.” - Ex-José Antônio Cavalcanti

10 – “(...) é preciso continuar, não posso continuar, é preciso continuar, vou então continuar, é preciso dizer palavras, enquanto houver, é preciso dizê-las, até que me encontrem, até que me digam, estranho castigo, estranha falta, é preciso continuar, isso talvez já tenha sido feito, talvez já me tenham dito isso, talvez me tenham levado até o umbral da minha história, ante a porta que se abre para a minha história, isso me espantaria, se ela se abre, serei eu, será o silêncio, aí onde estou, não sei, não o saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar.” – Últimas linhas de O inominável, de Samuel Beckett.

3 comentários:

  1. AMEI ESSAS TEORIAS!

    Conclui que vivo me afundando e quando submerjo é quando menos penso.

    Beijos

    Mirze

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  2. Oi,Mirze. Que bom que você gostou. Afundar pode ser o mesmo que ascensão.
    Beijos

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  3. uma bela coletânea de fragmentos...é... é preciso continuar... senti-me num poço da era medival...bjuuu

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