terça-feira, 8 de novembro de 2011

As três chaves



       José Antônio Cavalcanti

Abriu o portão externo do edifício cheio  de insegurança, ela podia aparecer e ele não saberia como reagir. Olhou a chave azul,  indeciso, enfiou-a na porta do prédio, sua agitação fazia-o confundi-las. Não, não era a azul. A vermelha era da porta do apartamento no terceiro andar. Sobrava a de metal. Aproximou-se como um criminoso da caixa de correio. Olhou preocupado para todos os lados, para a parte externa e para o corredor onde ficavam os elevadores, simultaneamente vigiava as escadas e o acesso ao estacionamento. Ninguém. Aliviado, enfiou as chaves desajeitadamente na  caixa de madeira. Ouviu o barulho do metal contra o fundo. Era um som de catástrofe, seco e abafado ao cair da tarde de verão.
Era preciso voltar, virar à esquerda, seguir em frente, atravessar outra rua, outro continente, para finalmente inaugurar o deserto no ponto de ônibus. Precisava escapar do peso daquele barulho em sua mente. Não poderia adivinhar naquele momento que sua alma incorporara-se às chaves devolvidas e sua vida, dali para sempre, seria semelhante a uma carta extraviada. Além disso, ignorava que o som produzido pelas três chaves no interior da caixa de madeira iria persegui-lo incessantemente como uma trilha sonora de progressivo enlouquecimento.
Semanas antes, numa quarta-feira ensolarada, ela viera sem a aceleração habitual. A saia longa e pregueada combinava com a blusa azul e com a sandália âmbar. A bolsa? Sim, existia uma bolsa, mas a memória dela se dissolvera na névoa dos acontecimentos. Não, não era âmbar. Ele havia permanecido no quarto o tempo todo. Provavelmente a bolsa tenha ficado na sala.  A tonalidade do azul destacava de modo delicado a beleza nórdica da mulher. Sem manifestar outra intenção a não ser a de trocar-se, ela transformou a passagem pelo apartamento em escala meteórica para nova saída na qual ele seguramente não estava incluído.
 O rosto enevoado entre as sardas que lhe conferiam certo encanto e um jeito de olhar contraído e inquieto pareciam estudar palavras e possibilidades, tentavam amenizar o rigor de decisão noturna e impostergável. Um banho ligeiro permitiu-lhe limpar os receios; a consciência no ralo. Ousou fazer café, fechar persianas, arrumar as almofadas no sofá, alongando a permanência perigosa. Discreta e natural testava-se, mobilizando tato e argúcia. Por dentro, quase afundava, mas era preciso arrancar a farpa do olho, extrair o pus da alma.
O homem esperou-a, contudo, desatento. Apesar de tantos sinais, insinuações, frases, fragmentos, gestos, silêncios, expelidos como SOS em outros encontros, nunca conseguira livrar-se do aprisionamento ao terreno exíguo de furtivas tangências nem fugir ao precário equilíbrio em finos fios de arame que se enlaçavam às pernas e engessavam os movimentos. Acreditava no intervalo como condensação, densidade do afeto tão fundamente fincado em sua existência. Não percebia que pouco era menos do que nada. Na outra margem, latente urgência mobilizava mais fundas necessidades, um corpo desmontava-se em solidão, rugas e mágoas. Incapaz de perceber o que se movia mais abaixo dos lençóis, a tsunami em formação na região além-do-corpo, estendia-se pronto ao exercício de uma coleção de carícias com a qual ocultava as fissuras, o fosso, o silêncio entre ambos. Seu jeito de amar revelava-se puro anacronismo, uma intensidade infensa à racionalização, desprovida de mecanismos compensatórios, anuladora da capacidade de observar, fundamental à sobrevivência dos afetos. Prender-se à sedução da pele não é o único caminho da gênese do superficial. Embora desacreditasse em filosofias de profundidade e em paixões eternas, sabia do vigor e da complexidade que o arremessavam misteriosa e incontrolavelmente àquela mulher. Não a pele, a superfície, mas o não saber cuidar, o não saber guardar, a obliteração do olhar por uma pesada película de previsibilidade abriram as páginas de uma tempestade em surdina.   
Deitados lado a lado. Ele nu, ela vestida. Ele de bruços como um corpo baleado, ela de barriga para cima, olhos verdes e vazios fixados no ventilador de teto, mãos postas como quem reza. Assim ficaram suspensos fora de qualquer temporalidade até o momento em que, com uma leveza ensaiada e assassina, uma frase formou-se por trás das tardes acumuladas sobre a cama, nasceu do amplo sinal da coxa esquerda da mulher, até sair de uma de suas costelas, suave e fatal, num tom preocupado em evitar rachaduras e desenlaces patéticos. A frase, gêmea do barulho das chaves na caixa, circulou minúscula e impronunciável, antes de se arrumar na voz que tanto o encantava e agora, ainda serena, dava-lhe um tiro na nuca: “Vou pedir para você se afastar de mim”.

Sentado no ônibus para Guadalupe, voltava a junho. Os dois a caminho de um restaurante onde ocasionalmente almoçavam. Localizava o início do fim no anúncio seco e sem direito à discussão: - Não vamos mais almoçar juntos. A frase lançou-o a três palmos do chão. A vigilância dos outros, a possibilidade de descoberta da paixão clandestina, o medo, a insegurança, um lado de sombras erguendo-se da limonada suíça para estender sua acidez sobre expectativas. Era com método e elegância que alçava o garfo à boca, perfeita arquiteta de uma estratégia de fuga e emparedamento.
Sim, a sensatez didática do gesto insinuou-se como um ensaio para livrar-se de alguém que a assombrava com um afeto delirante e indesejado. O homem revelara sua natureza mais funda: um demônio da quinta legião dos infernos, um sedutor barato, um Don Juan velho e impotente. Ela não se perdoava a falta de resistência à fala de vil e astuciosa criatura. “Amor, adoração ou devoração?”, perguntava-se antes da escolha da sobremesa.  
A radicalização do sentimento de proteção era uma fórmula de afastamento deliberado, precisava encapsular-se, criar um sistema de blindagem imune à força virótica do sentimento incomum que despertara no indesejado admirador. O isolamento propiciaria a quarentena inadiável. Estratégia perfeita, traçada em ruas de aconselhamentos maternos, fraternos, amigos e científicos. Guardaria a cidade do bárbaro invasor. Precisava não vê-lo nunca mais, ocultá-lo, torná-lo invisível foi a forma encontrada para matá-lo. Ela sabia da ausência de algo que afastasse a órbita dele em torno de um corpo e de uma alma que o nucleava.
Toda a solução final já estava presente naquele almoço, faltava a ela, porém, a energia capaz de enfrentar a intensidade em menor escala da paixão acesa também em seu coração. Pura incandescência, o hálito dele magnetizava-a, acendia os territórios adormecidos do corpo, despertava nuvens que há muitos anos haviam desaparecido do horizonte. Por isso, seus seios saltavam bélicos e viçosos, por isso em sua pele uma resina deliciosa escorria sobre palavras desconhecidas, dicionarizadas nas letras de momentos fugazes, por isso transformá-lo de homem em fantasma era tão difícil.

Quando alguém sentou-se ao lado dele, à altura de Benfica, teve ímpetos assassinos. Fixou enlouquecido o rosto da intrusa, mas a inexpressividade e o ar de cansaço atenuaram o  furor homicida. Voltou-se para o lado da janela e pôde observar com desalento a risadinha canalha da confidente da senhora das chaves. Jogadora de baixo calibre, espalhava armadilhas e maledicências, o olhar parecia dizer à amiga “você, hein, escondendo o jogo”, “quem é ele?”, “olha, ele é muito simpático” e dezenas de pérolas de intimidade,  condenação e sentimento de “eu sei de tudo”, como se possuísse alma de cafetina conhecedora de todos os caminhos clandestinos. A lembrança fez com que entendesse a obsessão dos estranguladores e o ataque injusto que sofriam ao cumprir desígnios divinos de remoção de falsas vítimas, verdadeiras víboras a envenenar corações alheios.  
Sangrava, era verdade, porém não tinha direito algum a lamentações. Desde o início fora repelido com veemência ou com fineza. Sempre prudente em suas recusas:
 – Olha, há tantas outras mais bonitas e mais moças.
– Você tem a sua família.
– Não há a menor chance de ficarmos juntos.
– Não suporto homens que gostam de Clarice Lispector e escrevam poemas.

Quase à altura de Bonsucesso, uma mulher semelhante a uma morta-viva ofereceu-lhe um folheto com a proposta indecente de salvação da alma. Ficou puto. Falou que não queria salvação porra nenhuma, só os covardes e os canalhas invocam Deus para limpar as imundícies que fazem. A mulher teve um ataque, satanizou-o, gritando para quem quisesse ouvir que ele estava com o demônio no corpo. Perdeu as estribeiras, mandou-a tomar no cu. Ameaçou botar o pau pra fora, gesto não realizado graças ao completo encolhimento do membro. Explodiu, então,  numa linguagem e num gestual tão violentos e despropositados que os passageiros ameaçaram-no. Acabou expulso do coletivo debaixo de tapas e xingamentos.
Ingressou no primeiro buraco que apareceu. Maravilha. Em vez de balcão, mesas e cadeiras do bar onde julgara entrar, viu-se na festa de fim de ano. Ela o sorteou como amigo oculto, ele exultara. Muita sorte, pensava. Logo seu entusiasmo arrefeceria com palavras tão insípidas, tão distantes, tão vazias, moduladas num tom monótono, glacial e distante. Vontade de não receber o presente. A raiva fora tão grande que acabou bebendo oito cervejas e três conhaques, sem se dar conta que estava realmente num bar quase ao lado de uma boca de fumo. Acalmou-se ao observar no espelho rachado do boteco ele, na Floresta da Tijuca, ao lado da amada. O verde reconfortou-o, readquiriu forças, pôde caminhar quilômetros enquanto pensava seriamente em uma maneira de exterminar a amiga enxerida.  Bater com uma marreta na cabeça até o fim pareceu-lhe algo cansativo, tinha pavor a facadas, não possuía revólver nem pistola, não era de bater em ninguém. Como exterminar a amiga-inseto? Como remetê-la ao oitavo círculo do Inferno, onde Dante alojou os maus conselheiros.

Não conseguiu lembrar como chegara à praça das Nações, percebeu  que estava andando a esmo. Curiosos observavam seus movimentos a três palmos do chão, pensavam em milagre, manifestação demoníaca ou infiltração alienígena. Logo ficaram convencidos de tratar-se de mais uma jogada publicitária e perderam completamente o interesse. Enquanto se afastavam, o único medo que manifestara foi o de escutarem o som das chaves na madeira da caixa de correio; o barulho era ensurdecedor. Não conseguiu arrumar os pensamentos. Sabia, todavia, que existe uma dimensão oculta, uma simbologia do desastre. Pretendia desvendá-la, embora isso em nada aliviasse o gosto amargo da derrota, a última, a definitiva, a capitulação completa ao absurdo da existência.
Entrou numa papelaria. Pediu uma caneta, um lápis, um bloco de rascunho, uma borracha e um apontador. O balconista demorou uma eternidade para sair do lugar, enraizado a um chão de espanto. Quando finalmente conseguiu reduzir o temor, balbuciou: - O material é  oferta da loja, não é necessário pagá-lo.
Uma vez de volta à praça, atravessou a linha do trem, subiu o morro do Adeus com a intenção de viajar no teleférico. Percurso inútil. O barulho das chaves aumentou assustadoramente, obrigando-o a desviar-se do caminho e a entrar na primeira birosca que apareceu. Comércio miserável e sem espelhos, apenas uma mesa de sinuca, um balcão com bancos remendados, em petição de miséria, e duas mesas inseguras, talvez fosse o lugar ideal para começar a sua investigação, por isso esboçou um esquema ternário (pensava em Dante, na terza rima, nos círculos do inferno, em Beatriz, na Cabala, no amor e na morte) na última folha do bloco.

ESQUEMA DAS CHAVES

Chave metálica – O ciclo do mundo, as estações, as cidades e os planetas, origens e fins, manutenção das aparências, máscaras, falsidade, traição, trânsito entre as coisas e os seres. Todos os movimentos externos à relação entre os dois. Fílosofia.
Chave azul – O ciclo da amizade, da procura, do conhecimento, da carência, da cumplicidade, tangência e geometria, junção e disjunção, teoria dos conjuntos, pontos e linhas. Matemática.
Chave vermelha – O ciclo da paixão, química corporal, perfumes e resinas, quente, úmido, vento, entrega, promessa, redenção da carne e de todos os pecados. Poesia.

Já anoitecera. Nenhuma estrela grafava o próprio nome no céu suburbano. Saiu da birosca cercado de curiosidade e suspeita. Exército, pms e traficantes olhavam-no como o próximo alvo. Seu alheamento, confundido com autossuficiência, multiplicava exponencialmente o desconhecido em uma dimensão assombrosa.
Sem se dar conta, voltou para o apartamento onde morava. O esquema que traçara seria doravante o seu projeto de vida, razão pela qual o escrevera na última folha. Daquele momento em diante, tentaria encontrar na escrita um antivírus para o mal que o assolava.
Exausto, com a cabeça a ponto de estourar, teria sido melhor esquecer aquele dia, soterrá-lo, embriagar-se, dormir, anestesiar-se. Todavia uma corrente violenta percorria o seu corpo e o seu espírito; não conseguia ficar lúcido nem conseguia perder a lucidez.
Para combater o som das chaves que percutia agora de modo mais ameno em sua mente e aliviado com o desaparecimento da dor de cabeça, procurou refúgio na poesia. Buscou Dante, mas inexplicavelmente, para sua infelicidade, abriu as Elegias de Duíno, de Rilke, logo no primeiro poema.

            “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos
            Me ouviria: E mesmo que um deles me tomasse
            Inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
            Sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo
            Senão o grau do Terrível que ainda suportamos
            E que admiramos porque, impassível, desdenha
            Destruir-nos; Todo Anjo é terrível.
            E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
            Do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
            Valer; Nem Anjos, nem homens
            E o intuitivo animal logo adverte
            Que para nós não  há amparo
            Neste mundo definido. (...)”

“Miserável do Rilke, me pôs a nocaute, ampliou meu insulamento, meu desamparo, nem Eros, nem Deus, nem porra nenhuma, só a poesia. E o que é a poesia se não a estilosa manifestação do nada. Maldito anjo da guarda, me largou quando viu uma passista na Sapucaí e saiu correndo alucinado atrás da mulher oferecendo beleza eterna e uma vida de madame”, pensou o poeta anônimo atingido pela potência da palavra rilkeana.
Fazia tudo para se ver livre do barulho insuportável e sobreviver ao desmoronamento de todo um sistema solar que construíra com tanto empenho, carinho e ilusão. Falho geômetra, péssimo astrônomo, medíocre poeta. Expulso da cama, do sofá, de almoços, de cinemas, dos braços, de teatros, dos peitos, das coxas, das palavras, dos olhares, dos beijos, da xota, da bunda, dos sonhos, da presença de quem amava. Para ele tragédia, para qualquer outro apenas mais um caso de vulgaridade obscena.
Não, não se considerava um qualquer. Que se fodesse o senso comum. Que se fodesse quem descobria em tudo um dramalhão mexicano. Fossem todos para as putas que os pariram (gostou de xingar em plural). Contaminado pela dor, querendo mais pancada, ansioso pelo fim do mundo, pulou a segunda elegia, para reencontrar na terceira a dona das chaves, pois sentiu no texto o amor fluvial e despótico. A amada exorcizava seus demônios, lançava pontes sobre o abismo onde morava, recolhia-o destroçado de suas próprias raízes selvagens. Rilke o enlouquecia. Saltou a quarta, a quinta e fugiu do herói da sexta elegia.
Mas surgiu um cão no quarto em que amontoava desordenadamente livros baratos comprados nos sebos da praça Tiradentes. O animal rosnava, ameaçava, encurralava-o na poltrona próximo à janela. Emitia uma ordem imperiosa em seu olhar feroz. O homem descobriu que o cão era o próprio Rilke,  O poeta tinha completo domínio sobre a sua vida, sabia tudo sobre a sua infelicidade amorosa.
O homem recusou-se a ler a sétima elegia, apesar da insistência obstinada do cão. Este, verificando a inutilidade de suas ameaças, enunciou com inflexão cínica um fragmento da sétima elegia, a fim de aterrorizá-lo: “Em parte alguma bem-amada, o mundo existirá, senão / interiormente. Nossa vida transcorre na metamorfose: / sempre decrescendo, o exterior desaparece.”
Metamorfose? Aquela palavra explodiu uma cólera intestina. O que desaparecia era a sua passagem mais próxima da ideia de felicidade. Como valorizar metamorfose, se a mudança é sempre sinônimo de morte, perda, destruição. Metamorfose é aniquilamento, nada se transforma em nada, o que é só vige no espaço do seu ser no momento pleno do seu vigor. A que ser humano interessa a transformação do corpo em cadáver, do sonho em pesadelo, do amor em solidão? Metamorfose é para aula de ciências, não para a existência de nossos afetos. Ruminou outros ressentimentos, olhos fixos no pequeno Cérbero.
Implorou a Rilke que parasse de injetar por meio de agulhas poéticas mais veneno em sua mente, porém o poeta ignorou solenemente o seu pleito e continuou. Ao chegar quase ao fim do poema, na passagem “Anjo, mesmo que te aliciasse não virias, pois meu / apelo é sempre denso de repulsa; que podes tu / contra a caudal do meu horror?”, o homem teve uma explosão de fúria, passou a chutar o cachorro com extrema violência e a lançar contra o odioso animal tudo o que encontrou no cômodo. Finalmente, arremessou Rilke e o livro insuportável pela janela.
Acreditou, assim, evitar o clima metafísico da oitava elegia e não se dar ao trabalho de tentar entender as duas últimas. Não obstante, alguém lá fora pôs-se a ler os versos da nona elegia: “Quem nos desviou assim, para que tivéssemos / um ar de despedida em tudo que fazemos? (...)”.  Puta que o pariu! Esbravejou, xingou, praguejou, blasfemou. Não queria ouvir nenhuma menção à palavra despedida, estava despedaçado justamente dentro de uma. Em vão, pois lá fora a mesma voz declamava um verso da última elegia: “Eis aqui o tempo do dizível, eis aqui sua pátria.” Não, maldito poeta morto, sem Beatriz nenhuma pátria poderia existir.
Incapaz de suportar mais, o homem pegou uma chave de fenda enorme, agachou-se no  parapeito da janela do terceiro andar decidido a pular, com a chave bem firme na mão, sobre o corpo agonizante de Rilke que, entre versos e uivos, aumentava a sua agonia, ampliando ao imensurável a dimensão da sua hecatombe pessoal. Estava prestes a cometer o desatino, quando a filha abriu a porta do quarto e assustou-se: - Não foi nada, filha, estou apenas consertando a persiana.
Sua filha o salvara? Não, para ele não havia salvação possível; mesmo que existisse,  seria uma indignidade. Face à queda, à perda, à ruína, só a energia por convenção denominada amor nos inclui no rol do sagrado.

A chave metálica funcionava ao contrário, abria a porta do prédio não para que nele alguém entrasse, mas para os dois se lançarem nos braços da cidade, percurso estético e erótico: filmes, música, almoços, teatro, festas, passeios, pipoca, água de coco, café, shopping, livraria, colados um no outro no carro dele, aos papos e beijos, querência, paixão, impulso incontrolável. Era simultaneamente o espaço do risco, da cilada, da possibilidade de encontro indesejado na madrugada ou em motel, da bandeira, do movimento libertário.
A chave azul abria um ao outro, expondo-os em seus vícios e virtudes. Por intermédio dela a troca tornava-se possível. Permitia ao homem apalpar as asas e escamas esverdeadas da mulher, enquanto ela descobria minas e manhãs impronunciáveis no fundo dos olhos dele. Era o instrumento de aproximação, de um caminhar para o outro. Era a chave de descobertas, sem a qual os encontros ingressam em movimento pantanoso. Despia as distâncias, os receios, o medo, a desconfiança. Chave-ponte, arquiteta de cidades, continentes, planetas e constelações na tênue fronteira entre homem e mulher.
A chave vermelha era o acesso completo. O último cofre da sala de segurança dos sonhos. A senha de ingresso nos salões sagrados do prazer. A química dos corpos e a poesia dos gestos faziam os corpos flutuarem no ar. Irradiava uma essência paradisíaca: carne na carne, sexo incandescente, alma levitando. Sentiam o vento emanado de galáxias desconhecidas. Um se perdia no outro, e essa perda era a felicidade. Só a paixão pode construir uma queda com movimentos que não jogam os corpos para baixo, mais para o aberto e o além da existência. Só a paixão constrói naufrágios sem navios, sem mar, sem rumo. Só a paixão desperta desertos povoados por lembranças famintas e todas as tendas do desejo. Só a paixão marca a promessa com o beijo inaugural e a cicatriz da eternidade em corpos efêmeros.

Levaria a vida inteira para estudar o esquema das chaves. Doente, sabia que a doença crescia velozmente. Não tinha mais forças para lutar, ele que fora um leão na defesa dos seus sentimentos. Sentia-se aniquilado. Envelhecia a olhos vistos. Nada podia fazer. Ela tinha todo o direito de não querê-lo mais. Ele jamais transformaria a paixão desmedida em um peso na existência dela. Sabia que estava morrendo, irremediavelmente morrendo. Ia afundando, desaparecendo, tornando-se cada dia mais invisível há 327 dias, desde aquele fatídico 15 de dezembro. Todo o resto dos seus dias ouviria o som das três chaves caindo na caixa em madeira do correio de um prédio perdido na cidade. Viver seria apenas grafar infinitamente as dolorosas letras desse som.

Pilares, 08/11/2011

4 comentários:

  1. A chave vermelha... A chave vermelha... Quero a chave vermelha... Não quero grafar mais nada... Viver tão somente... antes que a morte me ache... A chave vermelha!!

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  2. Caro autor, o conto é antológico. Gostaria que me informasse se você já tem livro publicado e onde posso encontrá-lo.
    Abs

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  3. Muito bom!!!! Não dá vontade de parar de ler. Você precisa publicar. Parabéns!!!! Aguardo os próximos.
    Beijos mil.

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  4. Alô, José Antônio.

    O conto é denso, linguisticamente criativo e tem uma estrutura bem original.
    Parabéns. Também pelo blog, que é bastante diversificado.

    Abraços,

    Chico Viana. http://chviana.blogspot.com

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