segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Abysmus Express



Primeira estação

Veio a névoa, densa neblina obliterando formas. Teu rosto ainda não existia no retrato, tua voz dormia cantatas em dias de chuva, e o desejo sequer latejava remotíssimo sabor futuro. Minha pele encerada por cerdas ásperas de nostalgia, pergaminho em caminho de rugas, solo intocado dos passos que um dia curvos. Tempo esvurmando minutos, grinaldando de grisalho pelos, cabelos, memórias. As palavras vieram depois, filtradas por máquinas de sucção de impurezas e excessos sintáticos. Os filtros eram falhos como as letras do manual de instruções. Uma vegetação luxuriosa saltava do coração da noite âmbar e ambivalente. Incenso de vigília e tempestade exalava-se em espera. Corria um rio invisível entre os móveis ofertados aos cupins na sala, ouvia-se o ritmo das corredeiras e quedas d'água saltando do pulso. Tudo um fluxo, tudo um continuum, mas nada apontava a possibilidade do legível. Nada de limpidez, toda geometria desmanchava-se em sombras no horizonte a anos-luz de distância. Tudo se tingia de pardo-obnubilante. Linhas voláteis desenhavam um chão de nuvens. Fugidios e movediços, os objetos afirmavam-se como um não-é-para-mim, algo latente num sempre-além, fora das circunstâncias, da vida e suas adjacências entrevistas como relâmpagos apenas em pesadelos. Aéreas fotomontagens as pessoas, nenhuma ascese, nenhum princípio de transcendência ou aproximação, redomas metafísicas. Longe, sempre longe o campo do real objetivo, a latência de formas vivas, a irrupção de sujeitos. Assim, caminhar e tateio operavam sinonímia, entendimento erigia-se em obscuridade, existir era um território de avessos. O trajeto vertical descendente radicalizava perdas e recusas. Mas algo atravessou a névoa, uma instalação desviou o sangue das entranhas para uma baía de águas vivas. Teu corpo, teu corpo, teu corpo, por isso todas as heresias em cântico, todas as blasfêmias abertas em chagas na carne viva. A tua voz do outro lado do impossível explodia o universo. 


Segunda estação

O amor talvez fugisse ao se abrir um guarda-chuva enquanto a cabeça, virada à esquerda,  pensava em travessias. O amor faria bater artérias, portas e janelas, lançando-as do batente ao deserto? Faria cessar a névoa do existir às cegas, entronizando no vácuo uma claridade talvez insuportável, brilho paralisante em frestas pelas quais o vento invade a câmara mortuária onde os sonhos? Se falhos e incompletos, se lacunosos e obsoletos, como a tentativa de domínio sobre natureza diversa da nossa ou sobre aqueles que brotam de nossa urgência e abandono? Onde a possibilidade de circular entre vultos que nos escapam a tardes ensolaradas, lábios que recuam ao primeiro sinal de tangência? O arrepio, no entanto, levantava suspeitas sobre o incontrolável movimento da pele: sístole e diástole, narinas dilatadas, a pressão sanguínea em alfa. Impossível saber o que habita o outro lado, apenas o mergulho kamikaze, impulso.


Terceira estação

Entra-se por qualquer porta escancarada, penumbra fora de perímetro. Às vezes se volta de mãos vazias e com a alma morta. Sempre se alcança, no entanto, ao se erguer os pés além da entrada, mais que porta, nimbo fora de qualquer teologia, bunker de tijolos aveludados isolado no tempo.  Por que maciez, champagne e seda? Por que tantos espelhos e excesso de vermelho nas cortinas? E esse olhar falsificando atração, memória e gula? E essa indumentária incomum sobre a qual repousam aparelhos mecânicos e pílulas para performances guinnessianas? E a boca, sim, a boca, a boca esplêndida e viciosa, a boca, atelier da carne, centro de efeitos efêmeros que escapam ao provisório, aos prazeres-zumbis que se recusam à morte mesmo confinados a poucos segundos. A boca que já não diz por que inventa, a boca esponjosa cuja cegueira arremessa urgência nas paredes.


Quarta estação

Sou Judas e vim cravar punhal babilônio nos olhos da harpia tatuada em tuas costas, serviçal de Lilith, para que não vejas o tremor germinando no solo fértil da solidão dos que traem. Pertenço à legião daqueles de que nada sai sem o sacrifício de sangue e inocência. Sou da tribo dos possessos do espírito e devassos da carne que cruzam o deserto dos prédios para espalhar perversões em salas de cinema. Vim para devastar teu esfíncter banhado em azeite e lágrimas. Vim para calcinar o pântano maldito do teu clitóris, falso espelho de meu gládio, logo abaixo do terceiro círculo do inferno. Vim para enfiar em tua vulva uma carga de mágoas e rosas, pulsante navio transportando adubos, moedas, deuses, sucatas e sonhos. Para ti, serva libertina, o pau vibra qual um cometa ao tocar um ponto qualquer no universo após um século em órbita. Para ti, voz melosa ao telefone em falsas promessas, esta matilha de crimes implorando socorro.


Quinta estação

O que salta dos olhos não são imagens de pêndulos sobrevoando a orquestra de notas falhas, quando descemos dois tons ou quando o si bemol atravessa as paredes para auscultar corpos despojados de sonhos no madeirame tomado por cupins no cômodo ao lado. Também irrompem sobre as pequenas hortênsias desenhadas em lençóis noites de interferências e assimetrias entre tesão e batalha, noites em que saltamos tigres, atravessamos o vácuo e caímos de costas, sem garras, vendo o olhar de escárnio da presa que nos escapa. Tanta espera e urgência inscritas em coxas morenas anatematizam a lança que não alcançou o alvo. Uma cidadela de portas abertas na cama expele seu pavor mais fundo, os lábios grandes e pequenos da vulva secretam, em impura resina e rancor,  todo o léxico uterino do inferno e, inflados de sintaxe homicida, sopram insultos ao falo. Os deuses e os homens brocham com a cara na lama no inverno.


Sexta estação

Desnudados num piscar de olhos, não reparamos a invasão de outros perfumes pretéritos aquém dos espelhos que nos arremessavam ao teto. Mentiras e gozos alheios permaneciam entre as paredes, fantasmas alongando excessos ao tempo de permanência. Meu rosto na toalha macia filtrava a respiração da rua em ablução ou batismo com o qual a pressa convertia-se em outro ritmo, sístole e diástole, fôlego erótico para atravessar túnel noturno. Bordadas na toalha com perfeição de fotografia as mãos de Verônica secavam mágoas e acariciavam a barba tão rala (no desenho eu negava três vezes a navalha sobre a bancada de aço inoxidável da pia). Um quarto sempre será estreito para o amor quando se rompe o lacre das aparências, quando desaba a blindagem de timidez e previsibilidade. Trouxemos de fora a tempestade, a saliva em temperatura de lava, a oleosidade incontrolável na zona erógena do corpo, a intumescência vergonhosa do pau saltando vexame na  calça xadrez, o movimento de nos tocar como se acendêssemos febre no corpo inteiro. Então, arrancamos nacos de carne com as pontas dos dedos lambuzadas de felicidade, fabricamos solda de suor e seivas, inventamos moluscos bivalves, fístulas, dutos de perversão e santidade; abraçados em extremos tão voláteis, vibrando em jorro em nossos dentros, levitamos nossos nomes, desmanchando-os letra a letra lentamente sobre a cama incandescente que trouxemos da rua em nossos pulsos.


Sétima estação

Não cair pela segunda vez, mesmo que íngreme demônio o caminho à tua pele estendida no alto de tantos desencontros. O desejo e seus antigos afluentes latejam nas têmporas correntezas sanguíneas, pressão máxima, tonta navegação armilar nos polos cranianos. Todos os líquidos corporais operam prodígios no campo magnético dos olhos, injetando-lhes uma luz alaranjada que alimenta cães selvagens na penumbra de seios à espera de ossos e areia. O sopro oriundo de cofres internos devasta espera e amplia ao infinito o som da abertura do zíper, enquanto o mover-se inquieto das mãos, impuro balé tateando maciez e manhã em peles rasuradas de hiatos e perdas, em teus pelos úmidos, em teus ocos, acende luzes de emergência entre as coxas. O tempo líquido, um mar anterior ao mundo, faz a armada ora levitar, ora ir ao fundo, mas todas as naus resistem completas à intensa travessia. As marés da carne, o enroscar-se de caramujos, a hibridez de rocha e esponja, tudo respira instante e eternidade. Alargar e contrair luas e pêndulos cravados na loucura mútua. Na ausência de centro, apenas alternância, ritmo, dança erótica; movimentos centrifugo e centrípeto. Corpos cerzidos, emendas afetivas, rascunhos amorosos, males da alma, tudo se evapora. Despidos de nós, o que somos vige exatamente agora quando gozamos estrelas de igual grandeza.


Oitava estação

Vieram as mulheres de Jerusalém para enxertar na minha pele devastada toda uma fome de bestas sem apocalipse, sem memória. Toalhas de linho sobre o criado-mudo e potes de barro ao pé da cama, as loucas de véu azul revezavam-se em fogo e fúria, excitadas com nacos de músculos e nervos entre os dentes de ouro. Com mãos gordurosas limpavam o excesso, depois usavam as próprias túnicas para extrair pequenos pedaços de vísceras entre os dedos viciados na solidão do sexo nas colinas. Aos risos, entoando palavras desconhecidas, jogavam em cestos de vime grandes flocos de algodão doce de sangue. Em meio à sofreguidão dos monossílabos do gozo, um nome soou acima dos lençóis rasgados pela luxúria, e era o teu nome flutuando em sílabas enlaçadas à memória da tua carne em noites de frio. Ao ouvi-lo as mulheres murcharam arroxeadas, as pedras de anéis presos à avidez das mãos perderam o brilho, todos os véus caíram ao chão como deusas de barro, contaminando de melancolia vestes lavadas em lágrimas, esperma e sangue. A mais louca paralisou interminável felatio para cuspir maldições pelas dezenas de cáries da boca, os olhos fuzilando crimes. Saíram em bando, as almas insaciáveis sumiram como farrapos ambulantes muito além das cortinas do sonho. Sim, possuo apenas um nome para o amor, e é teu ainda mais quando te ausentas.


Nona estação

A terceira queda no furor do corpo, três vezes o galo sobreposto à mudez, três cruzes no calvário acima do tórax, três vezes a água batendo no queixo. Levanta-te, Lázaro – e era como se um deus desconhecido rasgasse os estreitos limites do desejo, irrigando com o verbo canais secretos; talvez soprasse com desânimo uma das trombetas oxidadas após a queda das muralhas de Jericó. Sim, também os deuses aprenderam as margens noturnas dos homens, saem de pesadelos em bando para invadir a topografia afetiva fora do plano divino, sabem agora que todas as cidades são Sodoma e Gomorra. A desconhecida ria em sua nudez esplêndida, risos de puta, risos de quem abre as pernas às varizes e à exaustão das horas. Pela janela, infiltração da lua de cobalto. E, frenética loucura amorosa, gozava e ria a intervalos bem largos, na mesma frequência dos espasmos com os quais cobríamos nossos corpos gangrenados de carências. Os olhos, às gargalhadas, urravam: “Canalha! Filho da puta! Eu tô chapada, seu babaca!”  A carne ulcerada já não sentia o prazer em excesso, muito além do preço combinado. A cidadela indefesa, a trompa de Falópio sitiada, uma legião microscópica condenada pela insânia de um comandante tarado. “Seu merda, lúcida eu não gozava”.


Décima estação

A voz estridulante chegou cinquenta passos à frente da sombra, estranho chamado ao interior de antro gorduroso, coalhado de objetos inúteis, móveis quebrados, velas e oferendas. Era Deus e seus dez desregramentos do outro lado da parede mofada. Mãos de dedos rugosos estenderam-se como punhal dentado numa exigência imperiosa de nomes, roupas e pertences. Antes que os olhos piscassem, abrupto puxão nas costas; o linho rasgado de cima a baixo, as calças dilaceradas por dentes em fúria, cães arrancando sapatos, nacos de carne e tatuagens. Pequenos dados viciados, bilhetes amassados, moedas e retratos perdidos na recepção dos leões-de-chácara encapuzados. Despojado da película de ataraxia, o corpo esplendia viço e virilidade. A voz soou mais intensa, suplicando chagas, úlceras, doenças, arrependimentos, choro convulso, mas o corpo rijo e resistente lançou-lhe insultos no céu de álcool e feromônios: respiração ofegante, pressão alterada, circulação acelerada, brilho nos olhos, narinas dilatadas, o pau - lança rubra erguida por demônios. No chão as vestes impuras e as íris dilatadas de Bastet, testemunhas dos nomes que escorriam sílabas e cadáveres de boca em metástase.


Décima-primeira estação

Na sala de comando do abrigo subterrâneo, câmeras registram um corpo sendo despojado de passado púrpura e império, as vestes no chão, tragadas por ratos.  É preciso entrar nu em palavras gravadas para exaustão e tédio; é preciso enganar leitores de digitais, íris e quimeras; é preciso camuflar identidade, alma e vingança; guardar fôlego para atravessar o corredor polonês onde vozes eletrônicas distribuem instruções para performances de alto nível e questionários de riscos. Chega-se, por exaustão e aos pedaços, ao ponto extremo do movimento, após o qual tudo é indiscernibilidade e regurgitação. A face teriomórfica altera o perfil da sombra nos ladrilhos; cornos bipartidos são projetados no azul e branco, orelhas cônicas escondem líquido esverdeado na penumbra, não se veem as fendas da cabeça intumescida de protuberâncias, as bactérias pulsando no centro. Vamos, sim, exatamente aonde nos querem domesticados, strippers infláveis, vamos, no entanto, para danificar todos os circuitos, borrar todas as imagens, queimar todos os fios, desmontar todas as palavras de fibra de vidro e silício. Vamos, sim, morrer com a lança erguida, reluzente, humano hissope cravado em abertura carnívora. Sim, pai, eles sabem muito bem o que fazem; ensinaste muito bem a crueldade.


Décima-segunda estação

Na banheira, por asfixia, na cama, por infarto, em terreno baldio, por uniformes oficiais, ou em cruz de plástico, por cineastas amadores, a morte e seu séquito de banalidades: choro, hagiografia, totens, revelações escabrosas, faxina biográfica. Falsa proposição enunciar a causa mortis. A morte não. Desmoronar, parte da construção; afogamento, o próprio mar; sucumbir, outra manifestação do vigor; abandonar o porto, levá-lo nos dentes para ilhas distantes. A morte, não, a morte, porque nada nadinha reconfortante o abandono das horas em que juntos, porque extraímos fungos e diamantes de horas mortas, porque caminhamos às tontas para nunca escapar ao deserto, porque é necessário palavras cumprirem destino de areia. Só mentiras alimentam a alma, as grandes e as infames. O amor selado em tonéis e desfaçatez, o último orgasmo a acender-se em fumaça na lama sagrada do corpo. A morte não. A alma infante não cabe no corpo mofado. Como a ineludível lavará as falsas promessas de amor urdidas mutuamente em noites úmidas de felicidade? A morte não. Salamandras venenosas ensaiam carícia no corpo morto, nunca a morte, porém, encontrará a sonoridade das palavras que perdemos. A morte que nos leva não sabe o que deixa. Alguns afirmam ver, do outro lado dos orifícios nas duas mãos, a sombra do paraíso (um pastor de cobras foi pregado em poste para multiplicação de fé e descrença). A morte não. O que vi foi aqui mesmo quando pisava em falso.

Décima-terceira estação

Não há, depois da fermentação dos órgãos, da sutura dos tecidos, ponto de restauração de ossos e certezas. Nenhum fio materno virá redimir, ao amparar o corpo extinto, anos de barbárie no pântano. Vê: há certa beleza geométrica na floração de máculas espalhadas como semáforos por uma superfície já inavegável. E os olhos? Observe as cenas submersas pulsando atrás das pálpebras inchadas: mãe abandonada em plantões hospitalares, pano, balde e rodo em sanitários infestados de pestilência; mãe de noites estendidas em pânico quando o filho conduzia uma gangue de hirsutos em farrapos pelas ruas do bairro apóstata; mãe em apneia escrita em livro de ocorrências paranormais: peixes multiplicados por asfixia na cortina d’água, x9 ressuscitado para clandestina execução sumária, putas inscritas em liturgia pornoangelical, cegos que se amplificaram em câncer e surdez. Janelas fechadas à passagem de anódino cortejo, portas trancadas a pavor pleno, crianças nos cômodos mais fundos. Vê: eis o morto em ângulo sólido. Não, não é o dedo médio que lavra insultos a sacerdotes-eunucos. Algo se monumentaliza por causa da pressão hidrostática causada por ingurgitamento venoso, o pau insurgente de Prometeu. A curvatura do corpo cavernoso atira mitos, nódulos e coágulos contra a eternidade. Príapo de volta aos braços maternos.

Última estação


pula-pula a marafona sobre o abdômen do morto, o peso desproporcional afunda pouco a pouco a dissoluta carne arqueada, voluta ulcerada de volta ao útero, cornija para escoar lágrimas fingidas. pisa-pisa a face teriomórfica entre touro e carneiro, vértebras partidas, a flácida barriga de estrias azuladas aberta aos domingos para expiação pública e taxonomia, quase dobrado agora folha rasurada, bolas de pelo como amuletos macabros rolam ladeira abaixo pela goela do falso messias que proclamava proezas sexuais - pura fantasia para viúvas de homens mortos de tédio. agora o fêmur quase atravessando a garganta. outras carnes mofadas prensaram as letras com as quais esquiara esperança e sordidez, também atiraram insultos e serpentes em seu peito, dos pulmões sem pneuma vazavam vigílias alucinógenas e lamparinas para os dias de letras turvas. os poemas em bacias entulhadas de sal e olhos-vigias perdiam a caligrafia de infâmias. forjaram suas amantes uma cruz para a morte, mas todos sabem que o rei apócrifo enforcou-se de palavras, as frases enroscaram-se arame farpado no pescoço roído por prazeres de aluguel, sílabas de pernas abertas esfregavam esponjas e xanas em sua face esquerda enquanto a direita era todo o cenário do deserto.  para sempre lançado do lado de lá das palavras. ainda que não existam deuses e não tenha alcançado o inferno, o morto não pode ser enterrado. quem um dia o calvário de um nome, nunca desnomeado.

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